Dra. MARIA DO CARMO COTA
(Orientadora)
RESUMO: Vigora no sistema jurídico brasileiro o princípio da Presunção de Inocência, conforme se extrai do artigo 5º, LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o qual assegura que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de decisão criminal condenatória. O Constituinte Originário ao prevê tal direito fundamental visou dar condições para que ninguém sofresse o estigma de uma acusação penal além do estritamente necessário, tendo direito a prerrogativas inerentes ao devido processo legal, a exemplo do contraditório, da ampla defesa, da não autoincriminação e, entre outros, da liberdade provisória. Não obstante tal garantia constitucional, o legislador infraconstitucional se mostrou desarrazoado, em diversas oportunidades, quando legislou para mitigar a concessão da liberdade provisória, porém, em todas as vezes que isto ocorreu, o Supremo Tribunal Federal declarou tal norma inconstitucional. Entretanto, em 2019, o legislativo nacional, novamente, por meio da Lei 13.964 de 2019, denominada de Pacote Anticrime, editou norma legal suprimindo a garantia da liberdade provisória em face de certos comportamentos delituosos cometidos, ferindo outra vez as disposições constitucionais. Diante deste contexto inserido pelo novo regramento legal, notadamente o artigo 310, §2º, do Código de Processo Penal, a presente pesquisa se propõe a explorar a inconstitucionalidade deste dispositivo, por meio de posicionamentos doutrinários, jurisprudenciais, bem como fatos históricos e sociais.
Palavras Chave: Liberdade Provisória. Presunção de Inocência. Individualização da Pena. Constituição Federal.
ABSTRACT: The principle of the Presumption of Innocence prevails in the Brazilian legal system, as extracted from Article 5, LVII, of the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, which ensures that no one will be found guilty before a criminal conviction is passed. The Constituent Constitution envisages such a fundamental right aimed at providing conditions so that no one would suffer the stigma of a criminal accusation beyond what is strictly necessary, having the right to prerogatives inherent in due legal process, such as the adversary, the broad defense, non-self-incrimination and, among others, of provisional freedom. Despite such a constitutional guarantee, the infraconstitutional legislator proved to be unreasonable, on several occasions, when he legislated to mitigate the granting of provisional liberty, however, in all the times that this occurred, the Federal Supreme Court declared such a rule unconstitutional. However, in 2019, the national legislature, again, through Law 13,964 of 2019, called the Anti-crime Package, issued a legal rule suppressing the guarantee of provisional freedom in the face of certain criminal behaviors committed, again violating constitutional provisions. In view of this context inserted by the new legal regulation, notably Article 310, §2, of the Code of Criminal Procedure, the present research proposes to explore the unconstitutionality of this device, through doctrinal, jurisprudential positions, as well as historical and social facts.
Keywords: Provisional Freedom. Presumption of Innocence. Individualization of Penalty. Federal Constitution.
SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO. 2.DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. 2.1Presunção de Inocência. 2.2Individualização da pena. 3.PRINCÍPIO DA JURISDICIONALIDADE. 4.O INSTITUTO DA CONCESSÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA. 5.DIPLOMAS LEGAIS QUE VEDARAM OPEN LEGIS A CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. 6.CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
O Código de Processo Penal prevê as medidas cautelares incidentes no âmbito da persecução penal, de maneira não exaustiva, previstas no título que versa sobre provas, bem como no título que trata sobre a prisão.
Entre as medidas cautelares, a presente investigação aborda a liberdade provisória (constante do Título IX do Livro I do CPP), sob a perspectiva de sua não concessão diante de determinados tipos penais.
As medidas cautelares, em suma, podem ser classificadas como reais, probatórias ou pessoais. As constrições pessoais impõem limitações ou restrições aos direitos fundamentais do ser humano. Nesse sentido, a Liberdade Provisória trata-se de cautelar pessoal, pois incide sobre o direito de locomoção da pessoa objeto de investigação policial ou processual criminal.
No âmbito das medidas cautelares pessoas, há as medidas privativas de liberdade e as restritivas de direitos, conforme imponha a privação da garantia da liberdade de locomoção ou determinem limitações aos direitos do acusado, segundo leciona Mendonça (2011).
Assim também é a doutrina de Renato Brasileiro de Lima:
[...] são aquelas medidas restritivas ou privativas da liberdade de locomoção adotadas contra o imputado durante as investigações ou no curso do processo, com o objetivo de assegurar a eficácia do processo, importando algum grau de sacrifício da liberdade do sujeito passivo da cautela, ora em maior grau de intensidade (prisão preventiva e temporária), ora com menor lesividade (medidas cautelares diversas da prisão do art. 319 do CPP). (Código de Processo Penal comentado. 3ª. Salvador : JusPodivm, 2018)
O presente artigo investiga, sob a ótica da Constituição Federal de 1988 (CF/88), a inclusão do §2º no artigo 310 do Código Processo Penal (CPP) - Decreto-Lei nº 3.689-, de 3 de outubro de 1941-, promovida pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, (denominada de Pacote Anticrime).
O referido dispositivo, incluído pelo Pacote Anticrime, apresenta a seguinte redação:
Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares (CPP, 1943, art. 310, §2º, grifo nosso).
Nessa perspectiva, a investigação em comento discute a inconstitucionalidade do supramencionado §2º do art. 310 do CPP, introduzido no ordenamento jurídico nacional pela Lei 13.964/2019 frente ao atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF).
A problemática incitada pelo dispositivo legal ora estudado recai no fato de este expressamente vedar a “Concessão de Liberdade Provisória”. Tal vedação decorrente de lei (open legis) confronta com princípios constitucionais basilares do Estado Democrático de Direito, conforme Jurisprudência Pacífica do Supremo Tribunal Federal (STF).
Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente. [...] (ADI 3112, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 02/05/2007, DJe-131 DIVULG 25-10-2007 PUBLIC 26-10-2007 DJ 26-10-2007 PP-00028 EMENT VOL-02295-03 PP-00386 RTJ VOL-00206-02 PP-00538 (Grifo nosso)).
Nesse mesmo sentido, Renato Brasileiro de Lima (2018) e Guilherme de Souza Nucci (2015) advertem sobre a ofensa que a vedação legal, de forma abstrata, à concessão da Liberdade Provisória, causa aos principais postulados do devido Processo Legal, em matéria processualística penal, tais como a Presunção de Inocência, Individualização da Pena e a Proibição do Excesso.
Pensamento semelhante é o de Roberto Delmanto (2001), o qual reforça a tese da não
constitucionalidade da proibição pela lei à Liberdade Provisória, em abstrato, em decorrência de qualquer crime que seja, já que este tipo de vedação legal ofende inevitavelmente ao devido processo legal, a não culpabilidade e a proporcionalidade.
Entretanto, a investigação não adentrou nas questões envolvendo a gravidade de certos delitos que, pela opinião pública, justificariam a vedação à concessão da Liberdade Provisória. A análise apresentada neste estudo se volta para os aspectos constitucionais, referenciando a força normativa dos valores da Dignidade da Pessoa Humana, Humanização das Penas e Individualização da Sanção Penal. Assim, por mais que se possa haver um clamor social pela punição mais severa de delitos como, p.ex., Organização Criminosa Armada e Porte de Arma de Fogo de Uso Restrito, tal controvérsia não foi objeto de investigação nesse artigo.
Com o Neoconstitucionalismo[1], o Código de Processo Penal brasileiro passou a ser interpretado sob a ótica basilar dos primados constitucionais, não devendo incidir arbitrariamente na vida dos sujeitos. Diante deste novo cenário, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido como inconstitucionais normas infraconstitucionais que vedavam a concessão da liberdade provisória, já que a liberdade provisória constitui direito subjetivo do imputado, que não pode ser negado se estiverem presentes os motivos que a autorizam, como bem pontua Aury Lopes Junior (2018).
Dentro deste contexto, este trabalho procura fazer uma contribuição na área de Direito Constitucional e Processo Penal sobre a provável inconstitucionalidade da vedação à concessão da Liberdade Provisória, inserida no artigo 310 do CPP pela 13.964 de 2019, para os agentes que sejam reincidentes ou que integram organização criminosa armada ou milícia privada, ou que portem arma de fogo de uso restrito.
Em relação a presente investigação, esta utilizou o método dedutivo, por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando-se de jurisprudências e referenciais teóricos, tomando por base as posições doutrinárias mais atuais.
2. DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA
2.1 Presunção de Inocência
Ao lado de outros valores fundamentais do Estado Democrático de Direito, o princípio da Presunção de Inocência se apresenta como postulado fundamental dentro do processo criminal, posto que visa evitar os estigmas, além do estritamente necessário, que recai sobre alguém acusado de uma conduta delituosa, proporcionando processo-crime de forma imparcial, equânime e justo.
Nesse sentido, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (DUDH) previu expressamente o citado postulado, a saber:
Artigo 11: I) Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa.
No regional, a Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), em seu artigo 8º, II, prevê: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
Diante de tal garantia, o Constituinte Originário também consagrou a presunção de inocência com abrangência ainda maior, prevendo, de forma expressa, na Constituição de Federal de 1988, art. 5º, LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, no ordenamento nacional, somente após exaurir todos os recursos possíveis é que a pessoa pode ser considerada culpada de cometer infração penal.
Em relação à incidência do referido princípio, este é desdobrado em duas dimensões, a saber, a Regra de Tratamento e a Probatória. Sendo que a primeira impõe o sentido geral da não culpabilidade, isto é, de ser tratado como inocente até o trânsito em julgado do decreto condenatório; enquanto que a segunda atrela ao acusador o papel de comprovar as alegações em face do réu.
Nesse sentido leciona o professor Renato Brasileiro de Lima, acerca do princípio da presunção de inocência:
Consiste no direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença transitada em julgado, ao término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório). (Manual de processo penal. 2ª. Salvador : JusPodvim, 2014 p. 49).
Posto isso, não se revela plausível que comando normativo abstrato, em caráter geral, vede a concessão de liberdade ao investigado (em fase de inquérito policial) ou acusado (fase processual) em face de conduta supostamente praticada pelo sujeito, sem prévia análise das peculiaridades de cada caso concreto, ferindo, justamente a presunção de inocência do indivíduo, ao qual deveria permear toda persecução penal.
A relevância desse princípio fundamental está calcada na proteção ao acusado em face de antecipação de reprimenda penal. Ou seja, ter sua liberdade ceceada, simplesmente, pela imputação de determinado fato delituoso, sem ao menos verificar, in casu, o fumus comissi delicti e o periculum in libertatis, que justificam, em tese, a segregação cautelar, caso estejam presentes.
2.2 Individualização da Pena
Como corolário do Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal de 1988 previu expressamente o Princípio da Individualização da Pena, art. 5º, XLVI, “a lei regulará a individualização da pena (...)”.
Tal postulado impõe que os sujeitos condenados criminalmente tenham a sua pena executada, em conformidade com as circunstâncias pessoas, de forma individualizada, ainda que sentenciados pelo mesmo fato delituoso.
Entretanto, o referido princípio também possui incidência na fase investigativa e processual, assegurando aos investigados e acusados, em geral, a garantia de persecução criminal justa, com imposição de constrições cautelares adequadas e proporcionais, com base nas condições pessoais e fáticas das infrações penais, ora imputadas.
O postulado da individualização da pena consiste na imposição de se respeitar a proporção entre o comportamento cometido e o agente que o praticou. Logo, a partir de tal princípio, pode-se afirmar que é defeso a padronização de punições. Isto é, por exemplo, não pode haver uma pena padrão para todos aqueles que cometerem o delito de porte de armas de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei 10.826/2003), mas sim ponderação das circunstâncias específicas de cada fato e a imposição de uma sanção individualizada para cada autor.
O princípio da individualização da reprimenda possui incidência na dosimetria da pena, em face do processo de conhecimento, a partir dos parâmetros mínimo e máximo da penalidade prevista abstratamente no tipo penal, bem como no cumprimento de sentença, no âmbito da execução penal. Ademais, o citado princípio incidirá em todos os institutos do cumprimento da penalidade, tais como o mérito para progressão de regime e livramento condicional, entre outros.
Ante sua força normativa irradiante, a individualização da pena também deve nortear o legislador infraconstitucional, para a definição das sanções, que serão impostas para as mais diversas condutas criminosas, com proporcionalidade e adequação entre um e outro.
Nesse sentido, é vedado ao legislativo impor ao juiz uma penalidade já padronizada, prevista de forma abstrata, não permitindo ao magistrado que a individualize conforme as especificidades do caso concreto.
Corroborando tal determinação constitucional, a Suprema Corte Brasileira declarou, por diversas vezes, que o Poder Legislativo não tem competência para retirar do Estado-Juiz, na análise do caso concreto, a aplicação do postulado da individualização sanção penal:
STF: EMENTA: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ART. 44 DA LEI 11.343/2006: IMPOSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART. 5º DA CF/88). ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executivo. Logo, a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder dever de impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo. Implicando essa ponderação em concreto a opção jurídico-positiva pela prevalência do razoável sobre o racional; ditada pelo permanente esforço do julgador para conciliar segurança jurídica e justiça material. (...) 5. Ordem parcialmente concedida tão-somente para remover o óbice da parte final do art. 44 da Lei 11.343/2006, assim como da expressão análoga “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos; determinando-se ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação em causa, na concreta situação do paciente. (STF, HC 97.256, Rel. Min. Ayres Brito, Pleno, DJ 16/12/2010).
Neste mesmo sentido, ressalta-se outro julgado da Suprema Corte reafirmando a sua jurisprudência:
Habeas corpus. Penal. Tráfico de entorpecentes. Crime praticado durante a vigência da Lei nº 11.464/07. Pena inferior a 8 anos de reclusão. Obrigatoriedade de imposição do regime inicial fechado. Declaração incidental de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90. Ofensa à garantia constitucional da individualização da pena (inciso XLVI do art. 5º da CF/88). Fundamentação necessária (CP, art. 33, § 3º, c/c o art. 59). Possibilidade de fixação, no caso em exame, do regime semiaberto para o início de cumprimento da pena privativa de liberdade. Ordem concedida. (...) 5. Ordem concedida tão somente para remover o óbice constante do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 11.464/07, o qual determina que “[a] pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado“. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da obrigatoriedade de fixação do regime fechado para início do cumprimento de pena decorrente da condenação por crime hediondo ou equiparado.” (STF, HC 111.840, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, DJ 17/12/2013).
Frisa-se que a individualização da pena possui incidência também na fase processual da persecução penal, garantindo que os acusados sejam processados de acordo com as circunstâncias pessoais e da infração cometida. Nesse sentido, como a liberdade provisória é uma regra benéfica constitucional, permitindo que o acusado possa ser submetido ao feito em liberdade cautelar, com ou sem fiança, não se revela adequado que o legislador imponha, de forma abstrata, um comando geral vedando a liberdade provisória para todos que se encontrem em determinada situação, ferindo, justamente a individualização do processo penal.
3. PRINCÍPIO DA JURISDICIONALIDADE
O Princípio da Jurisdicionalidade, denominado como cláusula de reserva jurisdicional, impõe que a decretação de toda e qualquer espécie de medida cautelar, de natureza pessoal, está condicionada à manifestação fundamentada do Poder Judiciário, segundo ensina Renato Brasileiro Lima (2018). Corroborando tais ensinamentos, o Código de Processo Penal prevê, no artigo 282, §2º:
As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Logo, como a CF/88 determina que 'ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal' (art. 5º, LIV), bem como que 'ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente' (art. 5°, LXI), além de que 'a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juízo competente' (art. 5°, LXII), e 'a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária' (art. 5°, LXV) e que 'ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança' (art. 5°, LXVI), resta-se enaltecido, de forma cristalina, que o Constituinte de 1988 impôs a sujeição de toda e qualquer medida cautelar de natureza pessoal à apreciação do Poder Judiciário. Indo no mesmo sentido, o art. 321 do CPP determina que, ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319, do mesmo diploma legal em destaque, além de observados os critérios constantes do art. 282 do CPP.
Ademais, o professor Aury Lopes Junior possui o mesmo entendimento:
Toda e qualquer prisão cautelar somente pode ser decretada por ordem judicial fundamentada. A prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar, uma precária detenção, que pode ser feita por qualquer pessoa do povo ou autoridade policial. Neste caso, o controle jurisdicional se dá em momento imediatamente posterior, com o juiz homologando ou relaxando a prisão e, a continuação, decretando a prisão preventiva ou concedendo liberdade provisória. Em qualquer caso, fundamentando sua decisão, nos termos do art. 93, IX, da Constituição e do art. 315 do CPP. O princípio da jurisdicionalidade está intimamente relacionado com o due process of law. Como prevê o art. 5º, LIV, ninguém será (ou melhor, deveria ser) privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Portanto, para haver privação de liberdade, necessariamente deve preceder um processo (nulla poena sine praevio iudicio), isto é, a prisão só pode ser após o processo. (Direito processual penal. 15ª. São Paulo : Saraiva, 2018).
Ainda, assegura o referido autor:
No Brasil, a jurisdicionalidade está consagrada no art. 5º, LXI, da CB, segundo o qual ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de crime militar. Assim, ninguém poderá ser preso por ordem de delegado de polícia, promotor ou qualquer outra autoridade que não a judiciária (juiz ou tribunal), com competência para tanto (ainda, art. 283). Eventual ilegalidade deverá ser remediada pela via do habeas corpus, nos termos do art. 648, III, do CPP. (Júnior, Aury Lopes. Direito processual penal. 15ª. São Paulo : Saraiva, 2018.)
Frisa-se que a prerrogativa do poder geral de cautela é inerente à atividade jurisdicional do Estado, posto que as cautelares pessoais atingem, de forma direta ou, ainda que indireta, o direito fundamental de liberdade de locomoção, mesmo que em menor grau, a exemplo da proibição de frequentar determinados locais, sendo possível ser convertida em privação de preventiva ante o descumprimento de cautelares diversas da prisão, nos termos do CPP, art. 282, §4°.
Assim, somente o Poder Judiciário, no exercício de função típica, é competente para determinar a incidência de medidas cautelares, em especial as pessoais. Nesse sentido, somente o Estado-Juiz no âmbito da função judicante pode decretar a prisão cautelar de determinado sujeito, consoante doutrina de Renato Brasileiro de Lima (2018).
Não obstante, regra geral, em que as medidas cautelares somente devem ser impostas pelo crivo do Poder Judiciário, há uma exceção, qual seja, a imposição de fiança pela Autoridade Policial, concedendo liberdade provisória, nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos, nos termos do art. 322 do CPP. Porém, tal exceção não desnatura o poder geral de cautela do Estado-Juiz.
Logo, para manter a prisão de alguém, somente o juiz pode determina-la, segundo se ressalta da própria jurisprudência do STF:
Para manter a prisão em flagrante, deverá o magistrado fazê-lo com base em elementos concretos e individualizados aptos a demonstrar a necessidade da prisão do indivíduo, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. [...] (HC 105750, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 26/06/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 04-10-2012 PUBLIC 05-10-2012).
Por fim, ressalta-se que o ordenamento jurídico nacional, bem como da jurisprudência dominante da Suprema Corte Brasileira, não se admite prisão ex lege, isto é, determinada diretamente pela lei, sem análise casuística e criteriosa. Ademais, também não se admite constrição cautelar pessoal de forma automática, sem decisão do Poder Judiciário, de forma fundamentada, com base no caso concreto, verificando o seu cabimento, além do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, bem como a adequação e necessidade, segundo prevê o art. 282 do Código de Processo Penal.
4. O INSTITUTO DA CONCESSÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA
As medidas cautelares, em essência, podem ser informadas e impostas de duas maneiras, a saber: Contracautela e Cautelar. Diante disso, conforme se extrai da jurisprudência e doutrina majoritária, o instituto da Liberdade Provisória se trata de medida cautelar pessoal.
Sob o prisma de contracautela, a medida é aplicada em substituição a outra inicialmente aplicada, como, por exemplo, concessão de liberdade mediante fiança em substituição à prisão em flagrante. Isto é, o suposto autor do fato fora preso em flagrante delito, o qual já é uma medida cautelar, aplicada como subcautela. Daí a concessão de liberdade mediante fiança substituindo aquela, é aplicada como contracautela (cautela da cautela).
Assim, a contracautela da liberdade provisória mediante fiança, neste caso, é menos invasiva aos direitos fundamentais do indivíduo. Posto isso, o próprio Código de Processo Penal prevê tal possibilidade:
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
[...]
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Art. 321. Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art.319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código.
Assim, em face do Estado Democrático de Direito, vige, como regra geral, no ordenamento jurídico nacional a Liberdade, sendo exceção a constrição a tal direito fundamental. Nesse sentido, o Constituinte Originário assegurou que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, conforme o artigo 5º, LXVI, da Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Contudo, antes da vigente constituição, a regra era a imposição da prisão, e a liberdade, era a exceção. Assim, sustenta-se que a prisão é medida extremamente severa e que causa ao imputado, sofrimentos que transcendem a ordem física, devendo ser utilizada como ultima ratio. Para Guilherme de Souza Nucci (2015), no processo penal vigora a liberdade como regra e excepcionalmente a prisão.
Nesse sentido, é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Em nosso sistema, notadamente a partir da Lei 12.403/2011, que deu nova redação ao art. 319 do Código de Processo Penal, o juiz tem não só o poder, mas o dever de substituir a prisão cautelar por outras medidas sempre que essas se revestirem de aptidão processual semelhante. Impõe-se ao julgador, assim, não perder de vista a proporcionalidade da medida cautelar a ser aplicada no caso, levando em conta, conforme reiteradamente enfatizado pela jurisprudência desta Corte, que a prisão preventiva é medida extrema que somente se legitima quando ineficazes todas as demais (HC 106446, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 20/9/2011; HC 114098 Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 12/12/2012). 6. Ordem parcialmente concedida, para substituir a prisão preventiva do paciente por medidas cautelares específicas. (HC 132233, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 26/04/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 17-05-2016 PUBLIC 18-05-2016).
Dada a força irradiante do direito fundamental à liberdade, A Constituição Federal de 1988 previu, no art. 5º diversos postulados a partir do citado direito:
[...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
[...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
[...] LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
[...] LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
[...] LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
[...] LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
A partir de tais garantias constitucionais, ressalta-se que o instituto da liberdade provisória é uma medida cautelar que visa inibir excessos na investigação policial e durante a instrução processual criminal, decorrendo da essência do postulado da Dignidade da Pessoa Humana, posto que a privação de liberdade é medida extremamente gravosa. Ademais, outro não é o entendimento da Corte Suprema do Brasil:
Violação ao princípio da proporcionalidade: a custódia cautelar se apresenta como medida mais gravosa do que a própria sanção a ser aplicada no caso de eventual condenação. Precedentes. (HC 126704, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 03/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 17-05-2016 PUBLIC 18-05-2016).
Na mesma linha é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Com a inovação legislativa introduzida pela Lei n. 12.403/2011, o Código de Processo Penal passou a capitular diversas providências substitutivas à prisão, sendo essa aplicada apenas quando aquelas não se mostrarem suficientes a repressão e a reprovabilidade do delito. [...] (HC 219.101/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 10/04/2012, DJe 08/05/2012).
Para Rangel (2018), o instituto da liberdade cautelar provisória configura-se em verdadeiro direito subjetivo do sujeito, não podendo ser afastado quando presentes os motivos autorizadores da liberdade de locomoção.
O professor Renato Brasileiro de Lima leciona que:
A decretação de uma prisão cautelar é a interferência mais agressiva do Estado na vida e na dignidade do indivíduo, pois, além da segregação em si, o cárcere produz intensa estigmatização social e psicológica. Não se pode, pois, banalizar a prisão preventiva, já que seus efeitos criminógenos, mais que ressocializar o agente, causam profunda desagregação dos valores da pessoa, inserindo-a em um contexto capaz de afetar de maneira definitiva qualquer processo de socialização.
(Manual de Processo Penal. 8ª. Ed. Salvador, BH: Juspodivm, 2018)
Pensamento semelhante é o de Rogério Greco (2012), o qual afirma que diante do sistema adotado pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), não se sustenta qualquer manutenção do sujeito no cárcere que não seja em virtude de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária.
Não obstante essa regra geral, o legislador atuou para mitigar o citado instituto, a exemplo da Lei 10.826 de 2003, que previu expressamente que a Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, Comércio ilegal de arma de fogo e Tráfico internacional de arma de fogo são insuscetíveis de liberdade provisória.
Porém, o STF atento a tais comportamentos legislativos, posicionou-se pela inconstitucionalidade de tal disposição legal:
Aponta-se igualmente para a ocorrência de lesão aos princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal no concernente ao art. 21, segundo o qual os delitos capitulados nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória. (...)A prisão obrigatória, de resto, fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV), que abrigam um conjunto de direitos e faculdades, os quais podem ser exercidos em todas as instâncias jurisdicionais, até a sua exaustão. (ADIN 3112)
Ademais, o STF manteve a mesma posição jurisprudencial, conforme se extrai do seguinte julgado:
Recurso extraordinário. 2. Constitucional. Processo Penal. Tráfico de drogas. Vedação legal de liberdade provisória. Interpretação dos incisos XLIII e LXVI do art. 5º da CF. 3. Reafirmação de jurisprudência. 4. Proposta de fixação da seguinte tese: É inconstitucional a expressão e liberdade provisória, constante do caput do artigo 44 da Lei 11.343/2006. (RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.038.925 SÃO PAULO)
Ressalta-se que esta também é a posição do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que entende que nem em face de crime hediondo, por si só, não pode ser vedada a liberdade provisória:
Crime hediondo, isoladamente, não é impeditivo da liberdade provisória, haja vista princípios constitucionais regentes da matéria (liberdade provisória, presunção de inocência, etc.). (STJ – 6ª Turma – HC 13992/SP – Relator o eminente Ministro FERNANDO GONÇALVES – Julgado a 20.02.2001 – Publicado em DJ de 12/03/2001, página 179).
Logo, depreende-se da posição dos tribunais superiores, que a vedação open legis à concessão da liberdade provisória é contrária à Constituição Federal, ferindo o direito fundamental a presunção de inocência.
Contudo, ressalta-se que a liberdade provisória não se trata de uma garantia irrestrita, mas sim de circunstância peculiar, em que o acusado está, ao mesmo tempo, em liberdade e vinculado à persecução penal, podendo está submetido a outras cautelares, além daquela, como, por exemplo, proibição de se ausentar da comarca onde reside sem autorização judicial.
Neste mesmo sentido é a doutrina de Gustavo Badaró (2017), para o qual aquela impõe ao réu liberdade provisória vinculada, isto é, não plena, estando ligado ao processo-crime, em que, se descumpridos as condições impostas para a concessão da liberdade provisória, poderão acarretar, em último caso, prisão cautelar.
Dessa forma, o principal objetivo da liberdade provisória, com ou sem fiança, é obstar a imposição e manutenção de privação de liberdade não necessária, fazendo com que o sujeito beneficiado por aquela medida mantenha-se ligado ao processo criminal. Ou seja, entre a plena liberdade e a prisão cautelar estar o instituto da liberdade provisória, situando-se em uma zona intermediária entre aquelas.
5. DIPLOMAS LEGAIS QUE VEDARAM OPEN LEGIS A CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA
Tomando por base a doutrina de Renato Brasileiro de Lima, citam-se alguns exemplos de dispositivos normativos legais que não permitiam a concessão de liberdade provisória abstratamente, que posteriormente tiveram suas previsões afastadas, seja por revogação legal ou por inconstitucionalidade reconhecida pelo Poder Judiciário:
· Lei nº 7.492/86, art. 31, veda a concessão de liberdade provisória com fiança aos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional;
· Lei nº 8.072/90, art. 2º, II, em sua redação original, não permitia a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, aos crimes hediondos e equiparados;
· Lei nº 9.034/95, o art. 7º, antiga Lei de Organização Criminosa, vedava a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança aos agentes que tenham tido participação efetiva na organização criminosa;
· Lei nº 9.613/98, art. 3º, em sua redação original, vedava a concessão de liberdade provisória com e sem fiança aos crimes de lavagem de capitais;
· Lei nº 10.826/03, art. 21, prevê que os crimes previstos nos arts. 16 (posse ou porte irregular de arma de fogo de uso restrito), 17 (comércio ilegal de arma de fogo) e 18 (tráfico internacional de arma de fogo) são insuscetíveis de liberdade provisória;
· Lei nº 11.343/06, art. 44, os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta de tóxicos são inafiançáveis e insuscetíveis (...) liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Ante tais diplomas normativos, estes sofreram críticas da doutrina e tiveram sua eficácia afastada por reiteradas decisões dos tribunais superiores, sob ofensa à Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, leciona o professor Renato Brasileiro de Lima (2017), para o qual se o legislador restringir a liberdade provisória em relação a determinado delito, estar-se-ia estabelecendo hipótese de prisão cautelar obrigatória, em clara e evidente afronta ao princípio da presunção de não culpabilidade.
Ao se proibir de maneira abstrata a concessão de liberdade provisória, estar-se-á criando hipótese de prisão legal, decorrente da própria lei, sem analisar as peculiaridades do caso em análise.
Assim, ao se restringir de forma incondicionada o direito à concessão da liberdade provisória por meio de dispositivos legais, estes acabam por retirar do Estado-Juiz a análise da necessidade de imposição e manutenção da prisão cautelar do investigado, incidindo em prisão ex lege em desfavor do sujeito.
Tal previsão legal faz com que o Poder Legislativo acabe por criar verdadeira presunção de culpa, em abstrato, com o estabelecimento de prévia periculosidade em face de determinados delitos, não permitindo a concessão de liberdade de forma genérica.
Salienta-se que este comportamento do Legislativo retira do Judiciário o poder geral cautela, não possibilitando ao magistrado analisar as circunstâncias pessoais e fáticas da conduta perpetrada, podendo ou não conceder a liberdade, tento por base os postulados constitucionais que regem o processo criminal.
Na mesma linha é também o posicionamento do professor Guilherme de Souza Nucci:
Em homenagem aos princípios da presunção de inocência e da legalidade estrita da prisão cautelar, não se pode mais aceitar que o legislador promova a vulgarização da proibição à liberdade provisória. O dispositivo constitucional do art. 5.º, LXVI, menciona que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Ora, a situação é nítida: a prisão cautelar é exceção; a liberdade, regra. Dessa forma, é completamente incoerente – e inconstitucional – vedar, sem qualquer justificativa plausível e sem o estabelecimento de requisitos a serem preenchidos na situação concreta, a liberdade de quem está aguardando o deslinde do seu processo criminal. Valemo-nos do mesmo argumento já utilizado em nossa tese Individualização da Pena: se a Constituição Federal menciona que a lei regulará a individualização da pena (art. 5.º, XLVI), é natural que exista a referida individualização. Os critérios para a concessão (ou negação) são legislativos, mas não se pode fazer desaparecer o direito. Por isso, foi proclamada inconstitucional, pelo STF, a proibição, pura e simples, da liberdade provisória, no cenário do Estatuto do Desarmamento e noutros casos similares. Código de Processo Penal Comentado. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016)
Por tanto, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, não é permitido ao Poder Legislativo, atuando em função legiferante, proibir abstratamente, de forma genérica, a concessão do instituto da liberdade provisória. Todavia, ressalta-se que a posição dominante perante os tribunais superiores, não é contra a imposição da prisão, mas sim contra a negação da concessão da liberdade de forma abstrata e genérica, não analisando o caso concreto.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes o exposto, a vedação em decorrência de lei à concessão da Liberdade Provisória em face dos Delitos de Organização Criminosa Armada ou Milícia Privada, Porte de Arma de Fogo de Uso Permitido e para o Reincidente fere a Constituição Federal de 1988, em especial aos princípios da Presunção de Inocência, Individualização da Pena, bem como a Dignidade da Pessoa Humana.
Logo, a decretação automática, ou seja, por decorrência de lei (ex vi legis), de uma prisão, posto que é isto o que ocorre ao se impor uma vedação à concessão de liberdade provisória, viola a própria Constituição Federal, que traduz direitos e garantias individuais inderrogáveis. Ademais, a Constituição estabelece que a prisão de qualquer pessoa só pode ocorrer (à exceção de infrações militares) por flagrante ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, sendo preceito que irradia em todo o ordenamento jurídico.
A jurisprudência consolidada já julgou inconstitucional, neste ponto, diversas leis que previam tal limitação, a exemplo da Lei 10.826 de 2003 (Estatuto do Desarmamento), lei 11. 343 de 2006 (Lei de Tóxicos e Entorpecentes) e a Lei 8.072 de 1990 (Crimes Hediondos), conforme supramencionado.
Amparado nos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais, não se mostra legítimo que em um Estado Democrático de Direito, a lei de forma abstrata imponha a prisão cautelarmente ao suposto agente criminoso. Sustenta-se que só cabe ao Magistrado decidir sobre a restrição à liberdade pessoal do sujeito, com base nas peculiaridades do caso concreto.
A imposição da prisão diretamente pela lei, vedando a liberdade provisória em face da gravidade em abstrato de delitos cometidos, ofende aos postulados constitucionais básicos, ora já retromencionados.
Sendo assim, a presente investigação buscou apresentar evidências jurídicas da inconstitucionalidade do §2º, artigo 310 do CPP, introduzido pelo Pacote Anticrime, notadamente à expressão “(...) deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares”.
Por fim, destaca-se que a jurisprudência, bem como a doutrina majoritária, não se opõe à prisão; o que estas têm se oposto é que se negue a liberdade somente com base em impedimentos legais, de forma abstrata e sem análise do caso concreto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BADARÓ, Gustavo. 2017. Processo penal. 5ª. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2017.
FILHO, Vicente Greco. 2012. Manual de processo penal. 9. São Paulo : Saraiva, 2012.
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JÚNIOR, Roberto Delmanto. 2001. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. 2. Rio de Janeiro : Renovar, 2001.
LIMA, Renato Brasileiro de. 2018. Código de Processo Penal comentado. 3ª. Salvador: JusPodivm, 2018.
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—. 2018. Manual de processo penal. 6ª. Salvador : JusPodvim, 2018.
—. 2017. Manual de processo penal. 5ª. Salvador : JusPodvim, 2017.
—. 2014. Manual de processo penal. 2ª. Salvador : JusPodvim, 2014.
MENDONÇA, Andrey Borges de. 2011. Prisão e outras medidas cautelares. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
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NUCCI, Guilherme de Souza. 2013. Código de Processo Penal comentado. 12ª. São Paulo : RT, 2013.
—. 2018. Curso de direito processual penal. 15. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
—. 2016. Curso de direito processual penal. 15. Rio de Janeiro : Forense, 2016.
—. 2015. Manual de Processo Penal e Execução Penal. RJ : Forense, 2015.
—. 2014. Leis penais e processuais penais comentadas. 8ª. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
RANGEL, Paulo. 2018. Direito processual penal. 26ª. São Paulo: Atlas, 2018.
[1] A Constituição torna-se o centro do ordenamento jurídico, emanando suas disposições para todo o sistema, que deverá guardar observância obrigatória com aquela, que servirá de vetor para a interpretação de todos os ramos do direito.
Graduado em Licenciatura Plena em Matemática pela Universidade Federal do Tocantins (UFT); Especialista em Gestão Pública pela Faculdade Educacional da Lapa FAEL); Graduando em Direito pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOÃO PEREIRA DA SILVA JÚNIOR, . A inconstitucionalidade do §2º do artigo 310 do Código de Processo Penal (incluído pela lei 13.964 de 2019 – pacote anticrime) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 mar 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/56295/a-inconstitucionalidade-do-2-do-artigo-310-do-cdigo-de-processo-penal-includo-pela-lei-13-964-de-2019-pacote-anticrime. Acesso em: 23 dez 2024.
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