RESUMO: O infanticídio indígena é uma prática cultural que ocorre em algumas tribos indígenas brasileiras, a qual vitima crianças de várias idades, em busca da preservação cultural da etnia. O infanticídio indígena ainda é praticado por cerca de 20 etnias entre as tribos brasileiras, leva à morte não apenas de gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental, físico, ou doença não identificada pela tribo. Há quem argumente que o infanticídio é parte da cultura indígena. Apesar da Constituição Federal garantir aos índios a proteção de seus costumes e tradições, a constituição também garante o direito à vida, que deve sobrepor à prática cultural. A mudança desse costume deve ser buscada pelo diálogo intercultural, acompanhada de políticas públicas de amparo às comunidades indígenas.
PALAVRAS-CHAVE: infanticídio indígena; direito a vida; direito a cultura; teoria universalista; teoria do relativismo
SUMARIO: 1. Introdução - 2. Infanticídio: 2.1 aspectos gerais; 2.2 a prática do infanticídio nas tribos brasileiras; 2.3 a proteção internacional dos direitos humanos dos povos indígenas; 2.4 declaração das Nações Unidas sobre o direito dos povos indígenas; 3. Direito a vida; 3.1 relativismo cultural e universalismo; 3.2 ponderando princípios; 4. Conclusão; 5. Referências.
1.INTRODUÇÃO
O direito à vida e a cultura são direitos fundamentais da constituição federal de 1988, vamos abordar duas teorias sobre esse tema, alguns autores defendem a teoria do relativismo cultural e outros defendem a teoria universalista dos direitos humanos.
O Relativismo Cultural busca entender os valores culturais de uma sociedade a partir dos padrões vigentes neste grupo social. O relativismo cultural, inicialmente desenvolvido por Franz Boas e com base no historicismo de Herder, defende que bem e mal são elementos definidos em cada cultura. E que não há verdades culturais visto que não há padrões para se pesar o comportamento humano e compará-lo a outro. Cada cultura, pesa a si mesma e julga a si mesma.
A teoria Universalista dos direitos humanos defende a imposição da proteção aos direitos fundamentais do homem mundialmente, em nível global, não podendo haver escusas, sejam elas de ordem cultural, filosófica ou ideológica para que aconteça qualquer ato de desrespeito a esses direitos.
Nessa mesma linha de pensamento, não se pretende diminuir o valor da vida ou defender que as crianças devem estar completamente submetidas à vontade de seus genitores, mas fazer entender que até mesmo o direito à vida é relativo, ainda que os motivos que levam algumas etnias indígenas a permitir o assassinato deliberado de crianças sejam tidos como injustificáveis para a maioria da sociedade.
Sem dúvidas, o direito às manifestações de crença e de cultura não se sobrepõem ao direito à vida, mas o ponderamento desses direitos depende de parâmetros, os quais, portanto, devem ser aplicados segundo o referido nível de integração daquele indivíduo à comunhão nacional, pois não seria adequado fazer pesar nos autóctones os valores morais vigentes na sociedade brasileira, os quais são baseados em influências históricas e religiosas diversas.
Nesse sentido, a atuação do Estado em relação aos homicídios de crianças indígenas não deve ser no caráter de impor uma proibição ao ato, de punição os praticantes, nem mesmo de tentar inserir uma ideologia diferente para os nativos, mas oferecer proteção àqueles índios que não concordam com a prática e, por isso, não querem tirar a vida de seus descendentes. Portanto, se o que se deseja é a abolição do costume, é necessário que o movimento para isso venha dos próprios membros dessas etnias, pois só assim uma intervenção estatal para proibir essa ação será legítima.
2.INFANTICÍDIO
2.1 ASPECTOS GERAIS
A palavra infanticídio vem do latim infans (criança) e caedere (matar), como “dar morte a uma criança”. Previsto no artigo 123 do Código Penal, a mãe tira a vida do filho sob a influência do “estado puerperal” durante ou logo após o parto, tendo como pena de detenção de dois a seis anos. O Código delimitou o período do puerpério, sendo assim necessária para a consumação do crime de infanticídio que a morte ocorra durante o parto ou logo após. O estado puerperal seria uma alteração e transtorno mental, advindos de dores físicas do parto, capazes de alterar temporariamente o psiquismo da mulher previamente sã, levando-a a agir instintiva e violentamente contra o próprio filho durante o seu nascimento ou logo após o parto. O objeto jurídico do crime é o direito à vida tanto do neonato como o do nascente, que são os sujeitos passivos. O neonato é o que acabou de nascer, e o nascente o que é morto durante o parto. É um crime próprio, pois só pode ser cometido pela mãe, exigindo assim uma qualidade especial do sujeito ativo, porém, não há impedimento de que um terceiro responda por infanticídio diante do concurso de agentes. De acordo com a Exposição de Motivos do Código Penal:
“O infanticídio é considerado um delectumexceptum quando praticado pela parturiente sob a influência do estado puerperal. No entanto, esta cláusula, como é evidente não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica, é necessário que fique averiguado ter esta realmente sobrevindo em consequência daquele, de maneira a diminuir a capacidade de entendimento ou de autodeterminação da parturiente’’
2.2 A PRATICA DO INFANTICÍDIO NAS TRIBOS BRASILEIRAS
A prática do infanticídio nas tribos brasileiras, objeto deste estudo, é uma tradição milenar, razão pela qual se faz necessária a investigação de seus motivos e costumes. O termo “Infanticídio Indígena” é somente uma terminologia para dar nome aos costumes de algumas tribos. A jurisprudência e a doutrina tratam o infanticídio como um crime a ser cometido durante ou logo após o parto, o que muitas vezes não acontece nessas situações, já que há registros de crianças de 3, 4, 11 e até 15 anos, que são mortas pelas mais diversas causas. Ressalta-se que há dificuldade em fazer um estudo estatístico específico sobre o número de crianças indígenas que são vítimas dessa prática a cada ano. Muitas das mortes por infanticídio vêm mascaradas nos dados oficiais como morte por desnutrição ou por outras causas misteriosas, desse modo, muito do que se sabe sobre o assunto são relatos de missionários, ONGs e estudos antropológicos.
Primitivamente, o infanticídio não se constituía como crime, como expõe Vicente de Paula Rodrigues Maggio:
“Verifica-se que entre os povos primitivos da humanidade, a morte dos filhos e das crianças não constituía crime, nem atentava contra a moral ou os costumes, pois, as mais antigas legislações penais conhecidas, não fazem qualquer referência a esse tipo de crime, concluindo ser, então, permitida a conduta hoje delituosa.”
2.3 PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS
Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU – Organizações das Nações Unidasfoi proclamada em 1948 cujo projeto foi elaborado por John Peters Humphrey, do Canadá juntamente com outros países (Estados Unidos, França, Líbano e China), delineando os direitos humanos básicos. Foi o primeiro instrumento jurídico relativo aos direitos humanos, é direcionada pelo princípio fundamental de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, acima de qualquer particularidade. Apesar de não ter uma obrigatoriedade legal, consiste em princípio geral do Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como é base para outros tratados, de direitos humanos e normativos constitucionais.
Os direitos humanos não são concedidos ao homem, pois este já nasce comtais direitos, eles são reconhecidos na medida em que vêm da própria dignidade humana. Os direitos humanos e os direitos fundamentais são aqueles que nascem da própria condição humana e que são ou estão previstos na ordem jurídica internacional e no ordenamento constitucional, respectivamente. O rol dos direitos, além de conferir as garantias fundamentais à pessoa humana, define o rumo das organizações sociopolíticas a partir de então, visto que os direitos humanos, além de servirem aos indivíduos, também fundamentam o chamado Estado de Direito, que preponderam os valores de liberdade e democracia.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é expressa, tanto em seu preâmbulo quanto na parte dispositiva, que a dignidade da pessoa humana é a premissa básica para o desenvolvimento da sociedade, visto que sem o respeito a valores básicos da pessoa humana, o Estado torna-se totalitário, restringindo as liberdades e garantias individuais. Desse modo, um ato lesivo aos direitos humanos é de tal gravidade que atinge todas as esferas da sociedade, seja política, social ou econômica. Conforme o artigo III da Declaração citada, a totalidade da espécie humana, sem distinção de raça, etnia, cor, sexo, sociedade e contexto cultural. Essa é a essência básica da tutela internacional dos direitos humanos, que confere aos direitos humanos universalidade e indivisibilidade. Ainda que a amplitude dos direitos da pessoa humana seja evidente, os artigos XVIII e XXVII dispõem que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, assim como a liberdade de manifestar essa religião ou crença, tendo o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade. Os artigos abaixo descritos conferem direitos humanos indisponíveis aos indivíduos, como qualquer outro direito.
Artigo XVIII
´´Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.”
[...]
Artigo XXVII
´´Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.”
2.4 DECLARACAO DAS NACOES UNIDAS SOBRE O DIREITO DOS POVOS INDIGENAS
Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos Povos Indígenas aborda tanto os direitos individuais e coletivos como direitos culturais, de identidadee outros. Afirma que os silvícolas tem o direito de não serem forçosamente assimilados ou destituídos de sua cultura. No artigo 34 deste instrumento, está assegurado que os indígenas tenham o direito de manterem e desenvolverem seus próprios costumes, espiritualidade, tradições, práticas, e ainda quando existam, seus costumes e sistemas de leis, desde que respeitem e estejam em conformidade com as normas internacionais de direitos humanos. É de suma importância o que está elencado nos artigos 18 e 19 desta declaração, que enfatiza o direito de participação desses povos na tomada de decisões sobre questões que afetem seus direitos, por meio de representantes por eles eleitos de acordo com seus próprios procedimentos e o dever do Estado em cooperar de boa-fé com os interessados, a fim de obter o consentimento prévio dos indígenas para adotarem e aplicarem medidas legislativas e administrativas que os afetem. Com isso, a Declaração condena a discriminação contra os silvícolas, promovendo sua efetiva e plena participação em todos os assuntos relacionados a eles, assim como o direito de manter sua identidade cultural e tomar suas próprias decisões nos assuntos que lhes são pertinentes.
O posicionamento brasileiro foi favorável, declarando que este instrumento internacional era uma reafirmação do compromisso da comunidade internacional com os direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos indígenas, ressaltando que o exercício desses direitos é consistente com a soberania e integridade territorial dos Estados em que residem. Dentre os dispositivos da presente declaração, cumpre ressaltar:
Artigo 1
´´Os indígenas têm direito, como povos ou como pessoas, ao desfrute pleno de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, pela Declaração Universal de Direitos Humanos e o direito internacional relativo aos direitos humanos.”
Artigo 2
´´Os povos e as pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e pessoas e têm o direito a não ser objeto de nenhuma discriminação no exercício de seus direitos fundado, em particular, em sua origem ou identidade indígena.
Apesar de ser um instrumento de direitos humano´´
3.DIREITO Á VIDA
O direito à vida é o principal direito garantido a todas as pessoas, sem nenhuma distinção, sendo este o mais importante, já que sem ele os demais ficariam sem fundamento.
Na conceituação de Moraes:
“o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais”.
Desde o início dos tempos o homem vem refletindo os aspectos vinculados sobre a existência da sua pessoa no que se refere a vida em sociedade individual, tais aspectos evoluíram e inovaram com o passar dos tempos, sempre se sujeitando a mudanças estabelecidas por diversas gerações e diferentes povos e culturas.
O termo vida possui inúmeros significados, podendo dizer também que é tudo aquilo que ocorre entre a concepção e a morte, sendo muitos os direitos que por ela nos garantem, estando expresso nas leis, princípios e doutrinas.
Dallari (1998) assevera que o direito à vida é:
“o direito primeiro; primeiro não só em seu sentido cronológico, mas, sobretudo em seu sentido axiológico”. É cediço que, ao passo que se compreende tal afirmativa, visualiza-se também a universalidade deste valor, sobretudo pela complexidade e dinamismo apresentado pela vida.
No mesmo sentido, Masson (2016) também entende que a vida humana se apresenta como o bem jurídico mais importante dentre os direitos constitucionalmente tutelados e, por conseguinte, deve ser assegurada a fim de possibilitar o acesso aos demais direitos.
O direito à vida é o principal direito garantido a todas as pessoas, sem nenhuma distinção.
Segundo Alexandre de Moraes:
“O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais.”
3.1 RELATIVISMO CULTURAL E UNIVERSALISMO
O relativismo cultural é uma teoria que apresenta a necessidade de entender a variedade cultural e a respeitá-la, devendo-se considerar que em cada cultura há uma singularidade e especificidade. Por tal concepção, cada traço cultural pode ser compreendido, haja vista que as diferenças devem ser estudadas conforme as regras e orientações daquele determinado grupo social.
Nesse sentido, a ideia é que os aspectos culturais dos diferentes povos devem ser analisados pelo olhar do sujeito inserido naquele contexto, de forma a desconstituir do observador qualquer bagagem preconceituosa ou carregada de valores que não fazem parte, não são aplicáveis ou são desconhecidos por aqueles a quem se observa.
Por conseguinte, para o relativismo cultural não há verdades universais, visto que não há padrões para se pesar o comportamento humano e compará-lo a outro.
De acordo com Ronaldo Lidorio:
“O relativismo cultural, inicialmente desenvolvido por Franz Boas e com base no historicismo de Herder, defende que bem e mal são elementos definidos em cada cultura. E que não há verdades culturais visto que não há padrões para se pesar o comportamento humano e compará-lo a outro. Cada cultura, pesa a si mesma e julga a si mesma.´´
A tese do Universalismo Cultural consiste na defesa de que todo ser humano possui um valor intrínseco, corolário justamente de sua condição de pessoa humana, que é inalienável e de aplicação universal.
Dentre as críticas apontadas pelos relativistas à proposta universalista dos direitos humanos está no fato de que essa visão universal dos direitos humanos é fundamentada em uma ideia antropocêntrica do mundo, que não é compartilhada por todas as culturas.
A tese da universalidade dos direitos humanos foi adotada pela ONU através da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, sendo posteriormente reafirmada através da Declaração de Viena, de 1993.
“A importância da busca de um valor ou crença comum que possa ser fonte de um eventual conceito de direitos humanos repousa em uma verdade simples: a própria idéia de direitos humanos significa nada se não significar direitos humanos universais. O objetivo das normas internacionais de direitos humanos é estabelecer padrões que desconsiderem a soberania nacional para proteger indivíduos de abuso. Ter direitos humanos significa dizer que existem certos padrões sob os quais o Estado ou sociedade alguma pode ir, independente de seus próprios valores culturais.”
Portanto, as teorias universalistas e relativistas surgem como teorias polarizantes, e os debates e as críticas apontadas entre ambas parecem estar longe de um denominador comum.
Segundo Patrícia Jerônimo:
“Aos olhos universalistas, o relativismo cultural mais não é do que um exercício frívolo e intelectualmente irresponsável. Um exercício falacioso, porque toma como validade das práticas próprias das diferentes culturas como um dado, colocando o “ser” antes do “dever ser.”
No que diz respeito à diversidade cultural, Bonavides (1999) assevera que:
“Este direito se estabelece como sendo uma garantia concedida a determinados grupos culturalmente diferenciados de que suas tradições, crenças, e costumes possam ser preservados e protegidos frente a movimentos de interculturalidade, de modo que ninguém pode ser coagido a deixar suas próprias tradições ou até mesmo a assentir aos costumes de outrem.”
O Brasil é um país que reconhece variadas manifestações culturais existentes e confere autonomia aos grupos sociais. Em seu artigo 3º, inciso IV,dispõe que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Para dar ênfase a essa disposição constitucional o artigo 5º, incluído no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais dispõe que:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade[...].”
Na Constituição Federal de 1988, consagrou-se aos indígenas um capítulo inteiro, o Capítulo VIII, que dispõe sobre seus direitos. É o caput do art 231.:
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
O direito indígena foi uma das grandes inovações da Constituição de 1988, entretanto, o novo dispositivo é utilizado como um escudo para forjar a responsabilidade estatal no tocante ao tema do infanticídio indígena. Outro aspecto constitucional relevante, e da mesma forma utilizado para mascarar responsabilidades, é a proteção à manifestação cultural indígena constante no art.215 que estabelece:
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”
Pela teoria relativista, o infanticídio indígena pode ser cabalmente justificado, haja vista que a negação à prática não estaria representando uma tentativa de salvaguarda das crianças, mas um ato de preconceito aos costumes indígenas, considerando-se que no olhar daquele povo o homicídio de crianças em determinadas situações é admitida pelas crenças e ordenanças locais. Diferentemente, a teoria universalista se apresenta em sentido abnegatório à singularização dos povos, sendo que estabelece a necessidade de proteção e universalização das garantias de reconhecimento da dignidade humana considerando-se apenas a condição de humano da pessoa, independentemente de seu lastro cultural.
3.2 PONDERANDO PRINCÍPIOS
Embora não haja hierarquia entre os princípios constitucionais, há patente colisão entre dois deles, o direito à vida e o direito à proteção cultural. Por este motivo é imprescindível realizar a análise de relevância através da ponderação dos princípios, de forma a verificar o que mais se adequa ao caso do infanticídio indígena.
Nesse sentido, Dworkin (1985) apud Bonavides (2015), diz que:
´´ somente os princípios possuem dimensão de peso, importância ou valor. Nesse seguimento, quando em determinado caso, constatar-se um conflito, considerando que a hierarquia dos princípios é a sua relevância, um deles deverá ser escolhido por mais se adequar ao caso concreto.´´
Pela teoria de Robert Alexy (1993):
´´Em toda e qualquer ponderação deve-se, antes, identificar os princípios em conflito e apresentar o maior número de elementos para subsidiar o sopesamento e, em seguida, atribuir peso a esses princípios os quais se coloca em xeque, para, finalmente, decidir a prevalência de um em relação ao outro.´´
Já no entendimento de Sarmento (2002) Caldas (2011):
´´No momento do conflito, o que deve ser verificado é o peso genérico de cada princípio em embate, sendo que, logo em seguida, cabe ao intérprete do direito observar seu peso específico. Isto é, em um momento imediato, analisa-se a relevância geral daquele princípio. Após tal definição, o que deve ser verificado é seu destaque naquela relação.”
Conforme já demonstrado, tanto o direito à vida quanto a proteção à cultura são princípios constitucionais e inerentes a todo e qualquer sujeito. Destarte, é possível submetê-los à análise de relevância em relação ao infanticídio indígena.
Já foi relatado sobre a inviolabilidade e as demais características do direito à vida, nesse sentido, quanto ao peso genérico deste princípio, é possível mensurá-lo como sendo algo universal e que deve ser buscado e protegido por todas as formas disponíveis. Em relação à cultura, por sua vez, têm-se como um princípio abrangente, cuja dimensão resulta na impossibilidade de consideração do sujeito sem os aspectos e características adquiridas no seu meio cultural.
Ressalta-se que, embora moralmente aceito dentro do contexto de algumas etnias, deve ser realizada uma reflexão ética acerca do infanticídio indígena, haja vista que recai sobre a cultura indígena a igualdade posta como fundamental na Constituição Brasileira, de forma que, assim como o tratamento preconceituoso em face destes indivíduos é inaceitável, a ordenança de respeito à vida que opera em toda a sociedade, também deve ser buscada pelos autóctones.
Ora, a dignidade da pessoa humana que fundamenta o estado brasileiro deve ser analisada com base em todas as possibilidades que permeiam o assunto. O ato de preferir o direito à vida, não retira do sujeito as características que lhe foram inseridas por meio de sua cultura, nesse aspecto, a utilização de ferramentas para a proteção do nascituro indígena, cujos atributos não são aceitos em dada etnia, não fere a dignidade dos povos adeptos ao infanticídio.
Esclarece-se que ambos princípios apresentam relevância, principalmente por serem fruto do constituinte originário. Outrossim, não está a negar a capacidade de autodeterminação do indígena, lado outro, reconhece-se seu direito de decidir qual caminho trilhar na própria vida. Todavia, quando este direito influencia na existência de outrem, medidas devem ser adotadas por parte do Estado.
É nessas considerações que se encontra o amparo para tratar o direito à vida em prevalência à proteção cultural. Especificamente no âmbito do infanticídio indígena, os argumentos favoráveis à mantença da vida das crianças indígenas se enaltecem perante a necessidade de garantia de continuidade da cultura infanticida. Isto porque, a noção de dignidade da pessoa humana se mostra mais apropriada quando busca o fortalecimento de direitos essenciais à vigência de outros, como é o caso do direito à vida.
Ademais, a defesa de padrões culturais que desestimulem a evolução dos direitos básicos do indivíduo não é plausível, principalmente se considerar que em muitos casos de infanticídio ocorre a prevalência da vontade da tribo em eliminar a criança em face do desejo da mãe de cuidá-la.
Portanto, no embate entre o direito à vida e a proteção à cultura, no contexto do infanticídio indígena, mostra-se plausível sobrelevar o valor e relevância do primeiro direito em face do segundo.
4.Conclusão
O tema do infanticídio indígena apresenta relevância no momento em que podemos analisar dois princípios constitucionais, o direito à vida e o direito de proteção à cultura. Sem dúvidas, a cultura é essencial à formação do humano, pois com ela o indivíduo orienta-se na vivência e observação do mundo.
Porém, ficou demonstrado que os direitos culturais não devem ser tratados de forma ilimitada, em consideração a outros direitos básicos do ser humano, dentre os tais, o direito à vida. As limitações para o exercício da cultura aparecem quando são colocados em debate princípios como a dignidade da pessoa humana e a igualdade, visto que a diversidade cultural também deve estar pautada no respeito à vida humana.
É preciso analisar o problema do infanticídio indígena considerando as condições nas quais as tribos nativas estão submetidas. Grande parte dos povos isolados sequer têm acesso a saúde básica ou assistência social, de forma que a sua interação em sociedade fica prejudicada. Nesse sentido, não basta simplesmente instituir medidas punitivas aos adeptos do infanticídio, mas estabelecer meios para que as crianças potenciais vítimas do infanticídio tenham o mínimo de dignidade.
Mudanças de atitude e pensamento certamente podem ocorrer, mas não de uma hora para outra, principalmente tratando-se de uma cultura antiga e com costumes já enraizados. O que deve ser promovido, em relação aos povos indígenas, é a implementação de medidas estruturais a fim garantir o acesso dos povos à saúde e educação. Além disso, deve-se introduzir, através do diálogo, a visão de que o infanticídio não é mais uma prática necessária e essencial à continuidade de sua cultura. Por fim, em último ensejo, após o insucesso das tentativas de aceitação por parte dos genitores, que as crianças desprezadas possam ser resgatadas pelo Estado e postas sob os cuidados de famílias substitutas.
5.REFERÊNCIAS
Disponível em<https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/235/5142/1/RA20553722.pdf>. Acesso em: 02 de junho de 2021.
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium Editora, 2004.
MORAES, Alexandre. Direitos humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997.
LIDÓRIO, Ronaldo. Não há morte sem dor: uma visão antropológica sobre o infanticídio indígena no Brasil. Revista Antropos, 2007.
BOAS, Márcia Cristina Altvater Vilas. ALVES, Fernando de Brito. Direito à cultura e o direito à vida: visão crítica sobre a prática do infanticídio em tribos indígenas. Artigo publicado no XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Fortaleza.
Declaração universal sobre a diversidade cultural. Disponível em <http://direitoshumanos.gddc.pt/3_20/IIIPAG3_20_3.htm>. Acesso em: 10 de junho de 2021.
Declaração universal dos direitos humanos. Disponível em <http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm>. Acesso em: 10 de junho de 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 10 de junho de 2021.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Bioética e direitos humanos. In: COSTA, Sérgio Ibiapina Ferreira; GARRAFA, Volnei; OSELKA, Gabriel. Iniciação à bioética. Brasília: CFM, 1998.
DERZIÉ, Renata Carvalho. Direitos humanos, o confronto entre o universalismo e o relativismo cultura. Âmbito Júridico, 2017. Disponível em <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/direitos-humanos-o-confronto-entre-o-universalismo-e-o-relativismo-cultural/>
Prova EsPCEx 2020 (1° Dia). Indagação, 2021. Disponível em <https://www.indagacao.com.br/2021/10/o-infanticidio-indigena-e-uma-pratica-cultura-ainda-corrente-entre-alguns-povos-nativos.html>
Artigo publicado em 19/11/2021 e republicado em 29/03/2024
Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Fametro – CEUNI FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Amanda Medeiros. Infanticídio indígena: entre o direito à vida e o direito a cultura Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 mar 2024, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57505/infanticdio-indgena-entre-o-direito-vida-e-o-direito-a-cultura. Acesso em: 24 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.