RESUMO: A constituição federal de 1988, de maneira inédita, inaugurou um novo período de valorização da condição humana, consubstanciada na tutela dos direitos fundamentais trabalhistas, de acordo com os anseios do Estado Democrático de Direito. Este trabalho busca traçar o cenário histórico capaz de propiciar a evolução e o desenvolvimento do pensamento jurídico acerca da tutela do direito fundamental ao trabalho, passando á análise dos diversos artigos inseridos ao longo da Constituição Federal, identificados como fundamentais para o avanço na consolidação de uma ideologia de valorização do trabalho humano. Atualmente, o ordenamento vigente, irradiado pelo principio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana, confere verdadeira força normativa á tutela dos direitos sociais, os quais passaram de simples metas á direitos acionáveis, demandando comprometimento efetivo do Estado e da comunidade.
Palavras-chave: constituição federal de 1988, direitos sociais, direito ao trabalho.
Sumário: 1. Introdução – 2. O direito fundamental ao trabalho á luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana na constituição federal de 1988. 3. Conclusão. 4. Referências
INTRODUÇÃO
A constituição Federal de 1988, inédita ao criar um título próprio para albergar os Princípios Fundamentais, elegeu a dignidade da pessoa humana como uma das bases fundantes dos direitos fundamentais (art 1º, III CF/88).
Esta escolha feita pelo legislador ordinário, em resposta aos anseios sociais, impôs ao Estado o dever de zelar pelas garantias sociais asseguradas pela ordem democrática, tais como o direito á vida digna, à liberdade (art. 5º, caput, CF/88), á saúde e segurança (art. 6º, CF/88), e, dentre tantos outros, em respeito ao valor social do trabalho (art. 1º, IV, CF/88), assegurou aos cidadãos o direito de exercerem livremente qualquer ofício (art. 5º, XIII CF/88).
Em relação ao estudo da Constituinte de 1988, deparamo-nos com diversos artigos que buscam estabelecer um conteúdo mínimo de direitos garantidos aos trabalhadores. Exemplos capazes de subsumir esta ideia são os direitos encontrados no art. 5º e seus incisos, cujo conteúdo, apesar de aplicável a todos os cidadãos brasileiros, guarda estreita ligação com as relações de trabalho, além do art. 7º, no qual encontramos, substancialmente, a veia protecionista dos direitos sociais preconizada pelo legislador originário de 1988.
Com base nessas premissas, o presente trabalho demonstrará, em um primeiro plano, a definição e conteúdo essenciais da teoria dos direitos fundamentais e a sua implicação no direito do trabalho, passando, em um segundo momento, á análise do arcabouço jurídico, introduzido pela Constituição Federal de 1988, em defesa do direito fundamental ao trabalho, compreendido este não como qualquer ofício, mas sim como aquele apto á garantir a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana e a efetivação da igualdade material.
O DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO Á LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
O direito fundamental ao trabalho, em linhas gerais, constitui um plexo de garantias asseguradas a todos os cidadãos, os quais poderão exercer livremente o ofício escolhidos, deste que atendidos alguns requisitos legais. (art. 5º XII CF/88).
A primazia do “valor trabalho” no contexto social democrático é assumido pela ordem constitucional brasileira como uma das ferramentas indispensáveis á “afirmação do ser humano” [1], quer esteja inserido no contexto social quer admitido sob a ótica personalíssima.
Tal garantia vem estampada em diversas passagens da Constituição Federal, o que nos leva á crença de que a proteção plena de seu exercício não é outra coisa senão a maneira mais eficaz de se alcançar a pacificação social e a emancipação do ser humano.
Concluiu o constituinte originário, de maneira acertada, que o valor trabalho relaciona-se a vários institutos jurídicos ao mesmo tempo, o que o permite transitar, de maneira serena, nos mais variados títulos que compõem a Constituição Federal.
Primeiramente, o direito ao trabalho ocupa o posto de princípio fundamental do Estado democrático de Direito, consistindo, por um lado, em um valor social a ser observado por todos os componentes da sociedade e pelo o Estado, e por outro lado demonstra um caráter limitativo de outro principio, também fundamental, qual seja a livre iniciativa privada (art. 1º, IV CF).
Nada mais coerente do que essa correlação em um mesmo inciso, tendo em vista, conforme afirmado em capítulo anterior, a adoção, pelo Estado Brasileiro, do regime econômico de feições capitalista, juntamente aos ideais sociais, oriundos da concepção de Estado-Providência.
Prosseguindo á análise do valor trabalho na Constituinte de 88, surge, dentre os princípios regentes do Brasil nas relações internacionais, a prevalência dos Direitos Humanos (art. 4º, II, CF/88).
Partindo-se do pressuposto de que os direitos sociais trabalhistas, em especial o direito ao exercício digno de um trabalho, constituem-se categorias específicas dos Direitos Humanos, o Brasil reconhece a prevalência das regras protetivas inseridas nos documentos internacionais aos quais se submete, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que, no art. XXIII prega que “toda pessoa tem direito ao trabalho, á livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e á proteção contra o desemprego” além de “direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure uma existência digna” (PIOVESAN e CARVALHO, 2010, p. 14).
Mais adiante, sob o título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, podemos examinar o direito fundamental ao trabalho sob dois enfoques distintos, porém complementares.
Com sede no capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, o inciso XIII do art. 5º nos revela a garantia de um direito de primeira dimensão para tornar possível o exercício de um direito de segunda dimensão, ou seja, a liberdade de escolha do indivíduo é condição sine qua non para o exercício de um ofício com dignidade.
Em seguida, em mais uma demonstração do compromisso social assumido pela nova Constituição Democrática, o constituinte originário traz para o seio dos Direitos e Garantias Fundamentais, o Capítulo II, que trata dos Direitos Sociais.
Na verdade, analisando a história das Constituições Brasileiras, chegamos á conclusão de que a Constituinte de 1988 pode ser considerada a primeira a trazer um título específico acerca dos Direitos e Garantias Fundamentais.
De acordo com o Prof. André Ramos Tavares[2], podemos classificar os direitos contidos neste capítulo II nas seguintes categorias: a) direitos sociais genéricos (art. 6º); b) direitos sociais individuais do trabalhador, pessoa física (art. 7º); c) arts. 8 a 9 tratando dos direitos coletivos do trabalhador, assegurando, sobretudo, a liberdade de associação profissional ou sindical, autonomia sindical, termos gerais das negociações coletivas, e o direito de greve.
Finalizando esta breve análise acerca dos dispositivos constitucionais que tutelam os direitos fundamentais trabalhistas (a qual será retomada em momento oportuno), encontramos, no Título VII - Da Ordem Econômica e Financeira – art. 170 e incisos seguintes, a valorização do trabalho humano e a busca do pleno emprego como pressupostos indispensáveis ao exercício digno de qualquer atividade econômica desenvolvida em âmbito regional, nacional, e, por que não, internacional, tendo em vista a existência de pactos laborais celebrados para serem desenvolvidos fora do país.
O intuito protetor concedido pela Carta de 1988 aos direitos e garantias fundamentais, incluídos os direitos sociais, foi tamanho que se optou por resguarda-los da atuação legislativa indiscriminada alçando-os ao patamar de cláusulas pétreas, conforme art. 60, § 4º, IV. CF/88.
Todo esse esforço do constituinte originário traduz a adoção do país pelo princípio da valorização do trabalho, em especial o trabalho regulado (relação empregatícia), ensejando, acertadamente, á conclusão erigida pelo brilhante Ministro Mauricio Godinho Delgado de que: “A Constituição não quer deixar dúvidas, pois conhece há séculos os olhos e ouvidos excludentes das elites políticas, econômicas e sociais brasileiras: o trabalho traduz-se em princípio, fundamento, valor e direito social.” (DELGADO, 2010, p. 32).
Para compreender a força normativa do direito fundamental ao trabalho e a sua relação intrínseca com o princípio da dignidade humana, torna-se necessário o aprofundamento do estudo acerca da sua aplicabilidade, sobretudo da efetivação do direito fundamental ao trabalho e as suas limitações sociais e econômicas.
Primeiramente cumpre salientar que o tipo de trabalho classificado como fundamental, a ser defensável e implementado via normas incentivadoras de origem Estatal e pactuadas na seara privada, não é qualquer trabalho, mas sim apenas aquele que consiga estabelecer uma interface com o conceito de “trabalho decente”, nos moldes traçados pela OIT.
Desta maneira, não há que se confundir o direito fundamental ao trabalho com o simples direito de trabalhar, tendo em vista que estes refletem apenas um aspecto daqueles, qual seja o âmbito individual de cada trabalhador.
A Constituição Federal, ao enumerar o direito fundamental ao trabalho como sendo a espinha dorsal da afirmação da dignidade da pessoa do trabalhador no âmbito social, anexou uma série de ouros direitos correlatos, sem os quais não há como conceber a efetivação do trabalho digno.
É neste sentido que se garante ao trabalhador um extenso rol de direitos, partindo-se das várias dimensões do homem-trabalhador, em analogia á visão ampliativa da condição humana traçada por Miguel Reale e Luigi Bagolini[3].
Assim, garante-se ao trabalhador, por exemplo, o desenvolvimento de suas atividades em um ambiente hígido e seguro, compreendendo medidas assecuratórias de Segurança e Medicina do Trabalho (art. 7º, XXII, XXIII, XXVIII); normas de proteção contra dispensas arbitrárias (art. 7º, I, II e XXI, e art. 10 do ADCT); uma teia assecuratória do valor - salário (art. 7º IV, V, VI, VII, VIII, IX e X); regras visam traçar a duração do trabalho de modo a garantir-lhe pausas para a reposição da energia, para a inserção no contexto social e familiar, para a edificação de sua cultura, lazer (art. 7º XIII,XIV,XV,XVI,XVII); normas antidiscriminação, especialmente no que concerne á inserção da mulher no mercado de trabalho (art. 7º, XXX, XXXI, XXXII, XVIII, art. 10, § 1º do ADCT), dentre outros aspectos.
Esta extensa (contudo exemplificativa) enumeração serve para deixar evidente que não há como se garantir um direito fundamental ao trabalho digno e emancipatório se não se estabelecer um arcabouço jurídico circundante capaz de forçar os agentes sociais, especialmente empregadores, a enxergarem o trabalhador como força motriz do desenvolvimento do país.
Neste sentido, lembra-nos Miguel Reale o perigo da exaltação, pura e simples, do trabalho:
em qualquer forma imanentista de vida, com a redução trágica do lazer a uma simples pausa entre dois momentos de trabalho, assim como se deixa uma máquina parada, por certo lapso de tempo, a fim de evitar-se o desgaste do material. O que se proclama, ao contrário, é a necessidade de romper-se essa vinculação trágica entre o ato de trabalhar e o ato de não trabalhar, com o reconhecimento de que este tem validade em si e por si mesmo, gerando o ‘direito de não trabalhar’ (...) o trabalho e o lazer são categorias heterogêneas, não se devendo considerar o segundo como se fosse mero apêndice ou corolário do primeiro.( BAGOLINI, 1981, p. 13).
A necessidade de compreensão conjugada de tais institutos se torna imprescindível principalmente quando lembramos que a própria sobrevivência do trabalhador assim como da sua família impõem a inevitável urgência de se garantir a observância vinculativa dos direitos sociais ligados ao exercício do trabalho.
Se não há proteção efetiva ao trabalho, os próprios objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil tenderão á corrosão, na medida em que não será passível de se garantir a emancipação dos trabalhadores de modo a torná-los ativos na construção de uma democracia real.
Acerca da aplicabilidade dos direitos sociais, sobretudo da efetivação e garantia do direito social ao trabalho (decente), cumpre lembrar, de antemão, que a Constituição Federal de 1988, neste diapasão, não espelha apenas mero programa político. Do contrário, suas normas possuem força jurídica diferenciada, superior ás demais normas do contexto jurídico, na medida em que se impõe como parâmetro valorativo de toda interpretação e aplicabilidade do direito positivo.
Neste contexto, não há espaço para proposições no sentido de que os direitos sociais, por estarem atrelados á questões de disponibilidade financeira do Estado para prosperarem, sujeitam-se, regra geral, á denominada “cláusula de reserva do financeiramente possível”. Seriam, deste modo, classificados, invariavelmente, como as chamadas normas programáticas, de eficácia limitada, conforme as lições de José Afonso da Silva. [4]
A adoção deste raciocínio como regra (e não como exceção) mostra-se falacioso, mais assemelhado, inclusive, aos primórdios do capitalismo, com viés extremamente liberal.
De acordo com interessante análise feita por Luciana Caplan[5] em relação aos direitos trabalhistas em especifico, em termos empíricos tais argumentos não se sustentam, pois o estímulo á contratação de trabalhadores e a efetiva implementação dos direitos sociais não representa ônus ao erário, mas sim arrecadação sobre a folha de pagamento, dando um suporte, assim, ao sistema solidário de seguridade social.
Não há como se adotar, diante do compromisso socialmente assumido pelo constituinte de 1988, a tese de que os direitos relacionados ao desenvolvimento do trabalho humano, impostos, sobretudo pelo art. 7º e incisos da CF/88 sirvam de mero aconselhamento.
Noberto Bobbio, inclusive, auxilia-nos á enxergar tamanho despautério em adotar-se o referido raciocínio, ao formular a seguinte passagem:
Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem ou permitem hic et nunc, mas ordenam proíbem e permitem num futuro indefinido e sem prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confinados á vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o “programa” é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política: pode ainda ser chamado corretamente de “direito”? (BOBBIO, 2004, p. 92).
No atual contexto normativo vivido na sociedade brasileira, a Constituição Federal de 1988 é a arquiteta de todos os microssistemas legislativos, sejam eles de natureza privada ou coletiva.
Desta forma, defendemos a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais sociais no ordenamento pátrio, especialmente o direito social ao trabalho, na medida em que, através de seu implemento, o homem passa a atuar não mais como mero elemento de produção, mas sim como protagonista da afirmação de seus atributos de pessoa humana[6].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, deste modo, que a opção política feita pelo povo brasileiro, (ansioso por uma restauração econômica após longos anos de regime ditatorial), traduz-se na certeza de que, somente por meio do respeito á dignidade da pessoa humana e a força do valor social do trabalho tornar-se-á possível a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, capaz de, ao mesmo tempo, “garantir o desenvolvimento nacional” e “erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
O direito fundamental ao trabalho não tolera a acepção de garantia de qualquer tipo de trabalho, mas sim apenas aquele a garantir o patamar civilizatório mínimo como piso de direitos assegurados, jamais como teto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CUNHA, Maria Inês M. S. Alves da. Os direitos de personalidade e o contrato individual de trabalho. Revista do TST, v. 70, n. 1, jan-jul, 2004
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NOTAS:
[1] DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTR 2010, p. 31.
[2] TAVARES, André Ramos. Curso de direitos constitucional. São Paulo: Saraiva 2006, p. 76.
[3] REALE, Miguel. “Introdução á primeira edição” apud BAGOLINI, Luigi. O trabalho na democracia: filosofia do trabalho. São Paulo: LTR, 1981, p. 12.
[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
[5] CAPLAN, Luciana. Direitos sociais da constituição cidadã e as armadilhas ideológicas que levam à sua inefetividade: uma leitura a partir da teoria crítica. In Direitos sociais na Constituição de 1988: Uma análise crítica vinte anos depois. LTr, 2008, p. 298.
[6] CUNHA, Maria Inês M. S. Alves da. Os direitos de personalidade e o contrato individual de trabalho. Revista do TST, v. 70, n. 1, jan-jul, 2004, p.98.
Pós-graduada em Direito do trabalho e processo do trabalho. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, Suellen Sampaio de Andrade. O direito fundamental ao trabalho á luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51960/o-direito-fundamental-ao-trabalho-a-luz-do-principio-constitucional-da-dignidade-da-pessoa-humana-na-constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 02 nov 2024.
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