Resumo: O presente estudo objetiva analisar criticamente a alteração promovida pela Lei n. 13.964/2019 no que tange à possibilidade de execução provisória da pena prevista no art. 492, I, “e”, do Código de Processo Penal (CPP). Para isso, pesquisa a doutrina e a jurisprudência relacionadas ao tema.
Sumário: 1. Introdução. 2. Execução Provisória da Pena e Presunção de Inocência. 3. Da não vinculação do Poder Legislativo às decisões do STF. 4. Das consequências do backlash. 5. Da (im)possibilidade de reação por meio de emenda constitucional para restringir a presunção de inocência. 6. O contraponto: os princípios da vedação ao retrocesso e da máxima efetividade dos direitos fundamentais. 7. Princípio da vedação ao retrocesso 8. Princípios da interpretação pro homine e da máxima efetividade. 9. Precedentes recentes sobre o tema. 10. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o escopo de discutir a (in)constitucionalidade da alteração promovida pela Lei n. 13.964/2019 no que tange à possibilidade de execução provisória da pena prevista no art. 492, I, “e”, do Código de Processo Penal (CPP).
A Lei nº. 13.964 de 24 de dezembro de 2019, o dito “Pacote Anticrime” deu a seguinte redação ao art. 492, I, “e”, do Código de Processo Penal (CPP):
Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
I – no caso de condenação:
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos; (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Ocorre que, em 7 de novembro de 2019, menos de 2 meses antes da referida alteração legislativa, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54 firmou o entendimento pela constitucionalidade do artigo 283, caput, do Código de Processo Penal, concluindo no sentido de que não cabe a execução provisória da pena. O referido artigo assim dispunha:
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
A redação atual, também dada pela Lei nº 13.964 de 2019, assim dispõe:
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Percebe-se que não houve alteração substancial do dispositivo, que permanece admitindo a prisão somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Trata- se de previsão que se compatibiliza com o texto constitucional, pois concretiza o Estado de Inocência previsto no art. 5º, LVII, da CRFB/1988:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
O presente estudo toma como ponto de partida, diante de todo o exposto, a detecção de uma patente contradição: de um lado, a previsão legal admitindo a execução da pena em caráter provisório; de outro, a manifestação da mais alta Corte do país objetando tal medida, e mesmo a própria legislação (constitucional e infra) impondo obstáculos a aplicação da reprimenda penal nestes termos.
Tal contradição revela a necessidade de se avaliar a constitucionalidade do dispositivo legal acima referenciado, que autoriza a execução provisória da pena, pelas razões a serem expostas na sequência.
2. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
A nova redação dada ao art. 492, I, “e”, do CPP estabelece a execução provisória da pena, que consiste no início do cumprimento da pena imposta, mesmo que a decisão condenatória ainda não tenha transitado em julgado.
Ocorre que tal previsão afronta o princípio da presunção de inocência, insculpido no art. 5º, LVII, da CRFB/88, conforme entendimento atual do STF, firmado por seu Plenário no julgamento da ADC 43/DF, da ADC 44/DF e da ADC 54/DF é no sentido de que é proibida a chamada “execução provisória da pena”:
PENA – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE.
Surge constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, a condicionar o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, considerado o alcance da garantia versada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, no que direciona a apurar para, selada a culpa em virtude de título precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da sanção, a qual não admite forma provisória.
Importante estabelecer o conteúdo deste princípio. Aury Lopes Júnior[1] ensina que a essência da presunção de inocência irradia sua eficácia em três dimensões: norma de tratamento, norma probatória e norma de julgamento.
Como norma de tratamento, a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele.
Internamente, é a imposição – ao juiz – de tratar o acusado efetivamente como inocente até que sobrevenha eventual sentença penal condenatória transitada em julgado. Isso terá reflexos, entre outros, no uso excepcional das prisões cautelares.
Na dimensão externa ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiro limite democrático à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial.
O conteúdo fundamental do postulado em exame impõe que, no processo penal, não exista distribuição de cargas probatórias, como no processo civil, senão mera atribuição de carga ao acusador, de modo que a carga da prova é inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada).
A presunção de inocência, tomada como norma probatória, exige que o material de prova necessário para a afastar seja produzido pelo órgão acusador de modo lícito e tenha conteúdo para incriminador.
No cumprimento de seu ônus probatório, a acusação deverá utilizar apenas de provas lícitas e voltadas a demonstrar a culpa do imputado e a materialidade da infração, em todos os seus aspectos.
Esse significado da presunção de inocência é objetivo e antecede, por motivos lógicos, o seu significado de norma de juízo. Não se admite, ainda, nenhum tipo de inversão de carga probatória, sendo censuráveis – por violadores da presunção de inocência – todos os dispositivos legais neste sentido.
Mas não basta qualquer prova, é preciso que seja lícita, buscada, produzida e valorada dentro dos padrões constitucionais e legais. Nessa perspectiva, vale acrescentar a garantia de ser julgado com base em prova e não meros atos de investigação ou elementos informativos do inquérito.
Por fim, como norma de julgamento, a presunção de inocência é uma norma para o juízo, diretamente relacionada à definição e observância do standard probatório, atuando no nível de exigência de suficiência probatória para um decreto condenatório.
Difere-se da norma probatória na medida em que atua na perspectiva subjetiva, ao passo que as regras probatórias têm natureza objetiva. Trata-se de uma regra que incide após a norma probatória, pois somente poderá ocorrer sobre o material já produzido.
3. DA NÃO VINCULAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO ÀS DECISÕES DO STF
Explicitado o conteúdo da presunção de inocência, é importante ter em mente que as decisões do STF, mesmo em controle concentrado de constitucionalidade (como ocorreu no já citado julgamento das ADC’s 43, 44 e 54), não vinculam o Poder Legislativo em sua função típica de legislar.
Evita-se, dessa forma, o fenômeno da “Fossilização da Constituição” com a possibilidade da reação legislativa (“backlash legislativo”). Nesse sentido:
O efeito vinculante e a eficácia contra todos (“erga omnes”), que qualificam os julgamentos que o Supremo Tribunal Federal profere em sede de controle normativo abstrato, incidem, unicamente, sobre os demais órgãos do Poder Judiciário e os do Poder Executivo, não se estendendo, porém, em tema de produção normativa, ao legislador, que pode, em consequência, dispor, em novo ato legislativo, sobre a mesma matéria versada em legislação anteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo, ainda que no âmbito de processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, sem que tal conduta importe em desrespeito à autoridade das decisões do STF. Doutrina. Precedentes. Inadequação, em tal contexto, da utilização do instrumento processual da reclamação.
(STF. PLENÁRIO. AG.REG. NA RECLAMAÇÃO 13.019 DISTRITO FEDERAL. RELATOR MIN. CELSO DE MELLO. 19/02/2014.)
E também a doutrina[2]:
O efeito vinculante em ADI e ADC, na linha de interpretação dada pelo STF, não atinge o Poder Legislativo no exercício de sua função típica de legislar, produzindo eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (exceto, entendemos, no exercício por esses órgãos de suas funções atípicas de caráter normativo, como, para se ter um exemplo, quando o Presidente da República edita medida provisória — ato normativo).
Ao analisar a possibilidade de vinculação também para o Legislativo (no caso de sua função típica), essa possível interpretação (diversa da literalidade constitucional) significaria o inconcebível fenômeno da fossilização da Constituição.
O Legislativo, assim, poderá, inclusive, legislar em sentido diverso da decisão dada pelo STF, ou mesmo contrário a ela, sob pena, em sendo vedada essa atividade, de significar inegável petrificação da evolução social.
O tema está intimamente ligado ao que se costuma denominar Constitucionalismo Democrático e Backlash (Reação Social em Razão de Decisão da Corte)[3]:
Em sua denotação clássica, o termo está relacionado a uma reação brusca ou contragolpe de uma roda ou conjunto de rodas conectadas em um mecanismo em razão de movimento não uniforme ou pressão súbita aplicada (Oxford English Dictionary).
Em momento seguinte, a palavra passou a ser utilizada no contexto político para descrever reações desencadeadas por mudanças bruscas e ameaçadoras do status quo, destacando-se aqui, por exemplo, reações aos movimentos de conquista de direitos civis e aos movimentos feministas em busca de direitos etc.
Finalmente, Post e Siegel observam que a doutrina norte-americana passou a empregar o termo backlash — nesse sentido de reação, a partir do papel desempenhado pelas Cortes em relação a temas extremamente delicados para o seu momento histórico, como a separação entre brancos e negros em escolas do Sul dos Estados Unidos (Brown v. Board of Education) e o reconhecimento da possibilidade da interrupção da gravidez até o primeiro trimestre (Roe v. Wade), dentre tantos outros.
Conforme explicam, a maioria dos autores refere-se ao fenômeno backlash sob a perspectiva dos tribunais e considerando o risco que a decisão, sem o apoio popular, possa trazer à própria existência (e legitimidade) do Poder Judiciário.
Dessa forma, fato é que o Poder Legislativo não estava - nem poderia estar - impedido de promover a alteração ora analisada.
O que não inibe, por outro lado, a análise da constitucionalidade ou não da novidade legislativa.
4. DAS CONSEQUÊNCIAS DO BACKLASH
A alteração promovida pelo “pacote anticrime” permitindo a execução provisória da pena já nasceu com presunção de inconstitucionalidade.
Isso porque, embora, como regra, as leis nasçam com presunção de constitucionalidade, nos casos em que há decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade pela Corte Constitucional, eventual lei que repita o já decidido nascerá com presunção de Inconstitucionalidade, sendo do Legislador o ônus de apontar as eventuais mudanças nas premissas fáticas ou jurídicas que justificariam a inovação normativa em desacordo com o firmado jurisprudencialmente.
Tal assertiva vem extraída da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 5105/DF. Na ocasião, ademais, o voto do Ministro Luiz Fux assentou entendimento que delimita a aplicabilidade de tal comando.
Com efeito, no caso de reversão jurisprudencial (reação legislativa) proposta por meio de emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá nas restritas hipóteses de violação aos limites previstos no art. 60, e seus §§, da CF/88.
Em suma, se o Congresso editar uma emenda constitucional buscando alterar a interpretação dada pelo STF para determinado tema, essa emenda somente poderá ser declarada inconstitucional se ofender uma cláusula pétrea ou o processo legislativo para edição de emendas.
Por outro lado, no caso de reversão jurisprudencial proposta por lei ordinária, a lei que frontalmente colidir com a jurisprudência do STF nasce com presunção relativa de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente se afigura legítima.
Assim, para que tal lei seja considerada válida, o Congresso Nacional deverá comprovar que as premissas fáticas e jurídicas sobre as quais se fundou a decisão do STF no passado não mais subsistem. O Poder Legislativo promoverá verdadeira hipótese de mutação constitucional pela via legislativa.
Com efeito, parece não ter havido qualquer possibilidade de alteração das premissas fáticas e jurídicas, tendo em vista que o “pacote anticrime” veio pouco mais de um mês após a decisão do STF.
5. DA (IM)POSSIBILIDADE DE REAÇÃO POR MEIO DE EMENDA CONSTITUCIONAL PARA RESTRINGIR A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Como se destacou, o art. 492, I, “e”, do CPP, com redação dada pela Lei nº. 13.964 de 2019 (“Pacote Anticrime”) já surgiu com presunção de inconstitucionalidade, conforme jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal acima referenciada, uma vez que se trata de alteração promovida por lei ordinária e que contraria decisão realizada por meio de controle concentrado de constitucionalidade.
Todavia, há Proposta de Emenda à Constituição nº 410 de 2018 objetivando dar a seguinte redação ao inciso LVII do art. 5º da CRFB/88:
LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso
Importante também discutir a possibilidade dessa eventual alteração. A indagação que se coloca diante da Proposta de Emenda Constitucional em exame é se a pretendida inovação normativa ofende a cláusula pétrea prevista no inciso IV do § 4º do art. 60 da CRFB/88. A saber:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV - os direitos e garantias individuais.
Inicialmente, vale recordar que a Emenda Constitucional pode ser objeto do controle de constitucionalidade. Nesse sentido, assinala Barroso[4]:
É pacífica a possibilidade de controle de constitucionalidade de emenda à Constituição. Sujeita-se ela à fiscalização formal e material: há conteúdos que não podem constar de emenda, por força de interdições constitucionais denominadas cláusulas pétreas (art. 60, § 4º).
Esse também é o posicionamento do STF:
CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE. 1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 32033, Relator: Min. GILMAR MENDES, Relator p/ Acórdão: Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 20/06/2013)
Sedimentada a possibilidade de controle de constitucionalidade de Emendas, é importante que se enfrente os limites desse controle.
Conforme ensina Lenza, o poder constituinte originário também estabeleceu algumas vedações materiais, ou seja, definiu um núcleo intangível, comumente chamado pela doutrina de cláusulas pétreas.
Nesse sentido (e inovando o disposto no art. 50, § 1º, da Constituição de 1967, que previa como cláusulas pétreas apenas a Federação e a República), não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
No entanto, o posicionamento majoritário é no sentido de que isso não significa, como já interpretou o STF, que a matéria em questão não possa ser modificada. O que não se admite é reforma que tenda a abolir, repita-se, tais direitos, dentro de um parâmetro de razoabilidade. É o que explica o professor Ingo Sarlet[5]:
Com efeito, o dilema que se segue diz respeito ao nível de proteção efetivamente atribuído aos assim designados conteúdos “pétreos”, em suma, o quanto são “pétreas” as “cláusulas pétreas”. É certo que a condição de limite material ao poder de reforma constitucional não implica absoluta imutabilidade dos conteúdos como tais assegurados.
Por outro lado, não é de fácil determinação o momento no qual determinada emenda à Constituição efetivamente tende a abolir o conteúdo protegido. Tal aferição apenas poderá ocorrer à luz do caso concreto, cotejando-se o conteúdo da emenda com a decisão fundamental integrante do rol das “cláusulas pétreas”, o que igualmente – vale enfatizar - se impõe na hipótese de incidir alguma limitação material implícita.
Além disso, verifica-se que uma abolição efetiva, para efeitos do controle da constitucionalidade da reforma, pode ser equiparada a uma abolição “tendencial”, já que ambas as hipóteses foram expressamente vedadas pelo constituinte.
De acordo com a lição da doutrina majoritária, as “cláusulas pétreas” de uma Constituição não objetivam a proteção dos dispositivos constitucionais em si, mas, sim, dos princípios (e regras) neles plasmados, não podendo os mesmos ser esvaziados por uma reforma constitucional. Nesse sentido, é possível sustentar que as “cláusulas pétreas” contêm, em regra, uma proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais.
Uma mera modificação no enunciado do dispositivo não conduz, portanto, necessariamente a uma inconstitucionalidade, desde que preservado o sentido do preceito e não afetada a essência do princípio objeto da proteção.
De qualquer modo, é possível comungar do entendimento de que a proteção imprimida pelas “cláusulas pétreas” não implica a absoluta intocabilidade do bem constitucional protegido (GRIFO NOSSO).
A partir dessa premissa seria sustentável dizer que a PEC 410/2018, acaso aprovada, não seria inconstitucional, uma vez que não atingiria o núcleo essencial desse direito fundamental.
Por sua vez, a definição a respeito do que viria a compor o comentado núcleo representa um convite à analise das normativas internacionais que cuidam da matéria, notadamente, as próprias previsões inseridas no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), ambos incorporados ao nosso ordenamento, segundo o STF, com status supralegal[6], embora haja doutrina abalizada – como a professora Flávia Piovesan[7] - defendendo que são, pelo menos, materialmente constitucionais.
Aliás, o Supremo já se manifestou sobre a supralegalidade da CADH (e também do PIDCP), entre outros, no julgamento da ADI 5240:
1. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem, que dispõe, em seu artigo 7º, item 5, que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, posto ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada “audiência de custódia”, cuja denominação sugere-se “audiência de apresentação”. (ADI 5240, Relator Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2015)
Neste sentido, vale trazer as previsões dos mencionados Tratados Internacionais:
PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS
ARTIGO 14. 2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.
CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA) – DECRETO Nº 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992
ARTIGO 8. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
Conforme se vê, os dois documentos referenciados tratam da presunção legal de culpa, que é um conceito vago, permitindo ampla margem ao legislador para que defina o momento em que a presunção de inocência deverá ser tida como elidida.
Portanto, aqui se nota um argumento favorável à PEC 410/2018, pois não estaria sendo violado o núcleo essencial desse direito fundamental (humano), tendo como referências os próprios instrumentos acima citados.
6. O CONTRAPONTO: OS PRINCÍPIOS DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO E DA MÁXIMA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Para o desenvolvimento do argumento que aqui se pretende desenvolver é essencial ter em mente algumas premissas nas quais se fundam nosso Estado Democrático de Direito. Como ensina Barroso[8]:
A ideia de Estado democrático de direito, consagrada no art. 1º da Constituição brasileira, é a síntese histórica de dois conceitos que são próximos, mas não se confundem: os de constitucionalismo e de democracia.
Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat).
Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria.
Longe de serem conceitos antagônicos, portanto, constitucionalismo e democracia são fenômenos que se complementam e se apoiam mutuamente no Estado contemporâneo.
No mundo moderno, os objetivos da Constituição podem ser assim sistematizados:
a) Institucionalizar um Estado democrático de direito, fundado na soberania popular e na limitação do poder;
b) Assegurar o respeito aos direitos fundamentais;
c) Contribuir para o desenvolvimento econômico e para a justiça social;
d) Prover mecanismos que garantam a boa administração, com racionalidade e transparência nos processos de tomada de decisão, de modo a propiciar governos eficientes e probos.
Adota-se aqui, portanto, uma visão substancialista, e não procedimentalista da Constituição e da jurisdição constitucional. No ambiente da democracia deliberativa, a Constituição deve conter – e juízes e tribunais devem implementar – direitos fundamentais, princípios e fins públicos que realizem os grandes valores de uma sociedade democrática: justiça, liberdade e igualdade.
Os direitos fundamentais (e humanos) são verdadeiras garantias do cidadão em face do Estado – tidos como conquistas civilizatórias. Por isso, não podem ser negociados ao bel prazer de eventual maioria que anseia por mais punição a qualquer custo. A tal assertiva acrescenta-se a problematização do Estado de Coisas Inconstitucional que vive o sistema carcerário brasileiro, já reconhecido pelo Supremo:
CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil.
SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”.
FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional.
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.
(ADPF 347 MC, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j.09.09.2015)
A demanda pela admissão da execução provisória da pena só tende a piorar essa realidade. É verdadeira legislação penal simbólica[9] que não resolve (sequer atenua) qualquer problema. A respeito do conceito de direito penal simbólico, vale trazer breve explicação.
Diante de certa insatisfação da sociedade, a legislação-álibi (ou simbólica) aparece como uma resposta pronta e rápida do governo e do Estado. Busca dar uma aparente solução para problemas da sociedade, mesmo que mascarando a realidade.
Destina-se, como aponta Neves, a criar a imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normatizadas de maneira consequente conforme o respectivo texto legal.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função ideológica.
Tal constatação evidencia uma instrumentalização da legislação penal em favor de objetivos simbólicos – o que é inaceitável. Daí a necessidade de se invocar a aplicação de princípios que possam obstar o avanço da legislação punitiva na direção em comento.
Neste sentido, oportuna a referência aos postulados da “vedação ao retrocesso” e da “máxima efetividade”, cujo conteúdo verá sucintamente comentado abaixo.
Tais princípios se afiguram como instrumentos para conter a indesejável fragilização de direitos (conquistados a tanto custo) aqui detectada.
7. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO
Tradicionalmente, a literatura jurídica dividia os direitos humanos em três gerações ou dimensões, como ensina o professor André de Carvalho Ramos[10]:
A teoria das gerações dos direitos humanos foi lançada pelo jurista francês de origem checa, Karel Vasak, que, em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo (França), no ano de 1979, classificou os direitos humanos em três gerações, cada uma com características próprias.
Posteriormente, determinados autores defenderam a ampliação da classificação de Vasak para quatro ou até cinco gerações.
Cada geração foi associada, na Conferência proferida por Vasak, a um dos componentes do dístico da Revolução Francesa: “liberté, egalité et fraternité” (liberdade, igualdade e fraternidade).
Assim, a primeira geração seria composta por direitos referentes à “liberdade”; a segunda geração retrataria os direitos que apontam para a “igualdade”; finalmente, a terceira geração seria composta por direitos atinentes à solidariedade social (“fraternidade”).
O princípio da vedação ao retrocesso, por sua vez, teria relação especialmente com os direitos ditos sociais ou de “segunda dimensão”, pois, de acordo com uma visão tradicional (e retrógrada), esses seriam de implementação progressiva, enquanto os ditos direitos de primeira dimensão seriam de aplicação imediata.
No entanto, a doutrina moderna e mesmo os instrumentos internacionais já reconhecem a indivisibilidade, a interdependência e a unidade dos direitos humanos (e fundamentais). Nessa linha, o art. 5º da Declaração de Viena de 1993:
5. Todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase
De acordo com André de Carvalho Ramos, a indivisibilidade consiste no reconhecimento de que todos os direitos humanos possuem a mesma proteção jurídica, uma vez que são essenciais para uma vida digna. A indivisibilidade possui duas facetas.
A primeira implica reconhecer que o direito protegido apresenta uma unidade incindível em si. A segunda faceta, mais conhecida, assegura que não é possível proteger apenas alguns dos direitos humanos reconhecidos, zelando pelo mínimo existencial.
A interdependência ou inter-relação consiste no reconhecimento de que todos os direitos humanos contribuem para a realização da dignidade humana, interagindo para a satisfação das necessidades essenciais ao indivíduo, o que exige, novamente, a atenção integral a todos os direitos humanos, sem exclusão.
Dessa forma, é possível sustentar também o princípio da vedação ao retrocesso para o presente caso da presunção de inocência. Conforme defende Lenza[11]:
O legislador, ao regulamentar os direitos, deve respeitar o seu núcleo essencial, dando as condições para a implementação dos direitos constitucionalmente assegurados.
E o Judiciário deve corrigir eventual distorção para se assegurar a preservação do núcleo básico que qualifica o mínimo existencial.
Ainda, nesse mesmo contexto, deve ser observado o princípio da vedação ao retrocesso, isso quer dizer, uma vez concretizado o direito, ele não poderia ser diminuído ou esvaziado, consagrando aquilo que a doutrina francesa chamou de effet cliquet.
Entendemos que nem a lei poderá retroceder, como, em igual medida, o poder de reforma, uma vez que a emenda à Constituição deve resguardar os direitos sociais já consagrados.
Em que pese haver vozes na doutrina em favor de tal ideia (a exemplo de Lenza), esse não parece ser o posicionamento consolidado no STF recentemente, conforme se depreende da decisão de relatoria do Ministro Celso de Mello na ADI 6218 MC/RS, em 10 de dezembro de 2019.
Lado outro, é também possível detectar na Jurisprudência da Corte decisões em favor da aplicação do princípio em exame para todos os direitos fundamentais, a despeito da geração que integrem. Nesse sentido, o exposto pelo Ministro Ricardo Lewandowski[12]:
Independentemente da geração a que pertençam, milita a favor dos direitos fundamentais, em especial dos sociais, o princípio da proibição do retrocesso, plasmado no art. 30 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, da ONU, cuja redação é a seguinte: "Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos".
Em lição muito oportuna, considerada a quadra pela qual passamos, o jurista português Gomes Canotilho pontua que a "proibição do retrocesso nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas [...], mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos", sob pena de afronta aos postulados da legítima confiança e da segurança dos cidadãos. Isso porque "o núcleo essencial dos direitos já realizado e efetivado através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido", sendo inconstitucional a sua supressão, "sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios".
O princípio da proibição do retrocesso, portanto, impede que, a pretexto de superar dificuldades econômicas, o Estado possa, sem uma contrapartida adequada, revogar ou anular o núcleo essencial dos direitos conquistados pelo povo. É que ele corresponde ao mínimo existencial, ou seja, ao conjunto de bens materiais e imateriais sem o qual não é possível viver com dignidade.
8. PRINCÍPIOS DA INTERPRETAÇÃO PRO HOMINE E DA MÁXIMA EFETIVIDADE
É praticamente pacífico na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que nenhum direito seria absoluto. Por outro lado, há posições respeitadas na literatura jurídica em favor da ideia de que a vedação à tortura e à escravidão representariam direitos absolutos, o que foi decidido pela Corte IDH no Caso Tibi vs. Equador. Nessa linha, ensinam Caio Paiva e Thimotie Heemann[13]:
Existe um regime jurídico internacional de proibição absoluta de todas as formas de tortura, tanto física como psicológica, regime que pertence hoje em dia ao domínio do ius cogens. A proibição da tortura é completa e inderrogável, ainda que nas circunstâncias mais difíceis, tais como a guerra, ameaça de guerra, luta contra o terrorismo e quaisquer outros delitos, estado de sítio ou de emergência, comoção ou conflito interior, suspensão de garantias constitucionais, instabilidade política interna ou outras emergências ou calamidades públicas
Em sentido semelhante, vale destacar a definição de norma de jus cogens prevista no art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.
Artigo 53 - Tratado em Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens)
É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.
Ancorados na premissa de que, em regra, os direitos não são absolutos, há quem defenda a relativização da presunção da inocência em nome da soberania dos veredictos, prevista no art. 5º, XXXVIII, da CRFB/88. Tal posição merece ser aqui rebatida.
O primeiro ponto a se alertar é que a soberania dos veredictos é um direito fundamental do cidadão e, como tal, não pode ser usado para afastar ou relativizar outro direito fundamental do mesmo titular.
O segundo ponto é que, mesmo nos casos julgados pelo Tribunal do Júri, é possível recorrer de eventual sentença condenatória, conforme art. 593, III, do CPP.
Aliás, o duplo grau de jurisdição é inclusive um direito humano reconhecido e garantido pela Corte IDH, conforme Caso Mohamed vs. Argentina. Como trazem Caio Paiva e Thimotie Heemann, para a Corte IDH, o direito ao recurso a que se refere a CADH (art. 8.2.h) deve ser um recurso ordinário, que possa analisar questões fáticas, probatórias e jurídicas nas quais se baseia a sentença impugnada, já que existe uma interdependência entre as determinações fáticas e a aplicação do direito, de forma que uma equivocada determinação dos fatos implica uma equivocada ou indevida aplicação do direito.
Ainda sobre o tema, importante as lições de Aury Lopes Júnior[14] sobre o dito príncipio in dubio pro societate e a soberania dos veredictos:
Questionamos, inicialmente, qual é a base constitucional do in dubio pro societate? Nenhuma. Não existe.
Por maior que seja o esforço discursivo em torno da soberania do júri, tal princípio não consegue dar conta dessa missão.
Não há como aceitar tal expansão da soberania a ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri.
Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário. Também é equivocado afirmar-se que, se não fosse assim, a pronúncia já seria a condenação do réu.
A pronúncia é um juízo de probabilidade, não definitivo, até porque, após ela, quem efetivamente julgará são os jurados, ou seja, é outro julgamento a partir de outros elementos, essencialmente aqueles trazidos no debate em plenário.
Portanto, a pronúncia não vincula o julgamento, e deve o juiz evitar o imenso risco de submeter alguém ao júri, quando não houver elementos probatórios suficientes (verossimilhança) de autoria e materialidade. A dúvida razoável não pode conduzir a pronúncia.
O postulado em exame não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus.
O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal.
Não há nenhum dispositivo legal que autorize a aplicação do princípio em questão. O ônus da prova, conforme repetidamente destacado neste trabalho, é do Estado e não do investigado.
A alegação de que os jurados são soberanos não pode autorizar uma condenação com base na dúvida. Portanto, parece não haver qualquer conflito entre o princípio da presunção de inocência e a soberania dos veredictos.
E isso é reforçado por julgados mais recentes tanto da 5ª como da 6ª Turmas do STJ envolvendo o tema se adequando aos precedentes do STF, que vem rechaçando a pronúncia do acusado com base em um dito princípio do in dubio pro societate:
Nova orientação do Supremo Tribunal Federal (HC n. 180144, Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 22/10/2020). A primeira fase do procedimento do júri constitui filtro processual com a função de evitar julgamento pelo plenário sem a existência de prova de materialidade e indícios de autoria. É ilegal a sentença de pronúncia com base exclusiva em provas produzidas no inquérito, sob pena de igualar em densidade a sentença que encera o jus accusationis à decisão de recebimento de denúncia. Todo o procedimento delineado entre os arts. 406 e 421 do Código de Processo Penal disciplina a produção probatória destinada a embasar o deslinde da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri. Trata- se de arranjo legal, que busca evitar a submissão dos acusados ao Conselho de Sentença de forma temerária, não havendo razão de ser em tais exigências legais, fosse admissível a atividade inquisitorial como suficiente.
STJ - HC: 589270 GO, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, DJe 22/03/2021
Note-se a ausência de indícios suficientes de autoria delitiva (art. 413 do CPP) submetidos ao devido processo legal, carecendo, portanto, a referenciada prova, de judicialização apta a embasar a pronúncia. Força argumentativa das convicções dos magistrados. Provas submetidas ao contraditório e à ampla defesa.No Estado Democrático de Direito, o mínimo flerte com decisões despóticas não é tolerado, e a liberdade do cidadão só pode ser restringida após a superação do princípio da presunção de inocência, medida que se dá por meio de procedimento realizado sob o crivo do devido processo legal.
Prova produzida extrajudicialmente. Elemento cognitivo formado sem o devido processo legal, princípio garantidor das liberdades públicas e limitador do arbítrio estatal. Na hipótese, optar pela pronúncia implica considerar suficiente a existência de prova inquisitorial para submeter o réu ao Tribunal do Júri sem que se precisasse, em última análise, de nenhum elemento de prova a ser produzido judicialmente. Ou seja, significa inverter a ordem de relevância das fases da persecução penal, conferindo maior juridicidade a um procedimento administrativo realizado sem as garantias do devido processo legal em detrimento do processo penal, o qual é regido por princípios democráticos e por garantias fundamentais.
Opção legislativa. Procedimento escalonado. Diante da possibilidade da perda de um dos bens mais caros ao cidadão: a liberdade, o Código de Processo Penal submeteu o início dos trabalhos do Tribunal do Júri a uma cognição judicial antecedente. Perfunctória, é verdade, mas munida de estrutura mínima a proteger o cidadão do arbítrio e do uso do aparelho repressor do Estado para satisfação da sanha popular por vingança cega, desproporcional e injusta.
O standard probatório relativo à pronúncia é mais alto que o de uma decisão qualquer (exceto condenação de meritis). Por isso, a pronúncia, exigindo um padrão de prova mais elevado, dado que requer cognição mais aprofundada, não pode se contentar unicamente com elementos probatórios que não foram submetidos ao contraditório.Impossibilidade de se admitir a pronúncia de acusado com base em indícios derivados do inquérito policial. Precedentes.
STJ - HC: 560552 RS, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, DJe 26/02/2021
No entanto, mesmo que houvesse, a solução passa pelos princípios da interpretação pro homine e da máxima efetividade.
Nesse sentido, André de Carvalho Ramos esclarece que o critério da máxima efetividade exige que a interpretação de determinado direito conduza ao maior proveito do seu titular, com o menor sacrifício imposto aos titulares dos demais direitos em colisão. Já o critério da interpretação pro homine exige que a hermenêutica dos direitos humanos seja sempre aquela mais favorável ao indivíduo.
Nesse ponto, cumpre anotar a posição de Sarlet[15], que defende, nos casos de colisão e na ausência de possibilidade de concordância prática entre as normas, a prevalência da norma que mais promova a dignidade da pessoa humana.
Há, ainda, o argumento de que o princípio da presunção de inocência favorece a impunidade, principalmente dos réus com melhores condições financeiras.Tal ponto pode também ser facilmente refutado.
Primeiro, porque, como já destacado, os direitos fundamentais são garantias do indivíduo em face do Estado e a eventual ineficiência do Estado-Juiz não pode servir de justificativa para restringir um direito do indivíduo.
Segundo, porque esse argumento não encontra respaldo nos fatos. Sabe-se que as dificuldades financeiras são sim um eventual obstáculo no acesso à Justiça, como apontado pela 1ª Onda de Acesso à Justiça, exposta no Projeto Florença sobre as Ondas Renovatórias de Acesso à Justiça, de Cappelletti e Garth[16].
A suposta dificuldade do acesso aos tribunais superiores por réus pobres é apontada por defensores da prisão após condenação em segunda instância como uma das justificativas para o início do cumprimento da pena após duas condenações.
Porém, para garantir que todos os membros da sociedade sejam capazes de participar de forma igualitária do estabelecimento da ordem jurídica, independentemente de sua particular condição de fortuna, o ordenamento jurídico fundamentalmente prevê dois instrumentos de equalização do acesso à justiça: (i) a gratuidade de justiça; e (ii) a assistência jurídica gratuita exercida pela Defensoria Pública.
E a Defensoria Pública, apesar da (inconstitucional) limitação orçamentária, cumpre muito bem sua função[17]. Os números divulgados pelo STJ indicam, no entanto, que não apenas os recursos dos réus mais pobres, atendidos pela Defensoria Pública, chegam a Brasília como também eles costumam ser alvos de mais constrangimentos ilegais do que os clientes atendidos por advogados: os ministros do tribunal concederam 35% dos habeas corpus pedidos pelos defensores públicos de 2015 a 2017. Mesmo apresentando menos habeas corpus ao todo, os advogados tiveram mais pedidos negados que as Defensorias e a metade da taxa de sucesso: 17%.
Por fim, o terceiro e último argumento para rechaçar a tese de impunidade dos mais ricos para sustentar eventual prisão em segunda instância: a inegável seletividade penal. Afirma Nilo Batista[18]:
O sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas. (As exceções, além de confirmarem a regra, são aparatosamente usadas para a reafirmação do caráter igualitário). O sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade, quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana, quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela.
Zaffaroni aponta a diferença (cifras ocultas) entre a criminalidade real e a criminalidade registrada (ou aparente) e a seletividade decorrente dessa diferença. A regra é que os reclusos sejam os mais vulneráveis e escolhidos pelas instituições policial e judiciária (criminalização secundária) para adentrar no sistema carcerário[19]. Além disso, a seletividade na criminalização ocorre já no âmbito legislativo (criminalização primária), muito bem demonstrada empiricamente por Valois[20].
A consequência de bradar pela punição dos mais ricos é punir ainda mais os menos favorecidos. O sistema penal é seletivo por natureza.
9. PRECEDENTES RECENTES SOBRE O TEMA
O Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 25/10/2019, portanto antes do julgamento das ADC’s já mencionadas, a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada no Leading Case RE 1235340, do respectivo Tema 1068, em que se discute “à luz do art. 5º, inciso XXXVIII, alínea c, da Constitucional Federal, se a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de pena imposta pelo Conselho de Sentença.”.
Após a alteração promovida pelo pacote anticrime, a questão já chegou aos Tribunais de Sobreposição. Recentemente, em agosto deste ano (2021), a 6ª Turma do STJ entendeu pela inconstitucionalidade da execução provisória da pena.
Nesse sentido:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. PENA IGUAL OU SUPERIOR A 15 ANOS DE RECLUSÃO. ART. 492, I, E, DO CPP. IMPOSSIBILIDADE. ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NÃO ALTERADO. JULGAMENTO DO RE N. 1.235.340 NÃO CONCLUÍDO. ORDEM CONCEDIDA.
O Supremo Tribunal Federal decidiu, nas ADCs n. 43, 44 e 54, pela constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal. Assim, ressalvadas as hipóteses em que estão presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva ou temporária, é constitucional a regra que prevê o esgotamento de todas as possibilidades de recurso para que então seja iniciado o cumprimento definitivo da pena.
Não se desconhece que a possibilidade de execução provisória nas condenações proferidas pelo Tribunal do Júri, com pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, está sendo apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n. 1.235.340 - Tema n. 1.068, contudo, o julgamento ainda não foi concluído.
Dessa forma, mantém-se o entendimento, nesta Corte Superior, pela impossibilidade de execução provisória da pena, ainda que em condenação proferida pelo Tribunal do Júri com reprimenda igual ou superior a 15 anos de reclusão. Precedentes.
STJ - HC: 649103 ES, Relator: Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, DJe 12/08/2021
Assim, enquanto não há uma definição sobre o tema tomada pelo Supremo Tribunal Federal, sustentamos a inconstitucionalidade pelas razões acima expostas.
10. CONCLUSÃO
A execução provisória da pena prevista no art. 492, I, “e”, do CPP, com redação dada pela Lei nº. 13.964 de 2019 (“Pacote Anticrime”), já nasceu, presumidamente, inconstitucional, por contrariar o decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54.
Além disso, em razão do princípio da vedação ao retrocesso, aplicável a todas as “dimensões” de direitos fundamentais, nem mesmo eventual Emenda à Constituição poderia restringir o direito à presunção de inocência nos moldes em que hoje ele se apresenta.
Tampouco o argumento de comparação com outros ordenamentos ou tratados internacionais de direitos humanos se mostra capaz de justificar o agravamento punitivo na seara em exame. Isto porque os princípios da interpretação pro homine e da máxima efetividade se colocam como obstáculos para concretização da mudança normativa pretendida.
A tentativa de legitimar a execução provisória da pena representa verdadeiro malabarismo hermenêutico e revela-se flagrantemente fracassada.
A assertiva que se coloca como desfecho do presente estudo é simples, mas nem por isso menos importante: “Trânsito em julgado” quer dizer justamente isso. A Constituição foi clara em delimitar o marco final da presunção de inocência e a previsão da magna carta não pode ser contrariada por uma interpretação infundada da legislação ordinária.
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[1] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020, np.
[2] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 22. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, np.
[3] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 22. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[4] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[5] SARLET, Ingo Wolfgang. Proteção de direitos findamentais diante das emendas constitucionais (parte 2). Portal Consultor Jurídico (Conjur). 20 mai. 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-mai-20/direitos-fundamentais-protecao-direitos-fundamentais-diante-emendas-parte>
[6] A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) são tratados de direitos humanos, mas que não foram aprovados segundo as regras do art. 5º, § 3º da CF/88 (porque são anteriores à EC 45/2004, que acrescentou este § 3º). Isso significa que esses tratados possuem status supralegal no Brasil.
[7] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
[8] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
[9] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
[10] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 6 ed. Saraiva. 2019
[11] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 22. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.
[12] LEWANDOWSKI, Ricardo. FOLHA DE S. PAULO / SP - OPINIÃO - pág.: A03. Qui, 1 de Fevereiro de 2018
[13] PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3 ed. Belo Horizonte. CEI, 2020.
[14] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.
[15] SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais, reforma do Judiciário e tratados internacionais de direitos humanos.
[16] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública I. 3. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2018.
[17] DANTAS, Dimitrius. Defensoria Pública é responsável por quase metade dos recursos apresentados em instâncias superiores. O Globo (versão eletrônica). Época. 29 out. 2019. Disponível em:< https://epoca.globo.com/brasil/defensoria-publica-responsavel-por-quase-metade-dos-recursos- apresentados-em-instancias-superiores-24048594>
[18] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.25
[19] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Tradução Sérgio Lamarão – Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3 ed.
[20] VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 2 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.
Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público do Estado de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pós graduado em direitos humanos pela Faculdade CERS. Autor do livro Coleção Defensoria Pública - Ponto a Ponto - Execução Penal e Criminologia - 1ª Edição 2021
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAIA, Erick de Figueiredo. A inconstitucionalidade da execução provisória da pena prevista no art. 492, i, “e”, do CPP, com redação dada pela Lei nº. 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 nov 2021, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57385/a-inconstitucionalidade-da-execuo-provisria-da-pena-prevista-no-art-492-i-e-do-cpp-com-redao-dada-pela-lei-n-13-964-2019-pacote-anticrime. Acesso em: 23 dez 2024.
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