RESUMO: O presente trabalho visa expor a manifestação do fenômeno da seletividade penal no âmbito da criminalidade relacionada às drogas, notadamente no que diz respeito a questão da distinção entre as figuras do usuário e do traficante no contexto da Lei nº 11.343/2006.
PALAVRAS-CHAVE: Drogas; Seletividade do sistema penal; Usuário; Traficante.
1. SELETIVIDADE PENAL: CONCEITO E ANÁLISE
A rigor, a norma penal é dirigida a todas as pessoas, não importando muito a classe social a que pertença. Por outro lado, na prática, a norma penal atinge de maneira heterogênea as diversas classes sociais.
A ideia de que a pena é imposta na defesa da sociedade parece arraigada na maior parte dos grandes doutrinadores do ramo criminal. Bem assim, grosso modo, afirma-se que a pena defende a sociedade na medida em que o crime infringe bens e interesses relevantes (morais, éticos, dentre outros).
Foucault enfatiza que:
[...] o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele: o escândalo que suscita, o exemplo que dá a incitação a recomeçar se não é punido, a possibilidade de generalização que traz consigo. Para ser útil, o castigo deve ter como objetivo as conseqüências do crime, entendidas como uma série de desordens que este é capaz de abrir.[1]
Pode-se citar, ainda, Zaffaroni e Pierangeli quando lecionam:
[...] o direito penal deve cumprir um objetivo de segurança jurídica que não se diferencia, substancialmente, da defesa social bem entendida. [...] não se pode caber nenhuma dúvida acerca de que todo o direito deve ter uma aspiração ética, posto que todo o direito quer regular a conduta humana em sociedade e comina para que os homens se adaptem a suas regulações. Portanto, também, o direito penal tem uma aspiração ética: aspira evitar o cometimento e repetição de ações que afetam de forma intolerável os bens jurídicos penalmente tutelados.[2]
Vê-se que é bastante límpida a referência a interesses, valores, bens, todos considerados relevantes socialmente e merecedores, por essa importância, da proteção da legislação penal.
Dessa forma, tem-se uma valoração anterior à estipulação do crime e das penas, mensuração essa que deveria espelhar o que a sociedade prioriza para uma convivência harmônica.
A qualidade e, precipuamente, a quantidade da pena cominada têm direta vinculação com a relevância do bem ou interesse jurídico protegido, já que as desordens provocadas pela infração criminal no seio social têm também estreita comunicação com a violação destes bens. O clamor e a reação social mantêm relação direta com o bem ou interesse que se violou, na medida da relevância social desses bens.
Francisco Conde já aponta uma incongruência entre a função motivadora da norma penal e da norma social, afirmando que:
[...] determinadas classes ou grupos sociais desenvolvem estratégias de contenção ou neutralização das normas penais, quando estas podem afetar seus interesses de classes. Podemos citar o caso dos delitos econômicos, em que slogans como “economia de mercado”, “liberdade de imprensa” etc., às vezes são utilizados como pretexto, justificação ou escusa dos mais graves atentados aos interesses econômicos coletivos.[3]
Pois bem, a função motivadora da norma penal deveria ter íntima vinculação com a função motivadora da norma social. Entretanto, muitas vezes há um desencontro entre as motivações apontadas e essas incongruências não são inocentes.
Como ilustração da tese acima narrada tem-se a violação do patrimônio privado, que revela uma punição bem mais eficaz e exacerbada que a violação ao patrimônio público. Com o intuito de apresentar justificativa plausível, alguns doutrinadores indicam que a violação ao patrimônio público é apenada de forma mais branda porque o próprio povo não sente tal crime de forma gravosa. Em outras palavras, se é seu celular ou seu automóvel que é subtraído, o cidadão sofre bem mais com esse fato em cotejo com o seu pesar quando sabe pela imprensa que foram desviados milhões de reais dos cofres públicos ou que tal empresário sonegou mais alguns milhões em impostos.
Desse modo, as penas cominadas aos mais diversos crimes revelam indisfarçável comprometimento do legislador com as classes mais abastadas, em detrimento das classes historicamente marginalizadas da sociedade, e isso tem uma razão de ser.
A seletividade social da norma penal é indubitável e pode ser creditada, pelo menos parcialmente, à falta de representatividade dos membros do Congresso Nacional; soma-se a isso o comodismo dos cidadãos expressado pelo sentimento de impotência diante de uma prática amplamente disseminada. Por conseguinte, essa seleção ataca justamente a parcela mais carente da população. Definitivamente, não se pode dizer que a norma penal protege os bens de maior relevância social, essa protege indiscutivelmente, e às escâncaras, os interesses da classe dominante.
É mister, ainda, trazer à baila fragmento da lição de Juarez Cirino dos Santos, que evidencia essa heterogeneidade no alcance das penas previstas, quando expõe os fins da pena privativa de liberdade:
1) o controle repressivo dos inimigos de classe do Estado capitalista (as classes dominadas, em geral, e os marginalizados do mercado de trabalho, em especial); 2) a garantia da divisão de classes, mediante a separação força de trabalho/meios de produção, origem das desigualdades sociais, característica das relações de produção capitalista; 3) a produção de um setor de marginalizados/criminalizados (reincidentes e rotulados como criminosos, em geral), marcados pela posição estrutural (fora do mercado de trabalho) e institucional (dentro do sistema de controle), como amostra do que acontece aos que recusam a socialização pelo trabalho assalariado. Em síntese, os objetivos da pena criminal (e do aparelho carcerário) podem ser definidos por uma dupla reprodução: reprodução das desigualdades sociais fundadas na divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, e reprodução de um setor de marginalizados/criminalizados (no circuito da reincidência criminal), cuja função é manter a força de trabalho ativa integrada no mercado de trabalho, como força produtiva dócil e útil, intimidados pela “inferiorização” social resultante da insubordinação à disciplina do trabalho assalariado[4].
Nesse passo, o estudo da Seletividade do Direito Penal ganha maior pertinência a partir do momento em que se relaciona com a fase de individualização de condutas daqueles acusados de praticarem determinados atos havidos como ilícitos penais. Assim, ao se admitir aplicação seletiva do Direito Penal sobre indivíduos vulneráveis às agências de repressão, pode-se verificar os efeitos nefastos de determinados dispositivos que fomentam tal prática, como é o caso do artigo 28, parágrafo 2º, da Lei nº. 11.343/2006, como apontado em tópicos anteriores.
Ademais, pode-se partir para soluções práticas no sentido de amenizar tal programação seletiva, contribuindo para que o Direito Penal mantenha-se na sua função de tutela de bens jurídicos fundamentais, resguardando-se a dignidade de seus destinatários.
Com o escopo de enriquecer a exposição ora proposta, é imprescindível expor a ideia de seletividade penal tendo como base a obra “Direito Penal Brasileiro” [5], de autoria do penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, tendo sido escrita em coautoria com Nilo Batista e com participação de mais dois autores.
Na referida obra, Zaffaroni e outros desenvolvem o conceito de criminalização, entendido como o processo de seleção penalizante que submete um reduzido número de pessoas à coação penal. Tal processo de criminalização é concretizado por um conjunto de agências, as quais desempenham as mais variadas funções, formando o denominado sistema penal[6].
O processo seletivo de criminalização se desenvolve em duas etapas principais. A primeira, denominada de criminalização primária, constitui-se como o efeito de sancionar uma lei penal material tendente a incriminar ou permitir a punição de certas pessoas. Tal tarefa, segundo os autores, é desempenhada predominantemente por órgãos legislativos e executivos (agências políticas), ficando a cargo das agências de criminalização secundária (promotores, advogados, policiais, juízes e agentes penitenciários) a operacionalização de suas respectivas programações punitivas.
Enquanto a criminalização primária atua no intuito de selecionar determinados atos, cabe à criminalização secundária o papel de efetivar a ação punitiva, que será exercida sobre pessoas no plano concreto. Assim, primeiramente a polícia detecta determinada conduta (ou pessoa) havida como suspeita, diante da constatação de indícios, iniciando as diligências necessárias para a elucidação do fato, de modo a comprovar a autoria e a materialidade de um suposto delito. Por conseguinte, após a fase inquisitória, cabe aos órgãos de acusação levar à juízo a peça que aponta determinada pessoa como autora de um possível delito, restando ao órgão julgador admitir ou não a denúncia, que abrirá espaço para um procedimento que, pelo menos em um Estado Democrático de Direito, haveria de ser um instrumento de defesa do réu. Condenado o réu, no caso de pena privativa de liberdade, cumprirá às agências penitenciárias a função de custodiar o condenado até efetivo cumprimento da reprimenda.
Todavia, existe um fator importantíssimo a ser considerado:
A criminalização primária é um programa tão imenso que nunca e em nenhum país se pretendeu levá-lo a cabo em toda a sua extensão nem sequer em parcela considerável, porque é inimaginável. A disparidade entre a quantidade de conflitos criminalizados que realmente acontecem numa sociedade e aquela parcela que chega ao conhecimento das agências do sistema é tão grande e inevitável que seu escândalo não logra ocultar-se na referência tecnicista a uma cifra oculta. [...] Por conseguinte, considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário.[7]
Nesse diapasão, Zaffaroni e colaboradores constatam uma maior vulnerabilidade de determinados grupos, quase sempre pessoas sem poder e que atuam criminalmente por meio de fatos grosseiros ou insignificantes, perante os órgãos de criminalização secundária. A razão disso repousa em alguns fatores, como o fato de as características das pessoas desses grupos se enquadrarem nos estereótipos criminais.[8]
Nessa seara argumentativa, Salo de Carvalho leciona:
[...] A volumosa publicidade nos casos de violência, sobretudo em conduta em condutas com expressivo dano ao ofendido (crimes contra a vida e contra a liberdade sexual, p. ex.), fixa no imaginário a estética da delinqüência (estereótipo), (re)significando a criminalidade e apontando as baterias do sistema punitivo aos grupos vulneráveis, ou seja, àqueles que por correspondência são identificados ou os que através de posturas ou atos pessoais são identificáveis com o estereótipo. [...] O conceito de vulnerabilidade permite não só constatar o processo de atribuição dos rótulos, no qual o estigmatizado adquire posição passiva (o estigma lhe é empregado), como o processo de risco pessoal, da conduta comissiva pessoal ou coletiva na qual o sujeito se coloca em situações estigmatizáveis. Assim, os meios de comunicação e os aparelhos punitivos não atuam exclusivamente como mecanismos estigmatizadores, pois, em muitos casos, o processo se inicia com os próprios sujeitos que serão posteriormente alcançados pelo status negativo. [9]
Ademais, os ilícitos praticados por pessoas de uma maneira menos grosseira, geralmente aquelas pertencentes às classes mais altas, acabam encobertos pela comunicação a que têm amplo acesso. A comunicação mostra os crimes praticados de forma tosca, predominantemente por pessoas de baixo poder econômico, como os únicos delitos praticados.
Zaffaroni e outros[10] afirmam também haver uma seleção vitimizante, em que a tendência dos órgãos de segurança pública é a de priorizar o bem-estar de classes mais abastadas, tornando grupos economicamente inferiores mais vulneráveis à vitimização. Tudo isso origina, paradoxalmente, a ideia, entre os grupos economicamente desfavorecidos, de ser a crescente repressão penal a solução para o problema da segurança pública, não obstante serem esses mesmos grupos os principais alvos da seleção criminalizante.
Feito todo o estudo da questão estrutural da seletividade, cabe colocar em evidência o fato de que determinados sistemas penais apresentam um maior grau de seletividade que outros:
Quando as seleções criminalizantes de diversos sistemas penais são comparadas, observam-se diferentes graus e modalidades das mesmas. A seletividade é mais acentuada em sociedades estratificadas, com maior polarização de riqueza e escassas possibilidades de mobilidade vertical. [11]
Em suma: a seletividade vem do pensamento capitalista de consumo, do axioma de que aquele que tem recursos não delinque, enquanto se coloca em dúvida a integridade moral daquele que não goza da mesma condição. Ademais, essa idea preconceituosa está arraigada na cultura brasileira, por conseguinte, inconscientemente se afirma que este menos favorecido teria a propensão à delinqüência como meio de subir na estratificação social, a fim de alcançar privilégios classistas garantidas às elites dominantes. É um pensamento infundado e infeliz que leva a uma estigmatização da população de baixa renda. Por fim, diante de tal pensamento, considera-se a predominância do direito penal do autor sobre o direito penal do delito; este último, apesar de muito distante da realidade brasileira, é o modelo que se pretende alcançar.
2. MANIFESTAÇÃO DA SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL NA LEI DE DROGAS
Tomando como objeto de análise a Lei nº. 11.343/2006 é possível observar atuação da seletividade do Direito Penal. Isto posto, é coerente tecer algumas considerações sobre a matéria.
Como já enfatizado neste trabalho, o local e as circunstâncias sociais e pessoais do agente são fatores estabelecidos pela própria legislação como determinantes na distinção usuário/traficante, pois bem, trata-se claramente do exercício da seletividade nesta norma penal.
Como via de conseqüência, a Lei nº. 11.343/2006 determina que a distinção entre usuário e traficante tenha por base o caso concreto. Bem assim, como apontado, devem ser consideradas a natureza da droga, sua quantidade, local e condições da prisão, modo de vida do agente, seus antecedentes etc.
Nessa esteira seletista, é importante evidenciar um ponto objeto de crítica, em que pese a lei disciplinar que caberá ao juiz diferenciar o usuário do traficante, na prática, é a polícia que efetua a prisão (ou o encaminhamento à Delegacia, no caso de uso de drogas, haja vista que não se impõe flagrante ao usuário) e é o Delegado de Polícia que conduz o inquérito (ou é o responsável pelo Termo Circunstanciado, no caso de entender que o caso enquadra-se como consumo e não de tráfico), portanto, a diferenciação começa já na abordagem do sujeito descoberto com a droga e no seu encaminhamento à Delegacia de Polícia.
De mais a mais, pela leitura do artigo 28, da Lei de Drogas em vigência, que estabelece critérios para diferenciar o usuário do traficante, não causa surpresa verificar que um dos fatores a serem considerados pelo juiz é o local (onde foi feita a apreensão) e as condições pessoais e sociais do sujeito encontrado com drogas ilícitas. A seletividade primária aqui é incontroversa.
Prevendo a lei que o local e as condições sociais determinam a diferença entre usuários e traficantes, o Estado, amparado por este Diploma Legal, não tem dúvidas de que são as populações mais pobres são as responsáveis pelo tráfico de drogas no Brasil.
Neste sentido, se uma pessoa da classe média, num bairro também de classe média, for encontrada com determinada quantidade de droga, poderá ser mais facilmente identificada como usuário (e, portanto, não será submetida à prisão) do que um pobre, com a mesma quantidade de droga, em seu bairro carente. Neste exemplo, ilustra-se a seletividade secundária.
Vale transcrever a experiência de Zaccone:
[...] um delegado do meu concurso, lotado na 14 DP (Leblon), autuou, em flagrante, dois jovens residentes na zona sul pela conduta descrita para usuário, porte de droga para uso próprio, por estarem transportando, em um veículo importado, 280 gramas de maconha [...], o que equivaleria a 280 “baseados” [...] o fato de os rapazes serem estudantes universitários e terem emprego fixo, além da folha de antecedentes criminais limpa, era indiciário de que o depoimento deles, segundo o qual traziam a droga para uso próprio era pertinente. Se a quantidade de maconha apreendida fosse dividida por dois, seriam 140 cigarros, mais ou menos, para cada um dos universitários presos em flagrante, mas o delegado, mesmo assim, entendeu todos esses cigarros seriam para uso pessoal. [12]
No que concerne ao caso narrado dos estudantes universitários classificados como usuários, com 280 (duzentos e oitenta) gramas de maconha, verifica-se que, a condição econômica e social foi determinante para o enquadramento como consumidores, se fossem pobres, certamente seriam considerados traficantes.
O ordenamento jurídico, mais especificamente a Lei de Drogas, possibilita uma indagação que está longe de obter resposta; o que pode ser levado em conta os juízes para afirmar que pessoas portando uma quantidade pequena de drogas são realmente traficantes e não consumidores?
Pela leitura desse trabalho e diante do conteúdo da Lei nº. 11.343/2006, a resposta está nas condições sociais e pessoais, bem como no local da apreensão do sujeito, pois a quantidade de droga apreendida, por si só, não autoriza uma classificação. O que claramente demonstra o quão seletivo é o sistema anti-drogas adotado pelo Brasil, evidenciando, assim, que tal legislação está em absoluta consonância com as demais normas do Direito Penal.
Ainda, com fundamento no que entende Emmanuela Lins em seus estudos sobre os critérios constantes do parágrafo 2º do artigo 28 da Lei, ao discorrer sobre o local e a condição em que desenvolve a ação de confisco da substância ilegal, afirma que:
O local e a condição em que ocorreu a apreensão formarão o cenário e o enredo em que estava inserido o usuário no momento em que foi flagrado. A doutrina fala, por exemplo, em locais em que, normalmente, são vendidas drogas, zona típica de tráfico. É conveniente ressaltar, entretanto, que se existem essas zonas é porque também existem os usuários que lá transitam; assim, a presença de indivíduos neste loco não é razão suficientemente para enquadrá-lo no tráfico. [13]
Realmente, criminalizando as classes sociais mais pobres, na verdade, o Estado, sob o discurso de que deve exterminar o tráfico de drogas, encontra justificativa para segregar e controlar as classe vulneráveis, bem como para fazer investimentos milionários em segurança pública.
A conhecida figura do traficante perigoso, que comanda o crime organizado e que não teme à lei, bem como, que sem piedade, destrói e mata dezenas de pessoas, interferindo negativamente na conduta dos jovens da classe média, consoante frequentemente noticiado na imprensa, na verdade, na maior parte das vezes, não passa de réu primário, preso sozinho, com pouca quantidade de drogas e não tem associação com o crime organizado, por isso, tal encarceramento em nada contribui para o tão sonhado combate ao tráfico das indesejadas substâncias ilícitas.
Desse modo, retomando o conteúdo ventilado no tópico acima, pode-se confirmar a seletividade na criminalização secundária e o caráter discriminatório cultural-classista da discricionariedade comparando o texto legal com a aplicação no caso concreto. Os artigos 28 e 33 da Lei de Drogas têm parágrafos de conteúdo textual muito parecido. O artigo 28, parágrafo 1º, da referida Lei, equipara as condutas de semear, cultivar ou colher, para consumo próprio, plantas destinadas à preparação de substância que possa causar dependência, a uma conduta de usuário, levando em consideração que seja possível a produção de pequena quantidade do produto.
Nesse sentido, o artigo 33, inciso III, da Lei, se utiliza dos mesmos núcleos verbais tipificando a conduta como aquela relacionada ao tráfico. A priori, conclui-se que será a conduta enquadrada em uma das hipóteses, dependendo da capacidade de produção de substância ilícita possível de acordo com a quantidade apreendida. Esta seria a aplicação inequívoca da letra da lei, uma vez que no artigo 28 utiliza-se da expressão “pequena quantidade” como parte do tipo em questão. Ocorre que, “pequena quantidade” é um tipo subjetivo, ficando ao discernimento da autoridade competente sua delimitação objetiva. O mesmo acontece com os núcleos verbais adquirir, ter em depósito, transportar, trazer consigo ou guardar; empregados para tipificar crimes diferentes nos artigos 28 e 33. Portanto, mais uma vez, cabe à autoridade exercitar sua discricionariedade para estabelecer aonde se enquadra a conduta praticada pelo protagonista.
Diante do acima exposto, somado à atuação da seletividade penal, pode-se afirmar que o perfil encontrado nas decisões judiciais é o do “traficante de drogas”, considerado “inimigo social”, autorizando a condenação por um crime equiparado à hediondo e, ainda, justifica a repressão bélica nas favelas e periferias de todo Brasil, bem como os altos investimentos em segurança pública com vistas à exterminar o que muitos consideram como a causa de toda violência e criminalidade no país.
Pois bem, é na favela, na periferia, no morro, ou nos bairros carentes, que está a atuação (fortemente) armada do Estado, são nesses lugares que a sociedade espera que o crime organizado seja desfeito e que os traficantes sejam detidos, mesmo que isso sacrifique a vida de muitas pessoas. Ocorre que, na prática, apenas os “pequenos traficantes” são detidos, demonstrando que apesar de toda a agressividade punitiva da legislação penal de drogas, os grandes traficantes, aqueles que comandam o comércio ilícito, permanecem intocados, bem como todo o sistema de tráfico do Brasil. Pode-se, então, concluir que não é de interesse do Poder Público combater tal prática criminosa e que o rigor previsto na legislação de drogas atinge apenas aqueles considerados vulneráveis e conserva a segregação arraigada na sociedade pátria.
Assim, por trás do discurso da segurança pública e do combate à criminalidade, a Lei de Drogas, contribuiu, e muito, para aumentar a seletividade penal e para fomentar a atuação repressiva do Estado no “combate ao tráfico”.
Por fim, em nome de um combate contra um “traficante” de drogas que foi estereotipado, apoiado por uma legislação penal comprovadamente seletiva, o Estado brasileiro, além de criminalizar a miséria, viola, despreocupadamente, os direitos humanos das classes sociais mais vulneráveis, mantendo intocadas as classes dominantes.
3. O ESTEREÓTIPO DO TRAFICANTE DE DROGAS NO BRASIL
No momento da verificação dos mecanismos que criaram o estereótipo do “traficantes de drogas”, que é alvo de controle punitivo e pertencem às classes sociais mais baixas, consideradas perigosas e, portanto, demandam o sistema de repressão bélica ao tráfico de drogas, percebe-se que aqueles considerados “perigosos”, mesmo que sejam enquadrados nos tipos penais menos reprováveis mas que, por disposição legal, são equiparados à traficantes, serão submetidos à pena de prisão.
Como já dito, a atual lei brasileira que rege a matéria pune com muito rigor o traficante que, como será demonstrado, foi estereotipado pelo Estado com apoio da mídia.
Quando se imagina a figura de um traficante, quase sempre elabora-se a imagem de um rapaz jovem, negro (ou mulato), de bermuda e tênis, morador de favela. Em conseqüência disso, muitas pessoas imaginam que o tráfico de drogas está situado nos locais onde estes jovens moram, ou seja, o tráfico se localiza em favelas, nas periferias ou em bairros considerados “carentes”.
Essa figura, amplamente divulgada pela mídia, é vista como um sujeito frio, destemido, que controla grandes quantidades de drogas e que faz parte do “crime organizado”.
Na verdade, o “medo” do traficante, o pavor da drogas ilícitas e dos seus efeitos sobre o comportamento dos jovens, a necessidade de se combater o “crime organizado” e guerrear contra um inimigo declarado, justificam, no Brasil, a manutenção da militarização do modelo repressivo contra as drogas e da previsão de tão rigorosas penas destinadas ao traficante.
Com o apoio da mídia e da elite opressora, a repressão policial que recai sobre as favelas e comunidades carentes, sempre é justificada em nome da “guerra às drogas” que utopicamente ocasionaria a pacificação social. O número de mortes, por ano, de negros, pobres, moradores de favelas, evidenciam um verdadeiro genocídio por parte do Estado, mas essas mortes são vistas por muitas pessoas, e pelo próprio ente estatal, como necessárias para o combate às drogas e alcance do objetivo comum da sociedade.
O que causa espanto é que essas mortes, por estarem justificadas pelo Estado e “autorizadas” por uma grande parcela da população, não serão, em sua esmagadora maioria, investigadas e muito menos gerarão um processo judicial. Ser condenado, então, por matar um traficante, ou que seja suposto traficante, é quase impossível no atual modelo segurança pública adotado em muitos (se não todos) estados brasileiros. Diante de tal constatação, não há quem se espante com os alarmantes níveis de morte nas favelas e morros do país, ao contrário, há quem considere tal prática como necessária para o bem da coletividade e manutenção da sociedade nos moldes postos.
É inegável, a imagem do traficante como o negro favelado, armado e perigoso, estereótipos mostrados em filmes como “Cidade de Deus”[14], onde o comandante do tráfico se personifica em um homem sem educação e naturalmente perverso, morador de uma favela no Rio de Janeiro, mostra uma realidade frágil e típica do imaginário da elite, contribuindo para que se propague tal imagem estigmatizada. Nesse passo, o referido estigma é o que será aplicado a qualquer indivíduo que possua características físicas e sociais semelhantes, são os estudos de Lombroso[15], já desconsiderados a partir do estudo da Psicologia, aplicados diariamente.
Vale ressaltar que o homem universitário, branco, perfumado e bem vestido, que vende drogas em festas privadas de um meio social dominante, em regra, não é taxado como traficante, pois não possui o perfil discriminado; ainda, a comprovação dessa relação criminosa causa espanto na sociedade, já que essa não é a normalidade dos casos. Este homem descrito acima não poderia ser caracterizado como traficante, ele se enquadraria, no máximo, como dependente. Ainda fazendo referência ao cinema nacional e contemporâneo, é válido comentar o “Meu Nome não é Johnny”[16], nele o protagonista é da elite carioca, chega a traficar para o exterior, mas ainda assim recebe tratamento diferenciado ao ser considerado como dependente, o que o leva a cumprir a pena em manicômio judicial. Interessante, pois, relembrar que os comentários à época afirmavam ter sido, a juíza do caso, muito dura na condenação, já que o protagonista do filme era vítima e os verdadeiros culpados da disseminação da droga estavam nas favelas e nos morros; esquecem que vender nas favelas, em meio à pobreza e degradação humana, é tão crime quanto vender nos lugares taxados como “bem frequentados”.
Neste sentido vale destacar o que ensinam Zaffaroni e outros[17], relembrando um dos tópicos deste trabalho, "o estereótipo acaba sendo o principal critério da criminalização secundária; daí a existência de certas uniformidades da população penitenciária". Bem assim, tem-se na imagem estigmatizada do criminoso o pobre, tratando a pobreza, inclusive, como fator de risco à delinquência.
4. CONCLUSÃO
Diante de tudo quanto foi exposto, fica claro o caráter seletivo e discriminatório do sistema penal brasileiro. A dominação social em diversos níveis é natural, bem como a defesa de interesses de uma classe em detrimento da coletividade, mas sendo um princípio basilar da sociedade constituída o da igualdade, a seletividade é inaceitável.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CIDADE de Deus. Direção: Fernando Meirelles. Roteiro: Bráulio Mantovani (baseado no livro de Paulo Lins). Intérpretes: Alexandre Rodrigues; Matheus Nachtergaele; Leandro Firmino e outros. [S.l.]: O2 Filmes; VideoFilmes; Globo Filmes; Lumiere; Wild Bunch; Hank Levine Film, 2002. DVD (130 min), son., color. 35 mm.
CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
MEU nome não é Johnny. Direção: Mauro Lima. Roteiro: Mariza Leão e Mauro Lima (baseado no livro de Guilherme Fiúza). Intérpretes: Selton Mello; Giulio Lopes; Júlia Lemmertz e outros. [S.l.]: Atitude Produções e Empreendimentos; Globo Filmes; Teleimage; Apema Filmes, 2008. DVD (124 min), son., color., 35 mm.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006.
VILAR LINS, Emmanuela. A nova Lei de Drogas e o usuário: a emergência de uma política pautada na prevenção, na redução de danos, na assistência e na reinserção social. In: NERY FILHO, Antonio et al. (Org.). Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA: CETAD, 2009.
ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1997.
[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 78.
[2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1997, p. 97-98.
[3] CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 25-26.
[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006, p. 291.
[5] Cf. ZAFFARONI et al., 2006.
[6] Cf. ZAFFARONI et al., 2006.
[7] Ibid., p. 43-44.
[8] ZAFFARONI et al., 2006.
[9] CARVALHO, 2010, p. 40-41.
[10] Cf. ZAFFARONI et al., op. cit.
[11] ZAFFARONI et al., 2006, p. 50.
[12] ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 19-20.
[13] VILAR LINS, Emmanuela. A nova Lei de Drogas e o usuário: a emergência de uma política pautada na prevenção, na redução de danos, na assistência e na reinserção social. In: NERY FILHO, Antonio et al. (Org.). Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA: CETAD, 2009. p. 251.
[14] Cf. CIDADE de Deus. Direção: Fernando Meirelles. Roteiro: Bráulio Mantovani (baseado no livro de Paulo Lins). Intérpretes: Alexandre Rodrigues; Matheus Nachtergaele; Leandro Firmino e outros. [S.l.]: O2 Filmes; VideoFilmes; Globo Filmes; Lumiere; Wild Bunch; Hank Levine Film, 2002. DVD (130 min), son., color. 35 mm.
[15] Cesare Lombroso defendia ideias acerca do “criminoso nato”. Preconizava que a partir da análise de determinadas características somáticas seria possível antever aqueles indivíduos que se voltariam para o crime.
[16] Cf. MEU nome não é Johnny. Direção: Mauro Lima. Roteiro: Mariza Leão e Mauro Lima (baseado no livro de Guilherme Fiúza). Intérpretes: Selton Mello; Giulio Lopes; Júlia Lemmertz e outros. [S.l.]: Atitude Produções e Empreendimentos; Globo Filmes; Teleimage; Apema Filmes, 2008. DVD (124 min), son., color., 35 mm.
[17] ZAFFARONI et al., 2006, p. 43.
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2012). Pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp/Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (2013).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Renata Visco Costa de. A seletividade do sistema penal nos crimes de drogas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 out 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/52282/a-seletividade-do-sistema-penal-nos-crimes-de-drogas. Acesso em: 01 nov 2024.
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