Resumo: O presente trabalho pontua a inovação legislativa operada pela Lei 14.132/2021 ao artigo 147 do Código Penal c, agora, com nova alínea e parágrafos, com vistas a contemplar o crime autônomo de perseguição/stalking para solucionar questões cotidianas e, igualmente, tutelar o bem jurídico da liberdade individual, objeto de proteção por outros ramos do ordenamento jurídico. Discute-se a eficácia da norma frente ao Direito Penal Simbólico e a sua pertinência temática correlacionada a teoria do funcionalismo penal.
Palavras-Chave: Stalker/ Crime de Perseguição/ Stalking/ Funcionalismo Penal.
Abstract: The present work points to the legislative innovation operated by Law 14.132 / 2021 to article 147 of the Penal Code, now with a new paragraph and paragraphs, with a view to contemplating the autonomous crime of stalking / stalking to solve everyday issues and, furthermore, to protect the legal good of individual freedom, object of protection by other branches of the legal system. The effectiveness of the rule in relation to Symbolic Criminal Law and its thematic pertinence correlated with the theory of penal functionalism are discussed.
Sumário: Introdução. 1.1) Contornos Jurídicos do Crime de Perseguição/ Stalking; 1.2) Perseguição e seu significado; 1.3) Stalking e a Teoria do Funcionalismo Penal; 1.4) Crime de Perseguição/ Stalking e o Princípio da Consunção; 1.5) Crime de Perseguição e suas nuances; 1.6) O crime de Perseguição/ Stalking e a Lei 9.099/95. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
A lei 14.132/21 entrou em vigor no dia da mentira (data de sua publicação), dia primeiro de abril do ano de 2021. Indo ao encontro dos ensinamentos de James Callaghan, ousamos repetir, aqui, que “uma mentira pode correr meio mundo antes que a verdade consiga calçar as botas”. Calcemos, pois, as sandálias da humildade e passemos a discorrer acerca do crime de Perseguição/Stalking.
Apesar da data em que passou a obrigar no cenário jurídico (entrada em vigor), épica, para a edição do diploma normativo, de mentira nada se tem. Ao contrário, a verdade, aqui, correu o mundo e já havia calçado outras botas (estrangeiras), antes de ingressar por nosso solo pátrio.
Reflete a lei 14.132/21, nada mais, nada menos, do que a positivação de condutas cotidianas, e já de muito conhecidas e positivadas em outros ordenamentos jurídicos, tais como Alemanha, Portugal, Reino Unido e, dentre outros, nos Estados Unidos da América, de onde se cunhou a expressão Stalking, muito difundida nas redes sociais da atualidade. O Brasil apenas importou à seara penal o crime, já tipificado e consagrado em outras fronteiras. Em searas Cível e Trabalhista, no Brasil, a conduta já dava ensejo a danos morais e patrimoniais.
Não vamos muito longe. Em caso verídico, vivenciado pela Justiça do Trabalho, um empregador invadiu a privacidade de forma reiterada, controlou os horários, tirou fotografias, vigiou e seguiu os passos da vítima (sua empregada), por motivos que desconhecemos, e, aproveitando-se das fotos da moça em contato com outros rapazes, passou a espalhar a notícia de que ela mantinha relações extraconjugais fora do lar. O Tribunal Regional do Trabalho da Décima Oitava Região, acertadamente, vislumbrando o assédio moral do empregador (stalker), bem como a sua responsabilidade objetiva, nos termos do art. 932, III do Código Civil, fixou indenização pelos danos morais sofridos. (TRT-18-ROT0010055-78.2019-5.180014 – Relatora: Silene Aparecida Coelho, Terceira Turma, 19/03/2020). A nosso sentir, o TRT, com maestria, aplicou na prática o sábio ditado popular: “Devemos bater onde dói. No bolso”.
1.1) Contornos Jurídicos do Crime de Perseguição/ Stalking
Tal diploma legislativo teve por missão precípua alterar o art. 147 do Código Penal vigente, agregando ao tipo básico a alínea A, acompanhada de seus parágrafos, afinal, já nos ensina o ditado popular “uma andorinha não faz verão.” As causas de aumento reforçam, por conseguinte, o caráter punitivo da norma.
Observe o leitor como ficou a redação do dispositivo, após a modificação legislativa:
Ameaça. Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.
Perseguição
Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
I – contra criança, adolescente ou idoso; (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código; (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
§ 3º Somente se procede mediante representação. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
Há que se destacar que tal tipo penal, em sua cabeça, traz a tona o crime de ameaça e, agora, em sua alínea a, fora agregado ao dispositivo um novo crime, qual seja, o crime de perseguição. Uma simbiose de crimes que tutelam, como bem jurídico, a liberdade individual.
É importante enfatizar que, por tratar-se de uma novatio legis incriminadora, tal norma é irretroativa, passando a produzir efeitos do dia da mentira em diante. È para frente que se olha!
Logo, se Juan da Corneta, detentor de amor platônico, não correspondido, resolveu perseguir Rita Guitarra (objeto do seu desejo), na data de 31/03/2021 (trinta e um de março de dois mil e vinte e um), tirando-lhe o sossego na rua, na chuva e na fazenda, pela internet ou por droni, ou numa casinha de sapê, a sua conduta quando muito, poderia ser enquadrada na contravenção penal de não perturbação de sossego (art. 42. Decreto-lei 3.688/41), ou pela infração penal de perturbação de tranquilidade (art. 65. Decreto-lei 3688/41 – até então vigente!), a depender da hipótese, mas crime não se tinha, pois lei mais gravosa não detém, por ela mesma, o condão de retroagir, para abarcar condutas praticadas antes de sua vigência.
Por oportuno há que se dizer que tipo penal do art. 147, A do CP revogou expressamente o art. 65 do Decreto-Lei 3.688/41 (Lei de Contravenções Penais) socorrendo-se, em nosso ponto de vista, do Direito Penal Simbólico, para gerar na população uma sensação de dever cumprido das autoridades e, por conseguinte, enaltecer o terror e o medo na mente fraca de alguns desavisados com obsessão crônica, que deveriam buscar tratamento psicológico e psiquiátrico para os males da alma, ao invés de receberem respostas do Direito Penal. Data máxima vênia, é o que pensamos!
Perquirindo-se a mens legislatoris – vontade preliminar do legislador em um primeiro momento - que não vingou, por sinal - o nome inicial sugerido para o crime era o de perseguição obsessiva. Tal entendimento fora modificado, justamente para que se evitasse que a obsessão fosse considerada um requisito de validade da perseguição – conduta típica. Tal apego exagerado a um sentimento, fora, por certo, descartado pelo legislador, quando da tipificação da conduta penalmente relevante, até por consistir o apego exagerado num ato da psique humana incompleto, em si mesmo, frente a uma realidade que pede e exige mais, na ótica do legislador.
A mens legis, vontade da lei, que é o que nos interessa, refere-se tão somente ao delito de perseguição, sem nenhum qualificativo que a acompanhe. Já nos ensina o ditado popular: “Antes só do que mal acompanhado”. E, sem dúvida, a obsessão, por ela mesma é má companhia - e deve restar acompanhada de tratamento psiquiátrico (como já dissemos alhures) e não, de outro modo, de grades carcerárias.
1.2) Perseguição e seu significado
Mas em que consiste essa perseguição, em termos objetivos?
Consiste em perseguir alguém, reiteradamente ou, por qualquer outro meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer outra forma, invadindo ou perturbando a sua esfera de liberdade ou privacidade. É o que nos ensina o novo tipo penal.
O núcleo verbal do tipo é perseguir, importunar uma pessoa, tirar a paz dos outros. É mexer com quem está quieto. Mas não é qualquer perseguição. Perseguição esporádica não é crime, pois o tipo penal exige que essa perseguição seja reiterada. A mesma ladainha de todos os dias. De novo? Mais uma vez? São as perguntas implícitas do tipo penal.
A título de exemplo, Amanda Coração de Manteiga apaixona-se por Roberto Seringa de Vacina, seu analista. Descobre o endereço do profissional e, num dia desses, saudosa pelo término das sessões, resolve declarar-se por mensagem eletrônica, na internet; e, de plano, coloca-se, no mesmo dia, de prontidão na frente da casa do sujeito, a fim de constatar a reação do moço, ao vê-la. Era tudo ou nada. Longe das ponderações dos princípios, Amanda via o amor como regra e era adepta da lógica do tudo ou nada. É “eita” atrás de “eita”!
A pergunta que não quer calar é a seguinte: A integridade psicológica (bem jurídico penalmente protegido) de Seringa estaria maculada com a insistência da moça apaixonada e de pouco amor próprio?
A realidade nos informa que Amanda está, de fato, insistindo com o seu objeto de desejo, mas esse tipo de ato, passional, foi um ato isolado e, após, o bate papo sincero, em que Roberto Seringa, já “vacinado”, com outras experiências, expondo a ela não desejar envolver-se com pacientes (pois “onde se ganha o pão não se come a carne”), Amanda Coração de Manteiga “caiu em si” e não o procurou mais. No popular: a ficha caiu! Foi chorar na cama, que é lugar quente, mas deu sossego ao rapaz. Sua conduta, patética, ficou longe do crime de perseguição, resguardada apenas nos pesadelos de quem amou sozinha. E quem nunca....
Não houve reiteração, mas, no popular, um momento de bobeira, típico apenas na cegueira dos apaixonados. Ser apaixonada, ou trouxa, como prefiram, ainda não é crime, no máximo uma contravenção penal de perturbação de sossego alheio (art.42 do Decreto-lei 3.688/41), a depender dos contornos do caso concreto.
No caso por nós, aqui, relatado, não vislumbramos sequer abalo emocional por parte de Seringa, de modo que nem de longe houve abalo à sua integridade psicológica. Também não vislumbramos a contravenção de perturbação de sossego, já que Seringa sentiu-se lisonjeado com a declaração de amor, proveniente de moça tão bonita. Ao revés, acresceu-se ao seu bem jurídico (integridade psicológica) uma alta dose autoestima.
Logo, no que toca ao crime de perseguição (art. 147, a do CP) estamos diante de crime habitual que exige, pelo menos, dois atos. Ato isolado não o configura. Incabível, pois, a tentativa. Não cabe tentativa em crime habitual porque a consumação exige a reiteração de atos. Dessa forma, ou ocorre à reiteração e o crime de consuma, ou o fato será atípico. De igual modo, não há a previsão da figura culposa.
Mas atente o leitor para o seguinte fato: não é toda e qualquer reiteração que constitui crime. A perseguição operada pelos policiais aos bandidos, embora reiterada, não é crime, pois estão albergados pela excludente de ilicitude revelada no exercício regular do direito. “Dai a César o que é de César”. É Bíblico! E assim o é, pois a lei quem autorizou a licitude de tal reiteração, para o bem da segurança pública (bem comum).
Na mesma toada, o oficial de justiça que cumpre mandado judicial, se dirigindo algumas vezes ao local de residência do citando, não o está perseguindo, embora esse possa se sentir incomodado (estrito cumprimento do dever legal). Mero aborrecimento, sem qualquer relevância para o Direito Penal.
Enquanto, alguns, catalogam o exercício regular do direito e o estrito cumprimento do dever legal como excludentes da ilicitude, outros, os catalogam como excludente da própria tipicidade, pois não poderá ser crime o que a própria lei fomenta (tipicidade conglobante). Fato é que não é crime em nenhum dos dois casos, seja por um raciocínio ou por outro.
1.3) Stalking e a Teoria do Funcionalismo Penal
Atente-se o leitor que a perseguição pode se dar por qualquer meio. O meio pode ser físico, virtual, droni, cartas, bilhetes, telefonemas, faixas e cartazes, próximos ao local da residência da vítima, presentes indesejados, recados nas redes sociais, disse – me - disse, paparazzi, etc. O meio é livre, levando, por conseguinte, a abertura da conduta, mas, embora livre, deve ser conjugada essa com a reiteração e outros requisitos exigidos pelo tipo penal. Vejamos.
Transpondo o parágrafo acima para um caso do dia a dia.
Aí está: Marculino Filé, que até ontem era Marculino Sardinha, após participação em reality show na televisão, de anônimo virou famoso. Dia sim, dia não, é fotografado pelo jornalista Jurandir Fofoca que, aproveitando-se do glamour do rapaz, quer pegar carona na fama do moçoilo para vender jornal.
Marculino já não tem mais sossego, nem mais para tirar o carro da garagem de casa e a novela da vida real, da qual não é protagonista, já perdura por dois meses. Aquilo é quase tortura psicológica. É todo dia a mesma coisa. Precisa repetir as mesmas palavras para que o jornalista lhe permita prosseguir na retirada do carro. Jurandir Fofoca é incansável e, agora, a partir de 01/04/2021 (primeiro de abril de dois mil e vinte e um), criminoso. É a vida como ela é. O Direito Penal desempenhando, aqui, um papel educativo, para criminalizar a conduta do “sem noção”.
Mas seria a proteção da paz (integridade psicológica) contra a conduta do “sem noção” um bem jurídico indispensável à vida em sociedade?
Já nos ensina Roxin que a função do Direito Penal é a tutela dos bens mais caros ao convívio social. É o que aprendemos com o seu funcionalismo teleológico.
Explicando melhor a teoria funcionalista, que ousamos atribuir o qualificativo de bifurcada:
Trata-se da corrente funcionalista de Jacobs e da corrente funcionalista de Claus Roxin. Jacobs foi discípulo de Niklas Luhmann, sociólogo, que enxergava o Direito Penal como reafirmador dos valores de uma determinada ordem jurídica.
Jacobs sofreu críticas acerca do seu posicionamento, ganhando, até mesmo, a pecha de nazista. Isso porque suas premissas também poderiam ser utilizadas num regime totalitário, embora nem sempre isso se desse.
Como reação às controvérsias que as suas posições suscitaram, Jacobs sinalizou não estar apontando como o Direito Penal deva ser; mas apenas apontando como o Direito Penal foi e é. Em sua mente criativa, oriunda de uma concepção funcionalista extrema ou radical traçou-se o quadro daquele que deveria ser punido, para a estabilidade normativa. Assim, justificava-se a punição do agente pelo fato de ter agido de modo contrário à norma e cupavelmente.
O funcionalismo radical também albergava o conceito tripartido de crime e, diversamente do funcionalismo moderado, que previu a responsabilidade; o funcionalismo radical manteve em seu alicerce a culpabilidade, embora desse a ela feições menos flexíveis.
De outra banda, apresentamos Claus Roxin, grande expoente do funcionalismo moderado. Procurou o Mestre dos Mestres dar um conteúdo a essa ideia funcionalista; ou seja, o Direito Penal teria por função reafirmar os valores da ordem jurídica. Recuperação e punição são consequências, efeitos possíveis e previsíveis no Direito Penal. Não há como negar ou fugir dessa realidade. Reafirmação essa dos valores da ordem jurídica, embasada por razões de política criminal, para a colmatação de postulados fundados na dignidade humana - que irão culminar na proteção aos bens jurídicos mais caros ao convívio social. É a posição a qual nos filiamos!
O núcleo fundamental do sistema formulado por Roxin apresentou-se como a mais singela necessidade de que a política criminal pudesse penetrar na dogmática criminalista. (Roxin, Claus, Tratado de Derecho Penal – Parte General, Tomo I, Civitas, 1997).
A diferença entre as correntes funcionalistas, em palavras miúdas, reside no fato de que Jacobs se limitava a explicar o que o Direito Penal tinha sido, reafirmando os valores de uma ordem jurídica. Roxin foi além; reafirmou os valores do ordenamento jurídico, fundados na dignidade da pessoa humana e acrescidos de uma política criminal, como consectários lógicos da função do Direito penal. A política criminal consiste em uma diretriz. E é justamente nesse campo em que o intérprete e aplicador da norma trabalham com a proporcionalidade no que toca à aplicação das penas. É do que estamos tratando ao redigirmos esse artigo e, em específico, no caso concreto por nós idealizado do personagem Jurandir Fofoca ( o jornalista “sem noção” e ganancioso).
Após essa digressão aos estudos do funcionalismo penal voltemos os nossos olhos ao crime de perseguição/Stalking.
Acreditamos que a paz, direito fundamental de quinta dimensão, é sim, bem jurídico reputado da mais alta magnitude, mas que, em nosso sentir, data máxima vênia, é bem jurídico que encontra efetiva proteção em outros ramos do Direito, o que nos leva a refletir acerca do princípio da subsidiariedade do direito penal, devendo, para tanto, serem chamados, a solucionar o caso, os demais ramos do Direito (Civil, Administrativo, etc.), a fim de zelar pela harmonia sistêmica que efetiva, na prática, o princípio da intervenção mínima.
Imagine, a título de exemplo, seguindo em nosso raciocínio, o Jurandir Fofoca perdendo o posto de jornalista (cassada a sua carteira profissional) ou o seu jornal interditado pelo Poder Público (Direito de Intervenção) ou mesmo o seu bolso “doendo”, com uma indenização vultosa a Marculino Filé ou a toda a sociedade que se sentisse atingida (dano moral coletivo). Certamente, venderia a cama, por não conseguir dormir a noite. Já nos ensina o ditado popular: “os incomodados que se retirem”, mas poderiam se retirar, longe dos olhos do Direito Penal. Para nós, o Direito Penal, que deveria ser o último (e não o primeiro!) ramo a ser chamado, foi palco, repisemos, do direito penal simbólico (como já refletido alhures). Assim pensamos! E, aqui, não estamos fazendo pouco caso dos delitos de feminicídio e de violência doméstica, mas esses já encontram guarida em outros diplomas normativos. Não estão desguarnecidos.
Contudo. Voltemos à vida real, pois as nossas digressões são apenas digressões. Retornemos os nossos olhos ao novo tipo penal.
1.2) Crime de Perseguição/ Stalking e o Princípio da Consunção
O primeiro modo de perseguição é ameaçar a integridade física da vítima. A famosa frase: “- vou cortar-lhe a cabeça, se não me deres o seu coração”, nos dizeres dos obcecados de plantão - é um dos modos de se raciocinar o tipo penal no tocante a integridade física.
Ocorre, que muitas vezes, a perseguição não vem sozinha. Vem acompanhada de uma ameaça.
Um perseguimento, reiterado com ameaça verbal, ou conduta que induza um mal físico ao sujeito, poderá leva-lo a responder por dois crimes distintos ou é hipótese de crime único?
Assim, a título de exemplo: Um sujeito que segue o outro, diariamente, quando esse último vai levar seu filho na escola, próxima de casa, dizendo que vai ceifar a vida dele, pelo simples fato de ter sido preterido no emprego, no passado, pelo chefe da vítima, mais amigo da vítima do que dele (perseguidor/ stalker). Para tanto, vale-se da ameaça na perseguição, para aplacar o seu sentimento de inveja. O invejoso persegue e ameaça. A pergunta que não quer calar é a seguinte: esse sujeito, que persegue e ameaça, responde em concurso formal de crimes ou aplicaríamos, a ele, o princípio da consunção?
A nosso sentir, em regra, não haverá concurso de crimes. O tipo total do art. 147 do CP prevê crimes autônomos no caput e na alínea a. Contudo, não responderá o sujeito pelo art. 147 e pelo art. 147, a do CP – em concurso de crimes.
Acreditamos ser o caso de aplicação do princípio da consunção, pois a ameaça fora utilizada como crime meio para a consumação do crime fim, qual seja, a perseguição – tido por crime de maior gravidade. A ameaça deu colorido à perseguição. Deu credibilidade à perseguição. Assim, a ameaça restaria absorvida pela perseguição, por ser tida como um meio para se atingir a perseguição, em uma premissa invertida de que os fins justificariam os meios, em raciocínio quase “maquiaveliano”, parafraseando Maquiavel. Pensamos, porém, que essa não é e não será uma questão pacífica na doutrina. Ofertamos o nosso ponto de vista por puro amor ao debate! E, por óbvio, quando os contextos fáticos forem distintos vislumbramos o concurso de crimes. O caso concreto irá ditar a solução jurídica.
1.3) Crime de Perseguição e suas nuances
Outra maneira de se praticar o crime reside na burla à integridade psicológica, que provoca insegurança na vítima, e, para tanto, exige o dolo do perseguidor. São condutas que causam dano emocional em sentido lato. A conduta, repita-se, exige o dolo de dano emocional.
Logo, a pessoa diagnosticada esquizofrênica, que acha perseguição em tudo (o famoso “cismado”), possui uma patologia clínica que, a depender do cenário fático, poderá tornar a conduta do sujeito ativo atípica. Se não há dano emocional, mas a pessoa tem sensibilidade exacerbada, a ponto de enxergar problema onde não existe, não há que se falar em perseguição.
Outra característica do crime de perseguição é a restrição à capacidade de locomoção da vítima - que fica paralisada, literalmente falando, diante da perseguição. Não se exige o sequestro ou cárcere privado, mas a mera restrição de capacidade de locomoção da vítima que, por medo, da perseguição, renuncia suas atividades do cotidiano. Deixa de frequentar uma academia, de fazer uma caminhada no parque, na praia. Tudo isso para não ser molestada, afinal, a paz não tem preço!
Outro modo de perseguição que o tipo encabeça é: perseguição, de qualquer forma, burlando a liberdade ou privacidade da vítima. Assim: Um droni que, para satisfazer a curiosidade alheia, capta um momento íntimo de um casal de namorados numa residência é um tipo de perseguição. O tipo é por demasiado amplo e mitiga o princípio da taxatividade, consectário do princípio da legalidade, mas até que venha, se vier, a ser declarado inconstitucional, é o que temos para hoje!
1.4) O crime de Perseguição/ Stalking e a Lei 9.099/95
A pena do crime de perseguição/stalking, em seu tipo básico, é de seis meses a dois anos e multa. Trata-se de crime de menor potencial ofensivo, tal qual o crime de ameaça, com a aplicação dos institutos despenalizadores da lei 9.099/95, na sua modalidade simples (art. 147, a do CP).
Se houver o aumento, entabulado no parágrafo primeiro do tipo penal, não há que se falar em aplicação da Lei 9.099/95, pela singela razão de a pena ultrapassar o permissivo legal. Contudo, cabível, em tese, a suspensão condicional do processo (desde ausentes condutas ensejadoras de violência doméstica e familiar contra a mulher), embora incabível a transação penal.
Há que se pontuar que o crime de Stalking, em sua modalidade simples, será crime de menor potencial ofensivo, mas não admitirá medida despenalizadora se estiver atrelado a alguma situação configuradora de violência doméstica contra a mulher. Logo, incabível a transação penal ou a suspensão condicional do processo, caso a perseguição se dê contra a mulher, em um contexto de violência doméstica e familiar.
O Tribunal de Justiça do Paraná já se posicionou sobre o stalking, quando ainda em vigor o art. 65 do Decreto-lei 3.688/41, inadmitindo o instituto despenalizador da transação penal (TJPR- Processo Nº 0040408-48.2015.8.16.0014). A contravenção penal do art. 65 do Decreto-Lei 3.688/41 foi revogada pelo art. 147, A do CP, sendo que a transação penal é incabível na hipótese, não por analogia, mas por uma interpretação extensiva ao art. 41 da 11.340/2006. (Lei Maria da Penha). Esse é o nosso entendimento!
Dessa forma, embora a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná se refira a revogada contravenção penal de perturbação da tranquilidade, o Superior Tribunal de Justiça, através de o Enunciado Sumular 536, já bateu o martelo no sentido de que não cabe suspensão condicional do processo, tampouco transação penal no cenário que envolva a Lei Maria da Penha. “A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha” (Súmula 536 do Superior Tribunal de Justiça).
Uma observação importante no que toca a tipificação deve, aqui, ser mencionada: A forma majorada do crime (a pena aumenta-se da metade) dá a ele as vestes de crime de médio potencial ofensivo, longe da ótica de institutos despenalizadores, a exceção da suspensão condicional do processo, cuja pena mínima não ultrapasse um ano, desde que, desacompanhada, por óbvio do cenário de violência doméstica e familiar contra a mulher. É o cenário de violência doméstica e familiar contra a mulher que presente ou ausente ditará a possibilidade de suspensão condicional do processo ao stalker. Assim pensamos.
Conclusão
Durante décadas as mulheres vêm lutando por igualdade, por melhores condições de trabalho, por igualdade na sua condição de mulher frente aos homens. Nessa luta desmedida, muitas delas se expõem e pagam um preço altíssimo, revestido, no mais das vezes, em assédio moral, perseguições na rua, na família, no trabalho. A verdade é os seres humanos cresceram muito tecnologicamente falando, mas emocionalmente continuam imaturos. Em virtude disso, foram chamar o Direito Penal para as doenças da alma (obsessões, esquizofrenia, psicopatia) exercendo o papel de Pai Repressivo.
Casos sérios, que deveriam e poderiam ser solucionados pela Medicina e por outros ramos do Direito, agora, integram o palco do Direito Penal, na contramão do funcionalismo teleológico, defendido por Roxin, que apregoa a proteção dos bens jurídicos essenciais à vida humana.
A paz, direito fundamental de quinta geração, tem magnitude ímpar, mas encontra tutela na ciência médica e em outros ramos do ordenamento jurídico que não o Direito Penal (princípio da subsidiariedade) que deveria ser o último e não o primeiro ramo a ser chamado. Grades não ressocializam mentes obsessivas. É o que pensamos.
Referências Bibliográficas
MIR PUIG, Santiago. Direito penal: fundamentos e teoria do delito. Trad.: Cláudia Vianna Garcia e José Carlos Nobre Porciúncula Neto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007;
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral e parte especial. 4ª Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008;
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. 2ª Ed. Trad.: Diego-Manuel Luzon Peña et. al. Madrid: Editorial Civitas, 1997.
Artigo publicado em 07/07/2021 e republicado em 19/08/2024
Ex Tabeliã pelo TJMG. Especialista em Compliance Contratual, pela Faculdade Pitágoras. Mestre em Direito das Relações Internacionais pela Universidad de La Empresa – Montevideo – UY. Escritora. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAULA NAVES BRIGAGãO, . O crime de Perseguição ou Stalking na contramão da Teoria do Funcionalismo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2024, 04:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/56955/o-crime-de-perseguio-ou-stalking-na-contramo-da-teoria-do-funcionalismo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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