Resumo: A presente pesquisa trata do sistema de nulidades no processo penal, temática importante para a preservação das garantias processuais. Ainda é muito controverso quais os critérios configuradores das nulidades, ensejando discussão sobre a constitucionalidade da exigência da demonstração do prejuízo para o reconhecimento da nulidade. O método empregado é a revisão bibliográfica, acompanhado do estudo da legislação e da jurisprudência, com a análise dos elementos mais pertinentes ao tema proposto. O principal resultado da pesquisa é a crítica quanto a incompatibilidade da regra do prejuízo com o sistema acusatório. Desse modo, torna-se viável apontar alternativas para a readequação da atual teoria das nulidades ao que é determinado pela Constituição Federal.
Palavra-chave: Regra da demonstração do prejuízo. Nulidade processual. Processo Penal. Ne Pas de Nullité Sans Grief. Forma processual.
Abstract: This research deals with the nullity system in criminal proceedings, an important issue for the preservation of procedural guarantees. It is still very controversial what are the configuring criteria for nullities, giving rise to a discussion about the constitutionality of the requirement to demonstrate loss for the recognition of nullity. The method employed is the bibliographic review, accompanied by the study of legislation and jurisprudence, with the analysis of the most relevant elements to the proposed theme. The main result of the research is criticism regarding the incompatibility of the prejudice rule with the accusatory system. Thus, it becomes feasible to point out alternatives for readjusting the current theory of nullities to what is determined by the Federal Constitution.
Keywords: Loss statement rule. Procedural nullity. Criminal proceedings. Ne Pas de Nulitté Sans Grief. Procedural form.
Sumário: Introdução. 1. Análise normativa da regra da demonstração do prejuízo. 2. A origem totalitária e privatista da regra do prejuízo. 3. Crítica à nulidade relativa e a necessidade de demonstração do prejuízo encontrada no CPP brasileiro. 4. A demonstração do prejuízo na jurisprudência brasileira. 5. O sistema de nulidades adequado à Constituição da República. Conclusão. Referências.
Introdução:
A presente pesquisa terá como tema o estudo da regra que exige a demonstração do prejuízo para o reconhecimento das nulidades no processo penal e sua adequação ao sistema acusatório. Discussão relevante em virtude do papel exercido pela regra do prejuízo como critério definidor para a incidência ou não dos efeitos da teoria das nulidades.
Responsável por limitar o poder punitivo estatal, a forma processual é entendida como garantia do acusado — parte hipossuficiente no processo penal — o que faz do sistema de nulidades e, consequentemente, a análise crítica da exigência da demonstração do prejuízo, essencial para a averiguação do atendimento à finalidade de limitação do poder e garantia do réu num dado ordenamento jurídico.
A definição do que seja prejuízo suficiente para que reste configurada uma nulidade, ou mesmo, o que pode ser considerado prejuízo é objeto impreciso na jurisprudência, na legislação e na doutrina nacional. Ainda é preciso averiguar a compatibilidade do referido conceito com um processo penal humanitário de democrático, como instituído pela Constituição Federal de 1988.
O problema é objeto de estudo de doutrinadores como Ricardo Jacobsen Gloeckner e Aury Lopes Jr., que apontam inadequações com o sistema acusatório; e Jorge Coutinho Paschoal, que na sua pesquisa se debruçou sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no enfrentamento da questão do prejuízo.
A presente pesquisa tem o objetivo de analisar criticamente a necessidade de demonstrar prejuízo para a incidência da nulidade no processo penal e sua compatibilidade com as garantias constitucionais inerentes ao sistema acusatório.
1 Análise normativa da regra da demonstração do prejuízo
O CPP brasileiro adotou o sistema de nulidades do Ne Pas de Nullité Sans Grief que exige para os vícios processuais à existência de prejuízo a fim de que seja declarada a nulidade. A regra do prejuízo está prevista no art. 563 do CPP: “Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.”
Numa primeira leitura, pode-se concluir que a regra do prejuízo incide tanto nas nulidades relativas quanto nas nulidades absolutas já que o artigo supracitado não faz distinção. Porém, de acordo com a doutrina majoritária, a necessidade de demonstrá-lo é restrito apenas as nulidades relativas. No código de processo penal elas estão previstas no rol do art. 572, caput.
Essas nulidades se identificam pela possibilidade de saneamento. O mesmo dispositivo traz as três possibilidades de saneamento, elencadas nos seus incisos, I, II e III; são elas, respectivamente: A) Preclusão, se não forem arguidas, em tempo oportuno; B) Instrumentalidade das formas, se, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim; C) Ratificação, se a parte, ainda que tacitamente, tiver aceitado os seus efeitos. (Brasil, 1941).
Apesar de indiscutível que o art. 563 estabeleça o princípio do Ne Pas de Nullité Sans Grief como requisito para o reconhecimento da nulidade e saber de quais vícios são exigidos, ainda não é suficientemente claro o modo como esse prejuízo deve ser demonstrado. Para isso, se faz necessário a leitura conjunta do art. 566, do CPP: “Não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.”.
Do exposto, percebe-se que, para o processo penal brasileiro, o prejuízo está ligado ao conceito de verdade real. Isso acontece por meio de uma relação em que o fim maior — a verdade substancial — justifica a inobservância do que é determinado pelo código processual. O papel exercido pela regra do prejuízo é o de estabelecer um critério que permita ignorar os vícios processuais, assim, o alcance da verdade real tem maior valor que a própria força normativa do código de processo penal.
Dessa forma, como expõe Zaclis (2015) “Em tese, um vício — por maior o seu desvio em relação ao modelo legal — que, sob a visão do juiz, não houver influído na verdade dos fatos poderá ser considerado como irrelevante.”.
Fora das hipóteses elencadas pelo rol do art. 572, caput — a maioria das hipóteses previstas no art. 564, III, do CPP; a nulidade prevista na CRFB/88 da ausência de fundamentação das decisões (artigo 93, IX) e incluída recentemente no Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964, de 2019 no inciso V, do art. 564; as demais nulidades previstas no código; as existentes na legislação extravagante e os vícios relacionados à prova — são nulidades de ordem absoluta. (PASCHOAL, 2017). Portanto, prescindem de demonstrar o prejuízo e são indiferentes ao alcance ou não da finalidade do ato, não se submetendo a nenhuma causa saneadora. (Brasil, 1941).
Passa-se, adiante, à análise dos demais artigos relacionados a regra do prejuízo. Primeiramente, no art. 565, CPP; está positivado o princípio do interesse: “Nenhuma das partes poderá argüir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só à parte contrária interesse.”. O dispositivo impede que alguém possa se beneficiar, no processo penal, de sua própria torpeza. O intuito é evitar que a parte possa se valer de artimanhas processuais e alegá-las posteriormente a fim de ver o processo anulado. (GLOECKNER, 2017).
Tal princípio é decorrência direta da característica de interesse meramente privado das nulidades relativas, entendidas como vícios disponíveis pela parte interessada por inexistir uma preocupação pública em protegê-los, por isso entende a doutrina ser o princípio aplicável somente a elas, não incidindo sobre os vícios de ordem absoluta. É a mesma lógica que rege a aplicação da regra do prejuízo.
Quanto ao art. 566, do código processual, além de trazer o conceito de verdade real, como já explicado acima, a doutrina tradicional o considera como a origem normativa do princípio da instrumentalidade das formas — o que explica a confusão doutrinária a respeito dos conceitos do prejuízo e da instrumentalidade das formas, inclusive, tratadas como sinônimos por muitos doutrinadores. (GLOECKNER, 2017). O citado princípio pode ser traduzido como uma espécie de segunda chance, onde, mesmo que o ato não tenha sido praticado na forma devida, caso haja alcançado sua finalidade, ele será aproveitado.
Para encerrar a análise normativa da Teoria das Nulidades no código processual brasileiro é preciso retomar ao art. 564, mais precisamente aos incisos I — da nulidade por incompetência, suspeição ou suborno do juiz; e II — da nulidade por ilegitimidade de parte. Tais dispositivos estabelecem condições sob as quais todos os atos do processo penal devem se submeter, mesmo que não sejam vícios elencados no inciso III, do art. 564, do CPP; sequer precisam estar sujeitos ao regime das nulidades. Ou seja, caso não cumprida as condições dos citados incisos I e II, reconhece-se a nulidade de qualquer ato, independente da demonstração de prejuízo. (PASCHOAL, 2017).
Como observado por Paschoal (2017), da leitura do Título dedicado as nulidades no CPP, pode-se concluir que apenas vícios de forma — error in procedendo — são hipóteses passíveis de nulidade. Entretanto, a leitura deve ser mais ampla, alcançando vícios relacionados ao conteúdo da decisão — error in judicando —, como disciplinado em diversas hipóteses pelo código de processo penal.
O melhor exemplo se encontra na Constituição em seu art. 93, inciso IX, que exige a fundamentação das decisões judiciais sob pena de nulidade. Dessa forma, as nulidades cuidam também da qualidade do conteúdo desses atos, o que está de acordo com um conceito de processo penal democrático, preocupado com o maior acerto de suas decisões.
Agora, a fim de completar a análise normativa da teoria das nulidades, é chegada a hora de estudar as raízes históricas da regra da demonstração do prejuízo.
2 A origem totalitária e privatista da regra do prejuízo
Neste capítulo a preocupação é desvelar que a incompatibilidade da exigência de demonstração do prejuízo com um processo penal racional e democrático remete desde sua origem histórica, qual seja, instrumento de política criminal antidemocrática e ferramenta própria da lógica do direito privado.
A partir da leitura da exposição de motivos do Código de Processo Penal, redigida por Francisco Campos, Ministro da Justiça durante o período do Estado Novo, é possível visualizar o papel da regra do prejuízo na ordem jurídica brasileira com maior clareza.
O legislador de 1941 ao redigir o código tinha como objetivo reduzir ao menor número possível as hipóteses de reconhecimento das nulidades, a forma processual era vista como um mal que atrapalhava a realização da justiça, a sua redução serviria para reduzir a “malandragem” utilizada para escapar da verdade no processo. Inclusive, a limitação das nulidades era colocada como uma forma de alcançar uma desejada restrição da aplicação do in dubio pro reo, in verbis:
“No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal‑avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios norma‑ tivos com que, sob o influxo de um mal‑compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal. As nulidades processuais, reduzidas ao mínimo, deixam de ser o que têm sido até agora, isto é, um meandro técnico por onde se escoa a substância do processo e se perdem o tempo e a gravidade da justiça. É coibido o êxito das fraudes, subterfúgios e alicantinas. É restringida a aplicação do in dubio pro reo. (Brasil, 1941).”
É evidente a influência intelectual exercida pelo idealizador do ordenamento jurídico da Itália Fascista, o jurista Alfredo Rocco, inclusive citado na exposição de motivos: “um bom direito processual penal deve limitar as sanções de nulidade àquele estrito mínimo que não pode ser abstraído sem lesar legítimos e graves interesses do Estado e dos cidadãos”.
É para cumprir com esse objetivo que foi instituída a regra do prejuízo no processo penal brasileiro, ou seja, com o fim de reduzir o reconhecimento das nulidades. É o que está expresso na própria exposição de motivos do Código de Processo Penal na parte referente as nulidades:
“O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa. Não será declarada a nulidade de nenhum ato processual, quando este não haja influído concretamente na decisão da causa ou na apuração da verdade substancial. Somente em casos excepcionais é declarada insanável a nulidade. Fora desses casos, ninguém pode invocar direito à irredutível subsistência da nulidade. (Brasil, 1941).”
O Código Rocco tinha como meta obter a máxima celeridade nos procedimentos, nos termos usados por seus legisladores, “desflorestar a selva de nulidades” ao eliminar todas as “superfluidades”, leia-se aqui as formas processuais. O código fascista chegou até a abolir a diferença entre nulidades absolutas e relativas, onde todas eram passíveis de serem sanadas por expressa previsão legal trazida em seu art. 184. Apesar do nosso CPP não trazer esse mesmo dispositivo normativo, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem aceitado a possibilidade de sanatória até das nulidades absolutas, como será apresentado posteriormente. (GLOECKNER, 2017).
No entanto, mesmo que não tenha extinguido expressamente as nulidades absolutas, entendemos que a regra do prejuízo (art. 563, do CPP) e a verdade real (art. 566, do CPP), cumprem fielmente com a tarefa de dificultar e minimizar a declaração dos vícios processuais, como idealizado pelos legisladores do Código Rocco. (ZACLIS, 2015).
As semelhanças do nosso código processual de 1941 com o código Ítalo-Fascista de 1930 não param por aí. Avesso as nulidades absolutas e, via de consequência, mais propenso a tratar os vícios como nulidades relativas, visto a dificuldade em seu reconhecimento, o princípio do interesse (art. 565, do CPP brasileiro) encontra semelhante no art. 187 do Código de Processo Penal italiano de 1930, na parte final: “o Ministério Público e as outras partes não podem arguir as nulidades as quais deram ou concorreram para lhe dar causa ou relativas a disposições cuja observância não tem interesse”. (GLOECKNER, 2017).
Igualmente, o princípio da instrumentalidade das formas (art. 566, do CPP brasileiro) encontra no mesmo art. 187 do citado código fascista sua inspiração: “a nulidade de um ato é sanada se não obstante a irregularidade o ato atingiu o seu escopo em relação a todos os interessados. A nulidade também é sanada se o interessado tacitamente aceitou os efeitos do ato”. (GLOECKNER, 2017).
A exposição de motivos de autoria de Francisco Campos revela o escopo dos princípios em comento.
“Sempre que o juiz deparar com uma causa de nulidade, deve prover imediatamente à sua eliminação, renovando ou retificando o ato irregular, se possível; mas, ainda que o não faça, a nulidade considera‑se sanada: a) pelo silêncio das partes; b) pela efetiva consecução do escopo visado pelo ato não obstante sua irregularidade; c) pela aceitação, ainda que tácita, dos efeitos do ato irregular. Se a parte interessada não argui a irregularidade ou com esta implicitamente se conforma, aceitando‑lhe os efeitos, nada mais natural que se entenda haver renunciado ao direito de argui‑la. Se toda formalidade processual visa um determinado fim, e este fim é alcançado, apesar de sua irregularidade, evidentemente carece esta de importância. Decidir de outro modo será incidir no despropósito de considerar‑se a formalidade um fim em si mesma. É igualmente firmado o princípio de que não pode arguir a nulidade quem lhe tenha dado causa ou não tenha interesse na sua declaração. Não se compreende que alguém provoque a irregularidade e seja admitido em seguida, a especular com ela; nem tampouco que, no silêncio da parte prejudicada, se permita à outra parte investir‑se no direito de pleitear a nulidade. (Brasil, 1941).”
Apesar de parcela da doutrina, a exemplo do Paschoal (2017), entender que o Código de Processo Penal brasileiro criou um modelo de nulidades que potencializou a força normativa do reconhecimento das nulidades, e que as raízes históricas do instituto não são definitivas para estabelecer o seu caráter antidemocrático, colocando o comportamento da jurisprudência como maior responsável para esses fins, o presente estudo se posiciona no sentido contrário.
Para corroborar esse entendimento se faz imprescindível trazer à baila comentários do próprio Alfredo Rocco no qual reconhece a discricionariedade como inerente ao prejuízo e, por isso mesmo, importante artifício para se alcançar os objetivos de um Estado totalitário: “é, porém, de se observar que este dever de se fundar sempre e necessariamente em uma valoração discricionária, a qual é a de estabelecer se ocorre ou não o indicado prejuízo.” (GLOECKNER, 2017).
Com dispositivos normativos semelhantes e com Alfredo Rocco como referência intelectual, o viés fascista da regra do prejuízo ultrapassa o debate meramente histórico visto seus efeitos inquisitórios perdurarem ainda hoje, manifestados na arbitrariedade do instituto.
E tal característica não é mera coincidência, a dependência do prejuízo e dano para se decretar a nulidade de um ato processual foi introduzida na Itália pela corrente adepta do pensamento criminológico alicerçado na escola da defesa social, que concebia a finalidade do processo penal como meio para o tratamento de degenerados, patológicos, anormais e perigosos. Por isso, recorreram a uma alternativa com o claro intuito de evitar o reconhecimento das nulidades e maximizar a punição dos, então considerados à época, inimigos sociais. (GLOECKNER, 2017).
Outro fato histórico elucidativo sobre a problemática adequação da regra do prejuízo no processo penal é a sua origem proveniente do direito privado, mais especificamente nas Ordenanças Civis de 1667 posteriormente incorporada pelo Código Processual Napoleônico. A diferença da lógica do direito civil e seus bens tutelados e a lógica que rege o processo penal e a tutela da liberdade faz dos respectivos processos inconciliáveis o que, via de consequência, impossibilita a adoção de uma teoria unitária das nulidades. (GLOECKNER, 2017).
O adagio do “Ne Pas de Nulitté Sans Grief” foi concebido dentro do período napoleônico na perspectiva da natureza do processo como quase contrato, onde a nulidade era vista como um mal devido ao seu caráter antieconômico e sem a menor importância caso não levantada pelo próprio interessado ou provado seu real prejuízo, o objetivo era não atrapalhar a consecução dos interesses em jogo na lide.
Perante o sistema acusatório que tem a presunção de inocência como princípio e a necessidade de realização do processo para que se aplique a pena legitimamente, a distribuição da carga probatória para o réu para demonstrar o prejuízo e a consequente transformação do processo penal em acessório do direito material é inadequado. (GLOECKNER, 2017).
Conforme as lições de Lopes Jr. (2020), o prejuízo — equivocadamente transferido do direito civil para o âmbito penal — importa na relativização das nulidades e consequentemente permite o atropelo das garantias fundamentais.
“O primeiro problema surge, novamente, na equivocada transmissão de categorias do processo civil para o processo penal. O fenômeno da relativização das nulidades (absolutas) do processo civil está sendo utilizado (e manipulado) para, no processo penal, negar-se eficácia ao sistema constitucional de garantias. Ainda que não concordemos com a classificação dos atos defeituosos em nulidades absolutas e relativas, importa destacar que a relativização implica negação de eficácia aos princípios constitucionais do processo penal. A título de ausência de prejuízo ou atingimento do fim, os tribunais brasileiros, diariamente, atropelam direitos e garantias fundamentais com uma postura utilitarista e que esconde, no fundo, uma manipulação discursiva. (LOPES JR., 2020, p. 1476).”
A fim de ilustrar os malefícios dessa confusão cita-se o que ocorre com a incompetência territorial. O art. 564, inciso I, do Código de Processo Penal, determina que a incompetência do juiz gerará nulidade, sem distinção entre ser territorial ou não, ou seja, qualquer que seja o tipo de incompetência será ela absoluta. Inclusive, o art. 109 do mesmo código corrobora com essa interpretação ao dispor que ao juiz que reconhecer motivo que o torne incompetente deverá declará-lo de ofício, independente de arguição da parte interessada. (ZACLIS, 2015).
Porém, a jurisprudência do STJ seguida pela maioria dos tribunais brasileiros entende que a incompetência territorial é uma nulidade de ordem relativa, o que exige a demonstração de prejuízo para sua declaração. Tal posicionamento só se explica pela insistência em uma teoria unitária das nulidades que recorre ao tratamento conferido pelo processo civil no tratamento da competência territorial.
É evidente que a relativização da competência territorial fere o direito ao juiz natural, garantia constitucional permeada de interesse público. Como explanado por Zaclis (2015), não é garantido ao jurisdicionado o juiz pré-fixado em lei, mesmo assim compete a ele a demonstração do prejuízo causado pelo próprio Poder Judiciário. Os questionamentos levantados pelo autor revelam que com a relativização tornou-se basicamente impraticável o reconhecimento da incompetência territorial no processo penal, in verbis:
“Contudo, há de se fazer, uma vez mais, a pergunta óbvia: como demonstrar o efetivo prejuízo de ser julgado por juiz cuja competência não encontre amparo na legislação? Se o mero fato de se apontar a incompetência territorial do juiz constitui evidência insuficiente para caracterização do prejuízo, o que, então, poderia ser objeto de prova para comprová-lo?
Caberia, por exemplo, ao acusado ou ao Ministério Público lançar mão de argumentos aptos a demonstrar que o magistrado incompetente, que proferiu uma determinada decisão, era tecnicamente menos capaz de analisar o fato quando comparado ao juiz natural? Ou, ainda, seria razoável exigir do acusado uma prova de que o juiz voluntariamente decidiu pela manutenção do processo em sua comarca apenas para prejudicar a defesa? Alegar que a prorrogação da competência alterou a verdade real ou o julgamento final do feito seria suficiente para se aperfeiçoar o prejuízo, ou seria imprescindível demonstrar (provar essa lesão concreta da parte? Mas de que maneira comprovar tais prejuízos? (ZACLIS, 2015, p. 130).”
Essas importações de institutos do processo civil para o processo penal é fruto da teoria geral do processo. Para melhor ilustrar o fenômeno, cita-se lição de Lopes Jr. (2019):
“Era uma vez três irmãs, que tinham em comum, pelo menos, um dos progenitores: chamavam-se a Ciência do Direito Penal, a Ciência do Processo Penal e a Ciência do Processo Civil. E ocorreu que a segunda, em comparação com as demais, que eram belas e prósperas, teve uma infância e uma adolescência desleixada, abandonada. Durante muito tempo, dividiu com a primeira o mesmo quarto. A terceira, bela e sedutora, ganhou o mundo e despertou todas as atenções. Assim começa Carnelutti, que com sua genialidade escreveu em 1946 um breve, mas brilhante, artigo (infelizmente pouco lido no Brasil), intitulado "Cenerentola" (a Cinderela, da conhecida fábula infantil). O processo penal segue sendo a irmã preterida, que sempre teve de se contentar com as sobras das outras duas. Durante muito tempo, foi visto como um mero apêndice do direito penal. Evolui um pouco rumo à autonomia, é verdade, mas continua sendo preterido. Basta ver que não se tem notícia, na história acadêmica, de que o processo penal tivesse sido ministrado ao longo de dois anos, como costumeiramente o é o direito penal. Se compararmos com o processo civil então, a distância é ainda maior. (LOPES JR., 2019, p. 63).”
A necessária recusa à teoria geral do processo advém de uma diferença insuperável quanto a tutela de bens. Enquanto o processo civil trata do ter um bem o processo penal cuida da liberdade — geralmente o processo daqueles que não tem bens, do excluído materialmente. Outra diferença que faz coro ao rechaço da teoria geral é encontrada na autoexecutoriedade do direito civil, plenamente capaz de se realizar sem o processo civil, necessário apenas quando há uma lide. O mesmo não ocorre com o direito penal, que não tem eficácia imediata, pois, para aplicar a pena precisa necessariamente do processo penal, unidos que estão pelo princípio da necessidade ou chamado de nulla poena sine iudicio. (LOPES JR., 2019).
Estudada a Teoria das Nulidades em suas raízes históricas, é chegada a hora de apresentar as críticas doutrinárias e legais à regra do prejuízo e dos institutos normativos relacionados a partir de uma concepção que seja adequada à Constituição Federal e a preservação dos direitos fundamentais.
3 Crítica à nulidade relativa e a necessidade de demonstração do prejuízo encontrada no CPP brasileiro
No presente capítulo se passará a discussão a respeito da adequação do Ne Pas de Nullité Sans Grief às determinações de uma Constituição que adotou o sistema processual penal acusatório, modelo mais democrático por ter maior preocupação quanto aos direitos humanos e as garantias processuais. Em decorrência disso, o conceito de instrumentalidade constitucional do processo penal será o ponto de partida.
Antes, para evitar confusão conceitual, é preciso diferenciar o que seja princípio da instrumentalidade das formas do significado de instrumentalidade constitucional do processo penal, ambos relevantes para o objeto em estudo.
Primeiramente, em relação ao princípio da instrumentalidade das formas, tem como objetivo tornar o processo penal mais célere e eficiente do ponto de vista da execução da pena. Para isso, recorre a maximização das possibilidades de saneamento dos atos processuais viciados. É o que se denomina de ilegalismo congênito, que é a aceitação de ilegalidades processuais tomando-os em seus efeitos como se estivessem de acordo com a forma processual adequada. (GLOECKNER, 2017).
Com Gloeckner (2017), é possível vislumbrar mais que um princípio processual, na verdade, trata-se de um modelo político capaz de estabelecer critérios, métodos, narrativas e interpretações que interferem na configuração das nulidades. Como já ilustrado, o sentido da instrumentalidade das formas é o de permitir ilegalidades processuais em prol de uma maior celeridade e eficiência na execução da pena. Um desses instrumentos é a exigência da demonstração de prejuízo que impede o reconhecimento das nulidades, mesmo quando existentes.
Ainda nas lições de Gloeckner (2017), o nome mais apropriado para expressar a verdadeira essência do princípio da Instrumentalidade das formas é “princípio da tolerância das ilegalidades”, visto ser uma rota de fuga da declaração das nulidades, à serviço de ideais antipáticos a preservação dos direitos fundamentais.
Esse é o fenômeno da funcionalização do direito penal, em que abstrações como segurança pública, combate à criminalidade e impunidade são colocadas como objetivos prioritários em detrimento da forma processual. (GLOECKNER, 2017).
Completamente distinto é o conceito de instrumentalidade constitucional do processo penal. Pela leitura da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), percebe-se que ela constitui um processo penal que limita o poder punitivo estatal por meio de suas garantias processuais positivadas ao longo de toda a carta. Especialmente suas determinações no sentido garantir a ampla defesa e o contraditório, a individualização da pena, legalidade, o devido processo penal, o juiz natural, a presunção de inocência, a motivação das decisões, enfim, um processo penal humanitário e racional que minimiza o arbítrio judicial.
É aí que se encontra a justificativa para que a leitura que se faça do Código de Processo Penal seja compatível com a Constituição Federal, visto ser a carta política do Estado. E essa democratização do processo penal se dá por meio da instrumentalidade constitucional do processo penal, que significa dizer que as determinações encontradas na constituição devem dirigir e delimitar a ação punitiva do Estado, e as demais disposições legais no que lhe sejam contrárias — inclusive o CPP — devem ser desconsideradas em sua validade. (LOPES JR., 2019).
Ou seja, a instrumentalidade constitucional do processo penal nada mais é do que dizer que, nas palavras de Lopes Jr. (2019), “O processo penal deve ser lido à luz da Constituição e da CADH e não o contrário”.
Entendido que a CRFB/88 constitui um processo penal garantidor dos direitos fundamentais dos indivíduos e que o sistema de nulidades é um grande responsável pela sua efetivação e proteção, passa-se agora aos apontamentos críticos que a pesquisa julga necessários para a adequação da teoria das nulidades à instrumentalidade constitucional do processo penal.
A inadequação para a construção de um processo penal democrático remete desde a divisão entre nulidades relativas e nulidades absolutas. Atribuir as nulidades de ordem relativa a mera proteção de interesses privados é reducionista, no processo penal todo interesse é de ordem pública, visto ter como pano de fundo a tutela da liberdade dos indivíduos, direito fundamental protegido por cláusula pétrea. (LOPES JR., 2019).
Contudo, a atual teoria das nulidades nomeia a punição dos culpados como interesse público e o interesse do acusado em se defender de interesse privado. (GLOECKNER, 2017). Erra ao negar o interesse da sociedade na absolvição dos inocentes, que só pode acontecer por meio do devido processo legal. Nas lições de Lopes Jr. (2020, p. 1480), “A proteção do réu é pública, porque públicos são os direitos e as garantias constitucionais que o tutelam.”.
É preciso realocar a discussão do que seja interesse público no processo penal. Na verdade, qualquer que seja a perspectiva, é de interesse da sociedade a preservação das garantias individuais prescritas pela CRFB/88. Seja do ponto de vista constitucional, já que a promulgação da carta política significa a chancela do povo brasileiro, o que permite depreender daí o interesse público de vê-la cumprida e respeitada integralmente. Ou do ponto de vista pragmático, do indivíduo — quando no papel de acusado, deseja o respeito as formas para o exercício do direito de defesa —, ou do próprio Estado — que quer garantir a ordem jurídica. (ZACLIS, 2015).
Consequentemente, o impedimento de que as nulidades relativas sejam declaradas de ofício, que deriva diretamente da equivocada concepção de que no processo penal há tutelas meramente privadas, também é inadequado. O juiz no processo penal tem o dever de garantir a lisura e a eficácia das garantias constitucionais, cabendo-lhe, desde logo, ao tomar conhecimento, determinar a retirada e o refazimento do ato processual defeituoso a fim de evitar o prolongamento dos danos causados por parte do vício encontrado. (LOPES JR., 2020).
Porém, o principal artifício para evitar o reconhecimento das nulidades é a regra da demonstração do prejuízo, objeto do presente estudo. Ela traz ao processo penal brasileiro característica própria do sistema inquisitorial, o amorfismo processual ou ilegalidade congênita — que significa dizer que há uma flexibilidade conveniente ao interesse punitivista, que varia entre a completa ausência de respeito à forma e o extremo apego ao formalismo. (GLOECKNER, 2010).
Positivada de forma vaga e abstrata no artigo 563, a regra do prejuízo permite a manipulação do processo penal pelo inquisidor para afastar os efeitos do sistema de nulidades sob a alegação de inexistir prejuízo para a parte interessada. Para superar essa barreira é preciso que a arguição do prejuízo comprove a relação entre o dano e a ruptura da forma do ato — que pode ser entendido como princípio da lesividade, contudo, diferentemente do que ocorre no direito material que protege o direito de liberdade, no direito processual serve como catalizador da expansão da ilegalidade. (GLOECKNER, 2017).
E, mais ainda, demonstre a vantagem processual que advirá com a declaração da nulidade para quem a invoca — ou seja, cria carga probatória ao prejudicado, o que fere a presunção de inocência, já que tira a responsabilidade pelo zelo das regras do jogo das mãos do magistrado. (LOPES JR., 2019).
Entretanto, tal exigência resulta em verdadeiro paradoxo, como apontado por Gloeckner (2017), “como é possível provar a vantagem de um ato ainda não praticado? Como é possível a avaliação de um ato processual virtual?”. Tanto a doutrina quanto o código são silentes quanto a esses questionamentos.
Ao mesmo tempo, a arbitrariedade de quando se dá o prejuízo permite que o inquisidor recorra a um formalismo exacerbado com o único objetivo de fazer o processo retroagir a um estado anterior para renovar a produção probatória, a fim possibilitar uma nova chance para a acusação. (GLOECKNER, 2017).
É o que ocorre no Brasil no tribunal do júri, onde a nulidade é usada para ferir garantias processuais do acusado, num verdadeiro abuso de apelações interpostas pelo Ministério Público para ver anulado o julgamento. Aqui o órgão acusador se vale da verificação de uma nulidade na fase de instrução para que o ato seja refeito no intuito de ter uma segunda chance para colher informação que antes o fez de modo incompleto. (GLOECKNER, 2017). Uma espécie de máquina do tempo que serve para aprimorar a acusação.
Ou seja, quando conveniente ao interesse punitivista os argumentos variam entre o repúdio à um suposto formalismo exacerbado e um apego rigoroso e oportunista a formalidades processuais.
Como se pode notar, o sistema inquisitório é um fenômeno mais complexo do que o clichê dado pela doutrina clássica, ainda presa na mera separação de funções. Ao longo da história o sistema acusatório foi identificado como aquele em que as funções de julgar, acusar e defender se encontram em figuras distintas, já que imprescindível para a imparcialidade do julgador. Enquanto para o sistema inquisitório são apontados ordenamentos jurídicos nos quais as funções de julgar e acusar se encontram na figura do juiz inquisidor.
Porém, na doutrina de Lopes Jr. (2019), somente a divisão estática das funções é insuficiente como critério diferenciador. Para o citado autor, é a gestão da prova o verdadeiro divisor de águas entre os dois sistemas. Dessa forma, no sistema acusatório a gestão da prova cabe estritamente as partes, com o magistrado alheio garante-se o seu necessário distanciamento das partes para o fim de alcançar a imparcialidade e o efetivo contraditório.
A presente pesquisa concorda com a lição do autor e toma a liberdade para ir além, ao colocar o respeito a forma processual ao lado da gestão da prova como elementos configuradores do sistema acusatório. Assim, para um processo penal verdadeiramente acusatório — consciente da falibilidade e dos riscos inerentes ao julgamento humano —, é essencial que exista uma teoria das nulidades forte para expurgar os ilegalismos, e isso só pode se dar com o reconhecimento das nulidades desimpedido de standards probatórios arbitrários criados com mero intuito inquisitorial.
Dito isso, resta claro que na ordem jurídica brasileira há o embate entre dois sistemas que imperam concomitantemente, o sistema acusatório positivado na Constituição Federal — que garante o efetivo contraditório, a imparcialidade do julgador, a democracia processual por meio da preservação da forma —, e o sistema inquisitório positivado no Código de Processo Penal — voltado ao combate do mal por meio da execução acelerada da pena a todo custo, recorrendo a institutos que dificultam o reconhecimento das nulidades, tais como a regra da demonstração do prejuízo, verdade real e a instrumentalidade das formas.
Mas afinal, o que é a exigência de demonstração do prejuízo? Seria um princípio, uma regra ou ambos? Seu conceito se confunde com o da instrumentalidade das formas ou são distintos?
Quanto ao primeiro questionamento, numa análise mais aprofundada, a partir das discussões acima apresentadas, é patente que se trata de uma ferramenta de uma política criminal inquisitorial, que busca punir em maior quantidade e velocidade sem se preocupar com possíveis erros judiciários.
Em relação ao segundo questionamento concorda-se com posicionamento de Zaclis (2015) que, a partir da leitura de Dworkin (2014), afirma ser a demonstração do prejuízo uma regra, como consta no artigo 563, do CPP; por isso se aplica nos moldes do tudo ou nada, diferente dos princípios que se aplicam na medida do possível.
Inclusive, concorda-se com o citado autor quando em suas críticas alerta para o perigo de se tomar a demonstração do prejuízo como princípio, pois daria ao poder judiciário margem para fazer interpretações arbitrárias. Não se trata de mero apego conceitual, pois faz diferença devido a ampliação da incidência do instituto.
Contudo, discorda-se do autor quanto ao terceiro questionamento, quando diferencia a demonstração do prejuízo por ser uma regra e a instrumentalidade das formas por ser um mando de otimização. Afinal, como colocado pelo próprio autor, o prejuízo para que se veja declarada a nulidade existe quando a finalidade destinada pela lei para o ato processual praticado não for alcançada. (ZACLIS, 2015).
A mera distinção de regra e princípio não é suficiente, o que inclusive muda a resposta do segundo questionamento, pois, na prática, a demonstração do prejuízo é sim um princípio norteador que orienta a atuação estatal para uma política criminal inquisitória, na forma da instrumentalidade das formas. Negar o atual estado de coisas em que se encontra o sistema de nulidades do CPP só favorece a permanência de institutos inapropriados para a construção de um processo penal acusatório. Como ensina Gloeckner (2017), com as nulidades relativas é possível manter um sistema inquisitorial no seio do processo penal democrático.
A doutrina adepta da relativização das nulidades, quando confrontada com o interesse público inerente ao processo penal, recorre a algumas alternativas para salvar a classificação. Parte da doutrina justifica a divisão entre vícios que causam ou não ferimento à norma constitucional. Contudo, no processo penal, todas as normas estão interligas de uma maneira ou outra à uma garantia constitucional, de modo que tentar distinguir direitos fundamentais que geram nulidades absolutas e relativas é inapropriado, vide inexistir hierarquia entre eles. (PASCHOAL, 2017).
Dessa forma, requerer lesão a princípios de ordem constitucional para se declarar a nulidade reduz as possibilidades de sua declaração e eleva o grau de discricionariedade, já que alguns atos processuais delineados por normas infraconstitucionais não permitem a demonstração imediata de dano à Constituição, mas, mesmo assim, devem ser invalidados. Paradoxalmente, a teoria da nulidade como tipo constitucional é ferramenta que enfraquece e viola direitos fundamentais, pois eleva a definição de prejuízo a um conceito mais restrito e mais raro de ocorrer, o que permite maior tolerância com vícios processuais. (GLOECKNER, 2017).
A divisão ainda se mantém ilógica quando invocado a presunção ou não do prejuízo, afinal, se foi previsto pelo legislador é porque presume-se que o vício frustra alguma finalidade relevante, pressupondo que a lei não foi instituída à toa. Ou seja, o desrespeito à forma estabelecida pelo legislador só pode implicar na existência de prejuízo, pois, do contrário, não haveria necessidade para sua legislação. (PASCHOAL, 2017).
Consequentemente, entender que, diferente das nulidades de ordem absoluta, nas nulidades de ordem relativa o prejuízo não se presume, exigindo-se sua demonstração, não é um critério diferenciador sustentável.
Assim, seja a justificativa do interesse público, do ferimento à constituição ou do prejuízo efetivo, na verdade, não há um critério material apto a diferenciar uma nulidade da outra — o que, diga-se, a nomenclatura sequer está na lei, que fala apenas de vícios sanáveis e insanáveis, onde infere a doutrina tratar-se de relativa e absoluta respectivamente —, a divisão entre vícios de ordem absoluta e relativa é tecnicamente errada. (PASCHOAL, 2017).
Como se não bastasse a arbitrariedade inerente de como se dá a demonstração do prejuízo deixados pelo legislador, o CPP ainda atrelou essa resposta a um dispositivo inquisitório e autoritário, qual seja, a verdade real positivada no artigo 566.
O papel da verdade real no Processo Penal brasileiro vai além de apenas modular o que seja o prejuízo como o defeito no ato processual que interfere na sua busca. Cumpre a busca pela verdade substancial a tarefa de ser a razão ideológica para a deformação do processo penal. É para ela que as formas processuais são cada vez mais relativizadas, movimento que resulta na exigência da demonstração do prejuízo até mesmo de vícios de ordem absoluta, tendência observada na jurisprudência como será discutido mais adiante.
Como ensina Gloeckner (2017), “O prejuízo está visceralmente ligado a uma concepção de processo penal que considera a forma um obstáculo à verdade material.”. Ideia incompatível com a própria natureza das nulidades processuais, visto que procuram delimitar a atuação punitiva do Estado, enquanto a verdade real procura a resposta em detrimento de qualquer limite ou regra imposta, o que satisfaz o ímpeto autoritário e avesso a ampla defesa e ao contraditório do sistema inquisitorial construído para a punição a qualquer custo.
Em sua doutrina, Lopes Jr. (2020), demonstra preocupação quanto à aplicação da verdade real para distinguir nulidade relativa ou absoluta, pois o conceito é facilmente manipulável retoricamente — muitas vezes há uma fusão com a instrumentalidade das formas, em que a verdade substancial passa a ser o fim do processo penal, na mesma lógica de que os fins justificam os meios —, além de carregar forte influxo ideológico permeado de conflitos políticos, no qual, geralmente, é usado por magistrados para se colocarem como guardiões da moral e dos bons costumes.
O resultado da busca pela verdade real, condenações com alta probabilidade de injustiças, vide o desrespeito à forma e as garantias processuais, se materializa por meio da exigência do prejuízo que impede a declaração de nulidade de vícios existentes no processo no intuito que o processo prossiga e haja a condenação.
Por todo o exposto, discorda-se de exposições como a de Zaclis (2015), quando diz que o problema não se encontra na exigência do prejuízo, mas, sim, nos seus critérios configuradores. Em verdade, independentemente das balizas que se adotem para a sua definição, permanece arbitrária e propensa ao ilegalismo congênito.
Como pôde ser observado, apesar de mudarem de nomenclatura a estrutura se mostra semelhante, seja para alcançar a finalidade do ato com a instrumentalidade das formas; ou para buscar a verdade real; a necessidade de demonstração do prejuízo continua arbitrária.
De nada adiantará desvincular o prejuízo das categorias da instrumentalidade das formas e da verdade real, pois, no fim, os três conceitos são manifestações de uma mesma ferramenta que tem como objetivo expurgar a declaração das nulidades em prol do aumento do poder punitivo do Estado.
Cumpre explicar que rechaçar a ideia da verdade real não significa dizer que o processo penal prescinda da sua busca. O que se está a dizer é que é impossível alcançar uma verdade dita absoluta, livre de qualquer risco de erros, o que em tese justificaria a quebra de todos os limites para concretizá-la. (PASCHOAL, 2017).
Contudo, é possível alcançar uma verdade processual, dito de outra forma, uma verdade construída a partir da consciência dos limites inerentes a cognoscibilidade humana, passível de falhas e preconceitos.
É então que se revela a importância da forma processual para a garantia da verdade, pois atua justamente para evitar que a cognição do julgador seja afetada por seus preconceitos e pela sua subjetividade e contamine o julgamento. (PASCHOAL, 2017).
Tanto o modelo inquisitório como o acusatório buscam a verdade, a diferença reside no como se busca. Aquele tem uma confiança extremada na bondade do poder, o que justificaria o vale tudo na sua busca — como exemplo, ignorar vícios processuais com a alegação de não terem causado prejuízo para evitar o reconhecimento da nulidade. Enquanto o sistema acusatório parte de uma grande desconfiança quanto a essa suposta bondade e infalibilidade. (PASCHOAL, 2017).
E é justamente neste ponto que reside o papel desempenhado pelas formas processuais, já que a sua observação é o principal instrumento para minimizar as chances de erro e melhorar as chances de encontrar uma decisão correta, por isso, é que o reconhecimento das nulidades representa uma garantia epistemológica na busca da verdade, conforme a lição de Paschoal (2017):
“O pronunciamento da nulidade, ao servir como mecanismo de observância dos direitos e garantias fundamentais (obrigando ao refazimento do ato omitido ou praticado com algum defeito), também constitui garantia para atingimento da verdade, na medida em que corrige os desvios de rumo do procedimento, os quais podem prejudicar alguma das partes, comprometendo a solução justa da demanda, ao impedir que este ou aquele sujeito do processo não tenha oportunidade de oferecer reação e convencer o juiz de sua versão. (PASCHOAL, 2017, p. 108).”
Faz-se evidente que a regra da demonstração do prejuízo é inapropriada frente a busca da verdade processual por permitir a contaminação do julgador em virtude da fragilização da forma processual.
E quanto ao prejuízo no seu aspecto de uma projeção da instrumentalidade das formas não é diferente, por serem várias e mutáveis ao longo do tempo as finalidades existentes para cada ato processual, é impossível instituir uma fórmula geral que possa deduzi-las para então se chegar ao pretenso prejuízo causado de modo racional, como pretendido pelo código processual penal no art. 572, em seu inciso II. (PASCHOAL, 2017).
Estudada a crítica da regra da demonstração do prejuízo em seus aspectos legais e doutrinários, é chegada a hora de passar a discutir o comportamento da cultura jurídica.
4 A demonstração do prejuízo na jurisprudência brasileira
A jurisprudência majoritária dos tribunais brasileiros referente a regra do prejuízo se mostra um catalizador arbitrário. Na prática jurídica brasileira não é exagero falar em abolição das nulidades absolutas, vide exigirem a comprovação de prejuízo pela parte interessada no seu reconhecimento também.
Ou seja, na realidade, a situação é ainda mais crítica do que a visualizada na teoria das nulidades, pois não há nulidade a salvo da regra do prejuízo, que segue com seus critérios configuradores indefinidos pelo Poder Judiciário.
Com a ampla pesquisa realizada por Paschoal (2017) é possível demonstrar o fenômeno da relativização das nulidades, citar as contradições em diversos julgamentos da matéria pelas cortes superiores e apontar para o grau de discricionariedade do conceito de prejuízo.
A começar pelo julgamento do STJ pela 6ª Turma no HC 99.390/SP, de relatoria da Ministra Thereza de Assis Moura, julgado em 01/09/2009, em que se discutia a respeito da inobservância do procedimento previsto no art. 38 da Lei nº 10.409/2002, reconhecida no próprio voto da relatora como causa de nulidade absoluta: “Trata-se de nulidade absoluta, cujo reconhecimento independe de demonstração de prejuízo, já que não há como comprovar que efeito teria a defesa apresentada para o recebimento da denúncia ou para o processo em si.”.
Porém, apesar de admitir a existência de constrangimento ilegal no caso, não reconheceu a nulidade em razão de preclusão, conforme o trecho a seguir:
“A hipótese ora sob análise se me afigura um desses casos em que, apesar de se estar diante de uma inobservância do procedimento legalmente previsto, não se evidencia qual seja o prejuízo ao paciente, que apenas suscitou referida nulidade mais de um ano após a prolação da sentença, já em sede de habeas corpus, e que nenhuma referência fez ao apontado vício nas razões de apelação, na qual questionou apenas o mérito da ação penal. Como a defesa, durante toda a ação penal, não suscitou qualquer nulidade, tampouco apontou providência que supostamente teria deixado de ocorrer e que poderia ter obstado o recebimento da denúncia, anular todo o processo, sob a alegação genérica de desrespeito ao texto legal, configuraria formalismo exacerbado, implicando conferir extrema relevância à forma em detrimento do que substancialmente foi colhido na marcha processual. (STJ, HC 99.390/SP, Ministra Relatora Maria Thereza de Assis Moura, 6º T., j. 01º.09.2009).”
Como se pode observar, além da preclusão aplicada em nulidade de ordem absoluta — o que contraria entendimento da doutrina tradicional —, também fundamentou a decisão no art. 566, do CPP, quando faz referência aos resultados obtidos com o ato processual.
Aqui o prejuízo encontra-se disfarçado como verdade real e finalidade do ato atingida, há então uma inversão na lógica do devido processo legal, já que, dada a obtenção do que foi “substancialmente colhido na marcha processual”, chega-se à conclusão de que não valeria a pena anular o procedimento. (PASCHOAL, 2017).
Acontece que, apenas 8 dias antes, mais precisamente no dia 24/08/2009, a mesma 6ª Turma do STJ decidiu que a inobservância do procedimento previsto no art. 38 da Lei nº 10.409/02 é causa de nulidade absoluta, por isso mesmo, não passível de preclusão, como firmado no julgamento do HC 125.161/SP, de relatoria do Ministro Nilson Naves, in verbis:
“É certo que já existe sentença condenatória com trânsito em julgado. Entretanto a nulidade em comento, repito, é de ordem absoluta, a saber, não preclui – não é, pois, sanável. Sendo absoluta, a nulidade é conhecível em qualquer tempo, e se impõe à autoridade de jurisdição prevalente que a declare. (STJ, HC 125.161/SP, Ministro Relator Nilson Naves, 6º T., j. 24.08.2009).”
O contraste entre os dois julgados acima em um curto espaço de tempo, em uma mesma Tuma da Corte Superior, sem nenhuma justificativa para tal, visto os vícios serem o mesmo em ambos os casos, revela a arbitrariedade no reconhecimento das nulidades por parte do Poder Judiciário e que a sorte dos jurisdicionados está entregue a razões outras que não as próprias do direito. Assim, a depender do Juiz, Tribunal, Turma ou Relator do caso, tem-se uma teoria das nulidades diferente.
Como observado no primeiro julgado colacionado, a condenação, em si, não é um prejuízo. Faz-se oportuno o questionamento, afinal, o que é mais grave que uma condenação criminal a ponto de poder ser considerado prejuízo suficiente? (PASCHOAL, 2017).
Entendimento repetido em diversos julgamentos, a exemplo do STF em sede do RHC 106.728/DF, no qual a Ministra Relatora Ellen Gracie, ao tratar de vício relacionado a fixação de competência por prevenção em caso do procedimento do júri, onde houve a distribuição da apelação para Câmara de Direito Criminal não preventa, considerou que o Réu não comprovou a existência do prejuízo. (PASCHOAL, 2017).
Acontece que o julgamento da apelação pela Câmara de Direito Criminal não preventa anulou a decisão dos jurados por considerá-la manifestamente contrária a prova dos autos. Consequentemente, remetido a um segundo julgamento no Tribunal do Júri em virtude da anulação, o Réu foi condenado pelo conselho de sentença. A fundamentação do voto da relatora passa por classificar o vício como nulidade relativa, o que exige a demonstração do prejuízo para ser reconhecida. (PASCHOAL, 2017).
Chama a atenção o que poderia ser considerado prejuízo suficiente para o reconhecimento do vício objeto do julgamento. Em verdade, a conclusão que se apresenta é a de que quando é classificada como nulidade relativa pelo Poder Judiciário significa dizer que a nulidade é inexistente, visto nem mesmo a mais severa consequência possível no âmbito penal ser suficiente para satisfazer o critério do prejuízo.
Cite-se, ainda, que é recorrente o uso da sentença condenatória para afastar o prejuízo, o que fere a presunção de inocência e inverte a lógica inerente ao processo penal, já que vícios processuais representam risco de incorreção da decisão, visto serem as formas processuais uma tentativa de estabelecer métodos racionais para obtenção dos resultados. Desse modo, afastar o reconhecimento do vício processual por existir sentença condenatória é um argumento contraditório. (PASCHOAL, 2017).
Isto apenas desvela a falta de sistematização jurisprudencial da regra do prejuízo que, conforme lição de Paschoal (2017):
“Temos a seguinte conjuntura: se ontem o tribunal reconhecia a nulidade em determinada situação, hoje passa a adotar entendimento diverso, nada impedindo que, amanhã, a posição que até ontem fora desposada venha a ser novamente aplicada, passando-se a julgar diferente. Em síntese, é uma verdadeira bagunça. As mudanças de humores da jurisprudência, a ponto de fazer o próprio direito a ser comparado a uma loteria, só trazem prejuízos à Justiça, cuja credibilidade e coerência passam a ser questionadas por todos; ademais, quem mais sente e sofre com todas essas alterações de entendimentos é, justamente, o cidadão jurisdicionado, sendo que, em sede penal, uma pequena diferença de posicionamento pode significar muito, como a manutenção de uma prisão cu a concessão da liberdade, o que bem mostra a gravidade da situação. (PASCHOAL, 2017, p. 456).”
As justificativas de ministros do STF e STJ em diversos julgados são nebulosas quando classificam determinada nulidade como absoluta ou relativa, ou até mesmo do porquê exigem a demonstração do prejuízo nas nulidades absolutas ou de presumi-lo em outros casos. (PASCHOAL, 2017). Há ausência de critérios do Poder Judiciário na definição do que seja prejuízo demonstrado e de quais vícios se deve exigir.
É o que se observa no Supremo Tribunal Federal com julgados que ora exigem a demonstração do prejuízo até mesmo das nulidades absolutas, como foi o caso do julgamento do HC 110.160/DF, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, na 2ª Turma, do dia 18/12/2012:
“O princípio do pas de nullité sans grief exige, em regra, a demonstração de prejuízo concreto à parte que suscita o vício, independentemente da sanção prevista para o ato, podendo ser ela tanto a de nulidade absoluta quanto a relativa, pois não se decreta nulidade processual por mera presunção. (STF, HC 110.160/DF, Ministra Cármen Lúcia, 2º T., j. 18.12.2012).”
Enquanto em outros julgados a mesma Suprema Corte considera determinados vícios com relevância suficiente para presumir-se o prejuízo, como ocorreu no julgamento do RHC 106.394/MG, in verbis:
“Por outro lado, considerando que, na audiência, foi realizado ato instrutório relevante, a oitiva da vítima, sem que houvesse a regular intimação da Defensoria Pública local para o ato, presume-se o prejuízo, não sendo aplicável o disposto no art. 563 do Código de Processo Penal. (STF, RHC 106.394/MG, Ministra Relatora Rosa Weber, 1º T., j. 30/12/2012).”
As variações nas classificações se dão até mesmo nos votos de um mesmo julgador, como demonstrado na pesquisa de Paschoal (2017) quanto ao vício da ausência de defesa preliminar nos crimes da lei de drogas:
“A respeito das mudanças de entendimentos no Supremo, cita-se o julgamento do HC 95.434/SP (j. 25.08.2009), de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, em que ali se fala, expressamente, em nulidade absoluta em razão da inobservância do art. 38, da Lei n.° 10.409/2002 (pontuando, entretanto, o Ministro, que o STF vem mitigando o conhecimento da nulidade). Contudo, no julgamento do HC 96.864/SP (j. 20.10.2009), o Ministro Ricardo Lewandowski fala em nulidade relativa (p. 674, do acórdão), sendo que, posteriormente, no julgamento do HC 98.101/SP (j. 01º.06.2010), volta a falar, novamente, em nulidade absoluta (embora pontue que o STF tem mitigado o reconhecimento da nulidade). No ponto, o exposto revela certa imprecisão no uso das palavras, o que, de toda forma, deveria ser evitado, ainda mais em se tratando de julgamento da mais alta Corte do país, que deve primar pelo rigor técnico, pois, doutrinariamente, há diferenças drásticas em se falar que um vício enseja nulidade absoluta ou relativa. (PASCHOAL, 2017, p. 467).”
Constata-se, então, que inexiste um padrão racional e coerente para o reconhecimento do prejuízo, na verdade, o poder judiciário se vale de um modelo decisionista processual desprovido de qualquer compromisso com uma fundamentação juridicamente legítima. (ZACLIS, 2015).
Para melhor ilustrar o comportamento do judiciário quanto a aplicação da regra do prejuízo, cumpre citar a tabulação do entendimento emanado pelo STF sobre a matéria feita na pesquisa de Pereira (2009).
Dos 34 julgados estudados no levantamento, apenas 6 deles dispensaram qualquer menção a ocorrência ou não de prejuízo — os julgadores se limitaram apenas na discussão da não observância do rito processual — na análise de casos eivados de nulidade absoluta, perfazendo 18% do total. Dos julgados levantados para estudo em apenas 3 deles os ministros do STF, ao tratarem de casos de nulidade absoluta, decidiram que a comprovação do prejuízo é desnecessária para o seu reconhecimento, o que totaliza uma porcentagem de 9%. (PEREIRA, 2009).
Em contrapartida, em 12 casos (35%) de nulidade absoluta o STF considerou que o prejuízo era evidente por conta de inobservância de garantias constitucionais, ou seja, considerou a existência do prejuízo necessária para o reconhecimento dos vícios de ordem absoluta. No mesmo sentido de exigir a demonstração do prejuízo, só que decidindo pela sua não configuração, em 13 dos julgados, ou 38% dos casos, o STF não declarou a nulidade por entender não comprovado o prejuízo, tal qual acontece nas nulidades relativas. (PEREIRA, 2009).
Pelo exposto percebe-se que o quadro decisório é incoerente e imprevisível, repleto de julgados que ora reconhece determinadas nulidades, ora as rechaçam com fundamento no mesmo critério. O que se encontra de comum nas decisões é uma antipatia pelas nulidades, que as coloca como o mal maior até mesmo que o próprio desrespeito a forma. Campo fértil para a regra do prejuízo (art. 563, do CPP) reinar até mesmo sobre os princípios constitucionais como ocorre em muitos julgamentos do STF. (GLOECKNER, 2017).
Nas lições de Gloeckner (2017), é apontada uma circularidade dos precedentes, responsável por reproduzir a aplicação da regra do prejuízo e evitar a necessidade de fundamentação dessas decisões que, vide sua incorreção técnica, poderia constranger a jurisprudência nacional quanto a inconstitucionalidade da atual teoria das nulidades. Dessa forma, recorrer a esses precedentes é a única válvula de escape na tentativa de tentar fundamentar decisões incoerentes.
“Mas por que se faz? Se analisarmos do ponto de vista do encaixe ou da fragmentação dos prece dentes decisórios, conclui-se que o recurso argumentativo a essa miriade de decisões só tem sua razão de existência em quatro motivos cumulativos: a) a fragilidade da argumentação da decisão presente, movida por uma petição de princípio (decide-se porque já se decidiu assim); b) nenhuma daquelas decisões invocadas como argumento constitui de fato um precedente, novamente pela fragilidade e promiscuidade de seus núcleos semânticos essenciais; c) os próprios precedentes remetem a outros precedentes que tomam como ponto de partida os mesmos significantes e, então, há uma opção pela sustentação de julgados posteriores à promulgação da Constituição da República em detrimento dos mais antigos - função de escamoteamento de que as decisões continuem a partir de critérios estabelecidos em regime político autoritário; d) a função catártica trazida pelos precedentes, o que implicaria que a decisão não seria arbitrária ou rompedora de um posicionamento consagrado naquela instância. (GLOECKNER, 2017, p. 474).”
Essa circularidade de precedentes é na verdade um discurso autoritário e cacofônico da Suprema Corte que resulta em ferimento ao direito fundamental à fundamentação das decisões judiciárias, que ajuda a esconder o DNA autoritário do Código Rocco, o lastreamento na ideologia da defesa social e impede a discussão quanto a adequação constitucional do atual sistema de nulidades, ou seja, é mais uma ferramenta a serviço do enraizamento da cultura inquisitória no processo penal. (GLOECKNER, 2017).
Estabelecido o atual panorama, passa-se a tentativa de apontar possíveis caminhos a serem tomados para readequar o sistema de nulidades para proteger os direitos fundamentais dos jurisdicionados.
5 O sistema de nulidades adequado à Constituição da República
Existem quatro culturas jurídicas que se distinguem no tratamento das formas processuais, chamados de sistemas, são eles: a) Sistema formular, que trata o ato processual como uma solenidade que deve ser praticado exatamente como previsto; b) Sistema judicial, onde cabe ao juiz ou tribunal, no caso concreto, reconhecer ou não a existência da nulidade; c) Sistema taxativo, no qual somente a previsão normativa autoriza o juiz a reconhecer a nulidade; e d) Sistema do Ne Pás de Nullitè Sans Grief, adotado majoritariamente pelos processos penais do ocidente e pelo Código de Processo Penal brasileiro, exige a existência de prejuízo para o reconhecimento da nulidade. (GLOECKNER, 2017).
Entende-se aqui, por tudo que já foi apresentado, pela incompatibilidade do sistema do Ne Pás de Nullitè Sans Grief com a instrumentalidade constitucional do processo penal, o que favorece a tese da não recepção do artigo 563 do CPP pela Constituição Federal. Mais do que isso, é inadequado também em razão do contexto histórico, social e cultural do Brasil. Basta lembrar que a regra do prejuízo é um potencializador dos riscos quanto à condenação de um inocente, que será encaminhado para um sistema prisional declarado como estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, como consta na ADPF 347.
Consequentemente, pela perspectiva constitucional, a solução passa por abolir as nulidades relativas e a exigência da demonstração do prejuízo no processo penal. (GLOECKNER, 2017). Porém, apesar de ser a resposta ideal, pois mais coerente com o sistema acusatório e sua missão de preservar os direitos fundamentais, é uma proposta irrealizável no contexto brasileiro atual, vide o pensamento doutrinário e jurisprudencial majoritários que veem as nulidades como uma barreira que impede a busca pela justiça.
No presente trabalho, concorda-se com Gloeckner (2017) quando apresenta como proposta mais adequada à Constituição da República de 1988 o sistema da taxatividade temperada. Basicamente, consiste em considerar todas as nulidades previstas normativamente como de ordem absoluta — dispensada a necessidade de demonstração do prejuízo, não sujeitas à preclusão e reconhecíveis de ofício. Assim, impede-se o fenômeno da relativização das nulidades absolutas, de exigir a demonstração do prejuízo para sua declaração, como acontece no judiciário brasileiro.
Então, para evitar o erro do engessamento observado no antigo sistema da taxatividade — que não consegue prever todas as possibilidades de nulidades —, a taxatividade temperada reservaria as nulidades não previstas normativamente — únicas hipóteses de nulidades relativas — a exigência de demonstrar o prejuízo. Isso se daria a partir da Constituição e da demonstração da incidência de alguma garantia constitucional na hipótese não prevista.
Ainda propõe o autor a inversão do princípio da regularidade dos atos de poder, ou seja, uma inversão da carga probatória em que, devido ao processo penal lidar com direitos humanos e o desequilíbrio na relação entre Estado-Acusação e acusado, a alegação de nulidade pela defesa implicaria no dever do magistrado, caso não reconheça a nulidade, de demonstrar que o ato processual foi produzido de acordo com a forma estabelecida na lei. (GLOECKNER, 2017). Desse modo, a regra do prejuízo se adequaria ao princípio da presunção de inocência no seu aspecto como regra de tratamento ao longo do processo.
Quanto as nulidades que devem ser previstas normativamente para configurarem vícios de ordem absoluta, cita Gloeckner (2017):
“Como decorrência constitucional, o modelo legal de nulidades tem o dever de regular os aspectos técnicos do processo, resumidos em quatro grandes blocos: a) elementos e requisitos de validade dos atos processuais; b) ordem e sucessão dos atos processuais e sua realização no tempo e espaço; c) capacidade específica e requisitos exigidos de determinados sujeitos para a prática de certos atos processuais; d) possibilidade jurídica de realização do ato processual e atos processuais substitutivos. As demais nulidades decorreriam da violação aos princípios constitucionais, pelo que se poderia resumir toda essa estrutura sob o rótulo de "atos processuais violadores do sistema acusatório". (GLOECKNER, 2017, p. 294).”
Como resultado, tem-se a construção de uma teoria das nulidades democrática por ser comprometida com as garantias fundamentais e combativa com os atos estatais irregulares, o que pode ser denominado como defesa da criminalidade do poder.
Contudo, as perspectivas de mudança não apontam nessa direção. Da leitura do projeto de novo Código de Processo Penal, PL nº. 8045/2010, apesar de mudanças bem-vindas, como a da previsão de nulidades absolutamente nulas e insanáveis, expressa no art. 158, que tratam de violações à direitos e garantias fundamentais do processo penal, incorre no mesmo erro de adotar o sistema do prejuízo de maneira ambígua — não exclui a possibilidade de exigir-se a demonstração do prejuízo das nulidades absolutas, tal qual o Código de 1941.
Silencia, também, quanto a distinção entre nulidades absolutas e relativas, além de reproduzir o conceito de instrumentalidade das formas ao possibilitar a sanatória da finalidade atingida e manter a incompetência territorial como nulidade relativa. É o que se observa respectivamente no art. 157, incisos I e II e no art. 158, parágrafo § 2º do projeto de lei.
Conclusão
Os resultados da presente pesquisa permitiram identificar as características e os efeitos da exigência da demonstração do prejuízo para o reconhecimento das nulidades no processo penal. Da análise, foi possível inferir as críticas quanto à redação imprecisa e insuficiente do artigo 563, do Código de Processo Penal.
Com a análise do contexto histórico e jurídico-cultural, reconheceu-se a sua origem autoritária e inquisitorial, além da lógica privatista que rege o estudado critério para aferir a existência de um ato inválido. O que, inclusive, persiste na atual teoria das nulidades, como se pôde observar a partir do estudo da jurisprudência, onde foi encontrado um comportamento arbitrário e incoerente do Poder Judiciário na aplicação do dispositivo da regra do prejuízo, que contribui para a expansão do ilegalismo congênito com o movimento da relativização das nulidades absolutas.
Por todo o exposto, percebe-se a incompatibilidade da regra da demonstração do prejuízo com um sistema processual penal acusatório, que se queira garantidor dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988. A melhor alternativa ao atual sistema de nulidades se encontra na taxatividade temperada, que deixa a salvo as nulidades absolutas do adágio do Ne Pas de Nullité Sans Grief.
Dada a importância do reconhecimento das nulidades para a efetiva atuação da Teoria das Nulidades na preservação das garantias fundamentais, é necessária a discussão sobre os problemas inerentes ao critério do prejuízo com toda a comunidade — judiciário, doutrina, poder legislativo e, principalmente, a população —, para que haja a conscientização dos riscos quanto a potencialização de decisões arbitrárias e inadequadas constitucionalmente.
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Artigo publicado nesse portal em 02/02/2022 e republicado em 19/03/2024.
Bacharel em Direito pela UniFacid Wyden
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Thiago Henrique Reis de Araújo. A Regra do Prejuízo na Configuração da Nulidade no Processo Penal e sua (In)Compatibilidade com o Sistema Acusatório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2024, 04:59. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58051/a-regra-do-prejuzo-na-configurao-da-nulidade-no-processo-penal-e-sua-in-compatibilidade-com-o-sistema-acusatrio. Acesso em: 25 dez 2024.
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