Resumo: O presente artigo tem por objetivo demonstrar a ilegalidade da Portaria Normativa nº 4 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão da Secretaria de Gestão de Pessoas, de 06 de abril de 2018, bem como sua contrariedade à interpretação firmada no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41/DF. Uma norma só será justa quando o sentimento dela extraído for o de Justiça. Tal sentimento não é atingido quando da análise da portaria supracitada, devendo sua aplicação ser afastada.
Palavras-chave: Concursos Públicos; Procedimento de heteroidentificação; autodeclaração; sistema de cotas.
Abstract: The purpose of this article is to demonstrate the illegality of Normative Ordinance No. 4/2018, as well as its contradiction to the interpretation signed in the judgment of Declaratory Action for Constitutionality No. 41 / DF. A rule will only be fair when the feeling extracted from it is that of justice. Such feeling is not achieved when analyzing the aforementioned ordinance, and its application should be removed.
Keywords: Public tenders; Hetero-identification procedure; self-declaration; quota system
Sumário: Introdução; 1 – Da autodeclaração e do procedimento de heteroidentificação; 2 – Do direito do candidato de boa-fé permanecer na lista da ampla concorrência. Da observância à Lei 12.990/2014; 3 - Do momento para desistência do candidato negro a uma das vagas afirmativas; Considerações Finais. Referências bibliográficas
Introdução
Em atendimento às políticas afirmativas, a Lei 12.990/2014 destinou às pessoas negras (pretos ou pardos) 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos.
Há uma frase feliz de Martin Luther King que diz: “É óbvio que se um homem entra na linha de partida de uma corrida trezentos anos depois de outro, o primeiro teria de fazer uma façanha incrível a fim de recuperar o atraso[1]”. Logo, para alcançar tal objetivo, existem as políticas de ação afirmativa.
A lei supracitada foi objeto de Ação Direta de Constitucionalidade (nº 41), de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, julgada procedente pelos seguintes fundamentos:
DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE CONSTITUCIONALIDADE. RESERVA DE VAGAS PARA NEGROS EM CONCURSOS PÚBLICOS. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI N° 12.990/2014. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.1. É constitucional a Lei n° 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. 1.1. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente. 1.2. Em segundo lugar, não há violação aos princípios do concurso público e da eficiência. A reserva de vagas para negros não os isenta da aprovação no concurso público. Como qualquer outro candidato, o beneficiário da política deve alcançar a nota necessária para que seja considerado apto a exercer, de forma adequada e eficiente, o cargo em questão. Além disso, a incorporação do fator “raça” como critério de seleção, ao invés de afetar o princípio da eficiência, contribui para sua realização em maior extensão, criando uma “burocracia representativa”, capaz de garantir que os pontos de vista e interesses de toda a população sejam considerados na tomada de decisões estatais. 1.3. Em terceiro lugar, a medida observa o princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão. A existência de uma política de cotas para o acesso de negros à educação superior não torna a reserva de vagas nos quadros da administração pública desnecessária ou desproporcional em sentido estrito. Isso porque: (i) nem todos os cargos e empregos públicos exigem curso superior; (ii) ainda quando haja essa exigência, os beneficiários da ação afirmativa no serviço público podem não ter sido beneficiários das cotas nas universidades públicas; e (iii) mesmo que o concorrente tenha ingressado em curso de ensino superior por meio de cotas, há outros fatores que impedem os negros de competir em pé de igualdade nos concursos públicos, justificando a política de ação afirmativa instituída pela Lei n° 12.990/2014. (...)
Quando da prolação dos votos, além de declarar a constitucionalidade da lei, os Ministros foram um pouco mais além, dando intepretação conforme a Constituição a alguns dos dispositivos do diploma inclusivo, principalmente no que tange aos artigos 2º e 3º.
O presente artigo tem por objetivo demonstrar o escopo da norma afirmativa e como esta vem sendo distorcida pelos editais das bancas concursais, bem como debater a ilegalidade de alguns dispositivos da Portaria Normativa nº 4 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão da Secretaria de Gestão de Pessoas, de 06 de abril de 2018.
Nesta oportunidade, traremos também as dificuldades que candidatos pardos vêm enfrentando em alguns concursos, quando do não reconhecimento da autodeclaração apresentada, mesmo diante de sua boa-fé.
1. Da autodeclaração e do procedimento de heteroidentificação
Nos termos do artigo 2º da Lei 12.990/2014, “poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Para estudar a importância e as consequências da raça em uma sociedade por meio de levantamentos, como censos e pesquisas domiciliares, é preciso identificar a que grupos raciais pertencem as pessoas por meio de um sistema de classificação. Um sistema de classificação racial possui dois componentes: a classificação em raças, isto é, o conjunto das categorias raciais; e o método de identificação do pertencimento das pessoas às categorias raciais (OSORIO, 2003)[2].
A classificação racial atualmente empregada pelo IBGE distingue as variedades pela característica “cor da pele”, que pode ser branca, preta, amarela e parda, a única exceção sendo a categoria indígena, introduzida no Censo Demográfico 1991.
Em razão das características fenotípicas, e nos termos da classificação racial elencada pelo IBGE, o candidato deve, em observância à sua concepção de pertencimento, autodeclarar-se preto ou pardo, no momento da inscrição, solicitando concorrer em uma das vagas afirmativas ofertadas.
Entretanto, constatada a falsidade da autodeclaração, prevê o parágrafo único do artigo 2º da lei citada a possibilidade de eliminação do candidato, desde que instaurado previamente procedimento administrativo, em que lhe sejam assegurados os direitos ao contraditório e à ampla defesa, vejamos:
Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
Sobre o tema, manifestou-se com o brilhantismo que lhe é peculiar, o ilustre Ministro do STF, quando de relatoria do ADC nº 41, Luís Roberto Barroso:
Quanto à questão da autodeclaração, essa é uma das questões mais complexas e intrincadas em uma política de ação afirmativa, porque, evidentemente, você deve respeitar as pessoas tal como elas se autopercebem. Assim, pode ser que alguém que eu não perceba como negro se perceba como negro, ou vice-versa. Essa é uma questão semelhante à que enfrentamos aqui na discussão sobre transgêneros e de acesso a banheiro público. Às vezes, a pessoa tem fisiologia masculina, mas um psiquismo feminino ou vice-versa. E, nesse caso, obrigar alguém que se perceba como mulher a frequentar um banheiro masculino é altamente lesivo à sua dignidade, ao seu direito fundamental. Assim, como regra geral, deve-se respeitar a autodeclaração, como a pessoa se percebe. Porém, no mundo real, nem sempre as pessoas se comportam exemplarmente, e há casos - e, às vezes, eles se multiplicam - de fraude.
Portanto, o que a Lei 12.990 faz? Ela estabelece, como critério principal, a autodeclaração, mas permite que, no caso de uso irregular, inveraz, desonesto da autodeclaração, haja algum tipo de controle. É o que diz o parágrafo único do artigo 2º(...).
Assim, a meu ver, não é incompatível com a Constituição, respeitadas algumas cautelas, que se faça um controle heterônomo, sobretudo, nos casos em que haja fundadas razões para acreditar que houve abuso na autodeclaração.
O STF, quando do julgamento da ADC, permitiu, em prol de coibir a utilização fraudulenta da política afirmativa instituída, o emprego de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
A interpretação firmada admitiu, como um dos meios de aferição, a entrevista presencial, a ser utilizada apenas em caso de fundada suspeita de fraude, vedada sua aplicação como fase do concurso.
Vejamos o voto do Ministro Alexandre de Moraes, que corrobora esta conclusão:
Portanto, deve ser oportunizado aos candidatos optantes por concorrer no sistema de vagas reservadas a apresentação de documentos capazes de comprovar a declaração por eles subscritas. Apenas se a análise desses documentos se revelar insuficiente é que deverá ser acionada a alternativa mais invasiva, consistente em convocação para entrevista presencial, em que o candidato poderá ser indagado sobre os elementos que materializam a sua concepção de pertencimento. Diante da necessidade de manter a fidelidade teleológica das ações afirmativas de recorte racial, entendo ser relevante que a Corte estabeleça interpretação conforme à Constituição do art. 2º, § único da Lei 12.990/14, para fixar que (a) é mandatória a realização de fase apuratória da veracidade das declarações dos candidatos interessados em concorrer às vagas reservadas aos negros; e (b) nesse procedimento, deve ser priorizada a avaliação de natureza documental, fundada em fotografias e documentos públicos, figurando a entrevista como opção residual.
Com lucidez e clareza o Ministro Alexandre de Moraes complementa:
De qualquer modo, parece fora de dúvida que, para preservar da melhor maneira possível a dignidade dos candidatos, evitando maiores constrangimentos, o ideal é que o processo de verificação da autenticidade da declaração privilegie, inicialmente, registros documentais capazes de corroborar a afirmação dos candidatos. Isso pode ser providenciado pela apresentação de fotografias ou até mesmo por documentos públicos que assinalem sinais étnico-raciais referentes aos candidatos e, também, a seus respectivos genitores.
Entretanto, apesar de apontado o norte pela Suprema Corte, o percurso vem sendo obliterado nos Concursos Públicos. Os editais têm feito da heteroidentificação uma fase eliminatória do certame, determinando que todos os candidatos autodeclarados pretos ou pardos a ela sejam submetidos, em contrariedade ao escopo legislativo, ou seja, vem sendo instituído nos concursos um verdadeiro Tribunal Racial.
Um dos motivos desta deturpação da Lei 12.990/2014 é a irresponsável e confusa Portaria Normativa nº 4 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão da Secretaria de Gestão de Pessoas, de 06 de abril de 2018.
Tal portaria teve por fito regulamentar o procedimento de heteroidentificação dos candidatos negros, a ser previsto nos editais de abertura de concursos públicos para provimento de cargos públicos da administração federal direta, autárquica e fundacional, para fins de preenchimento das vagas reservadas, previstas na Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014.
Contudo, vários de seus dispositivos contrariam a lei que pretendeu regulamentar, sendo, por conseguinte, claramente ilegais.
O artigo 3º da indigitada portaria concede à autodeclaração presunção relativa de veracidade. Porém, seu §1º mitiga essa presunção, determinando a obrigatoriedade de confirmação da autodeclaração, independentemente de suspeita ou não de fraude.
O artigo 8º confirma que quem a editou não pretendeu seguir a decisão do STF, bem como não soube interpretar a Lei 12.990/2014, pois determina a realização do procedimento como uma fase eliminatória do concurso, da qual serão convocados em até três vezes o número de vagas reservadas, devendo os convocados, obrigatoriamente comparecerem perante à comissão designada, sob pena de automática eliminação, ou seja, não poderão concorrer nem mesmo na lista da ampla concorrência, o que é completamente ilegal e desproporcional.
No artigo 9º as contrariedades continuam, pois veda aos candidatos a apresentação de quaisquer registros ou documentos pretéritos, inclusive imagem e certidões referentes a confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais, indo de encontro à interpretação firmada por nossa Suprema Corte, que, pelo contrário, estimulou a utilização dos documentos como forma de controle da validade das autodeclarações, por ser uma medida menos invasiva.
O positivismo tradicional deve ser superado, pois o Direito não pode ser reduzido à lei se esta der causa ao afastamento da justiça e da legitimidade democrática, ordens primordiais ao Estado de Direito, fato que sabemos desde a Grécia antiga.
2. Do direito do candidato de boa-fé permanecer na lista da ampla concorrência. Da observância à Lei 12.990/2014.
Conforme exposto, em contrariedade ao sistema pretendido, foi imposto aos candidatos o dever de participarem, sob pena de eliminação, de entrevista presencial para fins de atestar a veracidade ou não do fenótipo declarado no momento da inscrição, independente de suspeita ou não de fraude, o que destoa, nos termos já exibidos, da interpretação conforme a Constituição outorgada pelo STF à Lei 12.990/2014.
Ocorre que, a portaria não cessou aí as ilegalidades, mostrando-se verdadeiro empecilho ao cumprimento da política afirmativa firmada, pois previu no artigo 11 uma verdadeira balbúrdia, em total contrariedade ao artigo 3º da Lei 12.990/2014. Vejamos o teor da repudiada norma:
Art. 11. Serão eliminados do concurso público os candidatos cujas autodeclarações não forem confirmadas em procedimento de heteroidentificação, ainda que tenham obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independentemente de alegação de boa‐fé. Parágrafo único. A eliminação de candidato por não confirmação da autodeclaração não enseja o dever de convocar suplementarmente candidatos não convocados para o procedimento de heteroidentificação.
Sendo assim, o candidato autodeclarado pardo que ocupa, em ampla concorrência, a primeira colocação geral do certame, além de ser obrigado a submeter-se ao “Tribunal Racial” determinado pela banca, sob pena de eliminação, caso tenha sua declaração não confirmada estará eliminado do certame, independentemente de sua boa-fé.
O preceito regulamentador vai de encontro ao artigo 3º da Lei 12.990/2014, que prevê exatamente o contrário, vejamos:
Art. 3º Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso;
§ 1º Os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas.
A própria portaria entra em contradição, pois prevê no artigo 2º, §3º:
§ 3º Os candidatos negros que optarem por concorrer às vagas reservadas na forma do § 1º concorrerão concomitantemente às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com sua classificação no concurso público.
A portaria elencada é ilegal e esbarra nos preceitos firmados pelo instituto que pretendeu regulamentar, que, até mesmo, já teve seu “modos operandi” direcionado pelo STF, quando do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso.
Viola, igualmente, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, pois atribuí efeito eliminatório ao não reconhecimento da autodeclaração pela comissão concursal, como se esta fosse uma fase do certame.
Diversos candidatos vêm sendo prejudicados por esta equivocada interpretação normatizada pela Portaria nº 04/2018, pois são eliminados, apesar de sua boa-fé ou de sua colocação na lista de ampla concorrência, em razão de um julgamento subjetivo proferido por uma Comissão, prejudicando todo o esforço destinado à obtenção do êxito no pleito concursal.
Frise-se que o único efeito possível do não reconhecimento é o impedimento de ingressar no cargo público a partir do sistema de cotas, obstando o benefício da reserva de vagas, devendo então a nota ser lançada na ampla concorrência, sob pena de preterição.
O indeferimento da autodeclaração só pode assumir patamar eliminatório em caso de fraude, sob pena de inviabilizar a utilização do instituto, até porque este goza de presunção de veracidade.
A boa-fé do candidato não pode ser obstaculizada por ato administrativo contrário à legislação. A portaria só tem poder vinculante quando suas disposições estão a par da lei aplicável, no caso a 12.990/2014.
A Resolução nº 203/2015 do CNJ, regulamentando o tema, em relação ao provimento de cargos do Poder Judiciário, de maneira correta, disciplinou:
Art. 6º Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas a eles reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.
Revela-se desproporcional a imediata eliminação do candidato em razão da simples falta de coincidência entre a autoimagem expressada na declaração de inscrição e a forma como é visto e identificado externamente pelos integrantes de uma comissão.
A portaria criou critério ilegal para eliminação dos candidatos, ao impedi-los de concorrer nas duas listas. A heteroidentificação não pode ser uma fase do concurso, não é isso que está na lei. Temos aqui evidente violação ao princípio da legalidade, da proporcionalidade, da razoabilidade. Nesse sentido acórdão do TRF-4, vejamos:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. Candidato pardo. Autodeclaração rejeitada pela comissão de verificação. Eliminação automática do concurso. Ilegalidade da regra editalícia. Direito de permanecer na lista de ampla concorrência. Princípio da proporcionalidade. Intervenção judicial necessária. Apelo improvido. SENTENÇA MANTIDA. 1. Conforme a tese fixada no Tema 85 do STF, não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade. 2. Revela-se desproporcional a imediata eliminação do candidato em razão da simples falta de coincidência entre a autoimagem expressada na declaração de inscrição e a forma como é visto e identificado externamente pelos integrantes de uma comissão. Diante da rejeição da autodeclaração pela Comissão de Verificação, deve-se permitir que o candidato integre a lista de ampla concorrência, sendo necessário o reconhecimento da nulidade da regra editalícia que embasou o ato de eliminação. (TRF-4 - APL: 50018635920174047113 RS 5001863-59.2017.4.04.7113, Relator: ROGERIO FAVRETO, Data de Julgamento: 02/06/2020, TERCEIRA TURMA)
A única hipótese de eliminação, conforme previsão do parágrafo único do artigo 2º da Lei 12.990/2014 e, nos termos das balizas delineadas pela Suprema Corte é no caso de má-fé, fraude, a ser comprovada por processo administrativo sujeito ao contraditório e à ampla defesa, nos termos do regramento jurídico do Ente contratante. Até mesmo por este fato, a própria legislação permite tornar sem efeito o provimento do candidato já nomeado.
Dessa forma, as ditas “Comissões Raciais” não podem eliminar o concorrente simplesmente por entender que ele não se enquadra no fenótipo declarado, independente de sua boa-fé.
O STF, conforme já citado, o STJ, quando do julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 1.513.140-PB, bem como o Superior Tribunal Militar, cuja ementa abaixo transcrevo, partilham deste mesmo entendimento, já tendo assim decidido em várias oportunidades.
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATA QUE NÃO PREENCHE FENÓTIPO DE NEGRITUDE. CONCLUSÃO DA BANCA EXAMINADORA. EXCLUSÃO DO CERTAME. OBSERVÂNCIA DO EDITAL. DESCONFORMIDADE COM A LEGISLAÇÃO. CONTROLE DE LEGALIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DO PROCESSO SELETIVO MEDIANTE FALSA DECLARAÇÃO. NÃO CONFIGURAÇÃO. PERMANÊNCIA DA CANDIDATA NA LISTA DE AMPLA CONCORRÊNCIA. CONCESSÃO DA ORDEM. A legislação que rege a matéria não dá espaço à exclusão do processo seletivo de candidato concorrente a vagas reservadas ao sistema de cotas que não foi reconhecido como negro ou pardo pela comissão examinadora, salvo tenha agido de má-fé, com o intuito de burlar o concurso. Caso não ocorra o falsum e entender o órgão organizador da seleção pública que o candidato não preenche o fenótipo de negritude, deverá ele permanecer concorrendo à vaga destinada aos demais candidatos, pois a legislação garante sua participação concomitante nas duas listas de classificação - ampla concorrência e a reservada aos negros. É dizer: sua exclusão se dará apenas da lista de reserva destinada aos negros e pardos, e não do processo seletivo. Concessão da segurança. Unanimidade. (STM - MS: 70009921920187000000, Relator: FRANCISCO JOSELI PARENTE CAMELO, Data de Julgamento: 25/04/2019, Data de Publicação: 03/05/2019).
A Corte Cidadã, em processo de relatoria da Ministra Assusete Magalhães, (RECURSO ESPECIAL Nº 1.472.077 - PB (2014/0190243-8)) manifestou:
(...) Logo, o candidato só concorre às vagas reservadas quando sua classificação não lhe assegura o ingresso nas vagas de concorrência ampla, estando o pleito da apelante amparada no princípio da legalidade que rege a Administração Pública.- Isso quer dizer que o fato de não atender, quando do cadastramento e matrícula, ao requisito para ingressar na universidade pelo sistema de cotas, não implicará em sua eliminação do certame, podendo permanecer na lista da concorrência geral e vir a lograr, na hipótese de existência de vaga, ao seu cadastramento e matrícula.
A eliminação do candidato só pode se dar quando preexistente o dolo fraudulento. Este foi o escopo legislativo.
A portaria dá tratamento dissonante à boa-fé. Em interpretação sistemática percebemos que este instituto possui enorme prestígio.
Nos termos do artigo 113 do CC/02, a boa-fé é uma regra interpretativa dos negócios jurídicos[3]. E mais, a parte que assim atuou fica protegida em caso de eventual negócio simulado por terceiros[4]. Além disso, aquele que excedê-la, no exercício de um direito, comete ato ilícito, dada sua importância[5].
O instituto da boa-fé é de extrema estima na legislação civilista, bem como na legislação processual, dispondo o artigo 5º do CPC: Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
Entretanto, a portaria, em completa desarmonia ao sistema jurídico, desprestigia tal princípio.
O poder regulamentar, atribuído ao Poder Executivo, é derivado e secundário, somente sendo lícito conter disposições secundum legem, nunca contra ela ou além de seu conteúdo, criando novas limitações ao direito dos administrados. Feito isso, colide com a legalidade.
3. Do momento para desistência do candidato negro a uma das vagas afirmativas
Outro ponto que merece ser tratado é a desistência do candidato de concorrer em uma das vagas afirmativas, tema ajustado no §2º do artigo 3º da Lei 12.990/2014:
§ 2º Em caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado.
Aqui merece ser debatido até qual momento poderá haver a desistência.
A Portaria nº4/2018, estabelece no artigo 2º:
§ 2º Até o final do período de inscrição do concurso público, será facultado ao candidato desistir de concorrer pelo sistema de reserva de vagas.
Tal preceito não está alinhado à norma que pretendeu regulamentar. Em razão do fato de o candidato concorrer em duas listas, a afirmativa e a de ampla concorrência, este poderá desistir até a divulgação do resultado final, pois neste momento já tem conhecimento de sua nota e colocação no certame. Dessa forma, deve-se abrir prazo para apresentação das desistências, para posteriormente haver a convocação para o procedimento, que conforme já mencionado deve se dar através da apresentação de documentos, e em caso de suspeita de fraude, por meio de entrevista presencial.
Assim, dá-se espaço aos demais candidatos que necessitem ingressar pelo meio afirmativo, já que o objetivo é exatamente a inclusão social.
Tal modalidade não incentivaria a fraude, pois o candidato de má-fé pode ser eliminado, tendo em vista o teor do parágrafo único do artigo 2º.
A portaria agiu contra legem, ampliando negativamente os efeitos previstos na lei.
Conclusão
Ante o exposto, notamos a ilegalidade de diversos artigos da Portaria Normativa nº4/2018, pois vão de encontro principalmente aos artigos 2º e 3º da Lei 12.990/2014, bem como destoam da interpretação firmada pelo STF quando do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41/DF, cabendo ao Poder Judiciário intervir.
Referências bibliográficas
1 – Brasil, Lei 12.990/2014. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm > Acesso em 05 de julho de 2020;
2 – Brasil, Portaria Normativa nº 4 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão da Secretaria de Gestão de Pessoas, de 06 de abril de 2018. Disponível em < https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/igualdade-racial/portaria-normativa-no-4-2018-regulamenta-o-procedimento-de-heteroidentificacao-complementar-a-autodeclaracao-dos-candidatos-negros-em-concursos-publicos/view > Acesso em 06 de julho de 2020.
3 – Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41. Disponível em < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4917166
[1] Trecho do voto do Ministro Luís Roberto Barroso na ADC nº 41.
[3] Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
[4] Art. 167, § 2 o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.
[5] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Advogado no escritório DMC Advogados Associados [www.dmcadvogadosassociados.com.br]; Pós-graduado em Direito Corporativo e Compliance pela Escola Paulista de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rafael Bemfeito. Das ilegalidades da Portaria Normativa nº 4/2018 – da inobservância dos preceitos da Lei 12.990/2014 e da ADC nº 41/DF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jan 2021, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/56122/das-ilegalidades-da-portaria-normativa-n-4-2018-da-inobservncia-dos-preceitos-da-lei-12-990-2014-e-da-adc-n-41-df. Acesso em: 23 dez 2024.
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