RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo avaliar a subsistência do direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em concurso público, diante da superveniência de lei que extingue o cargo público para o qual se deu a referida aprovação, a partir da verificação dos parâmetros a serem considerados no caso concreto. A temática foi abordada sob o prisma de uma reflexão pautada pelos direitos fundamentais dos cidadãos, pelos princípios que regem a Administração Pública e pela discricionariedade que lhe é cabível, finalizando-se com a devida análise pormenorizada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça no que diz respeito às questões mais relevantes relacionadas ao assunto.
Palavras-chave: concurso público; nomeação; direitos fundamentais; interesse público; discricionariedade.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Os fundamentos principiológicos do concurso público. 3. O interesse público. 4. A discricionariedade da Administração Pública. 5. A nomeação de candidatos aprovados em concurso público: 5.1. O direito subjetivo à nomeação: 5.1.1. O direito subjetivo à nomeação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. 6. O direito subjetivo à nomeação em face do advento de situações excepcionais. 7. A superveniência de lei que extingue os cargos ofertados em edital de concurso público: 7.1. Argumentos favoráveis ao Poder Público; 7.2. Argumentos favoráveis ao detentor do direito à nomeação. 8. Conclusão. 9. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Diante da consolidação do concurso público como legítimo instrumento democrático para a seleção daqueles que ocuparão cargos efetivos e empregos públicos, surgem alguns questionamentos pertinentes à consecução do processo seletivo e ao posterior provimento das vagas ofertadas. Uma das principais questões que se coloca está relacionada à nomeação dos candidatos aprovados pela Administração Pública, diante do reconhecimento da existência de direito subjetivo à nomeação em determinados casos, o que, logicamente, acarreta ao Poder Público um verdadeiro dever de nomeação.
2. OS FUNDAMENTOS PRINCIPIOLÓGICOS DO CONCURSO PÚBLICO
Dispõe o art. 37, II, da Constituição Federal que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.
Dessa forma, cuida-se o concurso público de procedimento administrativo indispensável para o provimento de cargos públicos efetivos e empregos públicos, do qual se espera a lisura e a regularidade necessárias, a fim de que efetivamente atenda aos princípios que fundamentam a sua existência, tais como os princípios do mérito, da eficiência, da impessoalidade e da moralidade.
Os princípios, conforme preconiza Robert Alexy (2012), são mandamentos de otimização, isto é, normas as quais ordenam que algo deve ser realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.
Na lição de Justen Filho (2014, p. 912):
O concurso público é um procedimento conduzido por autoridade específica, especializada e imparcial, subordinado a um ato administrativo prévio, norteado pelos princípios da objetividade, da isonomia, da impessoalidade, da legalidade, da publicidade e do controle público, destinado a selecionar os indivíduos mais capacitados para serem providos em cargos públicos de provimento efetivo ou em emprego público.
Tem-se que o próprio acesso aos cargos e empregos públicos mediante concurso constitui um princípio por si só, tamanha é a sua relevância. Não obstante, verifica-se que, de forma concomitante, justifica-se como instrumento para a realização de outros princípios.
Com efeito, nas palavras de José Afonso da Silva (2008, p. 679), “o princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos visa essencialmente realizar o princípio do mérito que se apura mediante investidura por concurso público”.
O mencionado princípio do mérito nada mais é do que a finalidade de selecionar os melhores candidatos possíveis para integrar o quadro de servidores e empregados da Administração Pública. Especialmente no contexto de uma Administração Pública que se pretende gerencial, o princípio do mérito se relaciona intrinsecamente ao princípio da eficiência, tendo em vista que, em observância a este, espera-se que a prestação dos serviços públicos seja realizada com presteza, qualidade e, ainda, em tempo razoável.
Assim, “por meio da competitividade, prestigia-se o mérito do candidato que apresentou qualidades necessárias ao exercício da função pública” (OLIVEIRA, 2018, p. 720). Por conseguinte, infere-se que devem ser selecionados os melhores candidatos, pois se parte da premissa de que estes serão servidores públicos de excelência, os quais, logicamente, devem propiciar a melhor execução possível dos serviços públicos por eles realizados.
Em consonância com essa compreensão, asseveram os mestres Joaquim José Gomes Canotilho e Vital Moreira (2007, p. 661):
A regra constitucional do concurso consubstancia um verdadeiro direito a um procedimento justo de recrutamento, vinculado aos princípios constitucionais e legais (igualdade de condições e oportunidades para todos os candidatos, liberdade das candidaturas, divulgação atempada dos métodos e provas de selecção, bem como dos respectivos programas e sistemas de classificação, aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação, neutralidade na composição do júri, direito de recurso). O concurso assente num procedimento justo é também uma forma de recrutamento baseado no mérito, pois o concurso serve para comprovar competências.
O princípio da impessoalidade, por sua vez, possui três aspectos possíveis, consoante Renério de Castro Júnior (2021): dever de isonomia, conformidade ao interesse público e imputação dos atos praticados pelo agente público diretamente ao órgão.
A acepção do princípio da impessoalidade enquanto dever de isonomia, segundo o referido autor, pressupõe que a Administração Pública confira tratamento isonômico e impessoal aos particulares, sendo vedada a discriminação odiosa ou desproporcional, não devendo, assim, haver favoritismos ou perseguições na atividade administrativa.
Dessa forma, é evidente que se encontra diretamente relacionado à necessidade de realização de concurso público, pois este possibilita que o mérito do candidato seja avaliado sem que a sua identidade seja conhecida, inviabilizando, portanto, o favorecimento ou a preterição de determinada pessoa em razão de motivações alheias ao interesse público. Busca-se, pois, a seleção daqueles que verdadeiramente possuem as habilidades buscadas para o excelente andamento das funções administrativas, evitando-se o famigerado “apadrinhamento”.
Nos termos do inciso IV do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784/99, nos processos administrativos devem ser observados, entre outros, os critérios de atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, o que engloba os concursos públicos. Isso quer dizer que a realização de certames para o preenchimento de cargos e empregos públicos também se coaduna com o princípio da moralidade, tendo em vista que deve se pautar na lealdade, na seriedade, na eticidade, com o objetivo de que não haja privilégios, tampouco interferências indevidas e imorais no processo de escolha dos candidatos. Mesmo porque não há como aceitar que a Administração não seja ética em absolutamente todos os seus comportamentos, pois é isso que dela se espera em um Estado Democrático de Direito, em atenção inclusive ao princípio republicano.
Feita essa breve e necessária análise, interessante é notar que os princípios elencados configuram, ao mesmo tempo, fundamentos e objetivos do concurso público. Realmente, o postulado do concurso público mostra-se um instrumento que concretiza e confere efetividade aos princípios citados, os quais, por sua vez, fundamentam a necessidade da existência do concurso público.
3. O INTERESSE PÚBLICO
Preleciona Celso Antonio Bandeira de Mello (2013) que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é condição para a existência de qualquer sociedade. Em sua famosa e clássica lição, inclusive, o referido princípio constitui, ao lado do princípio da indisponibilidade do interesse público, pedra de toque do Direito Administrativo.
Em harmonia com essa concepção, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2016) entende que a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, além de inspirar o legislador, vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação.
Ou seja, pode-se dizer que essa supremacia do interesse público possui um caráter de onipresença, de ubiquidade no âmbito da Administração, já que deve ocupar posição de destaque nas considerações do gestor público, em todas as suas condutas.
Desse modo, diante dessa percepção, claramente se nota que, em um potencial conflito entre interesses privados e públicos, deverão prevalecer estes. Permite-se concluir ainda que, se a autoridade administrativa deve atender ao interesse público em toda a sua atuação, isso se faz presente também no contexto da realização de um concurso público. Contudo, indaga-se: poderia a Administração Pública fazer valer o chamado interesse público a qualquer custo, considerando a posição de supremacia por ele ocupada?
Essa é uma indagação cuja resposta não se mostra simples. Primeiramente porque, sendo um conceito jurídico indeterminado, não há um sentido certo e preciso do que seria interesse público, o que dificulta sobremaneira a sua definição e, consequentemente, a sua delimitação. Não à toa, há bastante divergência doutrinária a respeito do assunto, a apontar que não existe um consenso sequer quanto ao próprio conceito de interesse público.
Imperativo é indicar as duas categorias nas quais comumente a doutrina divide o interesse público: enquanto o interesse público primário se relaciona com a satisfação de necessidades coletivas, o interesse público secundário coincide com o interesse do próprio Estado, na condição de sujeito de direitos e obrigações (OLIVEIRA, 2018).
Ademais, há que se ressaltar que a ideia tradicional de interesse público vem passando por uma verdadeira reformulação. Nesse sentido, a clássica contraposição que se afirma existir entre os interesses público e privado vem sendo questionada. Preceitua Rafael Oliveira (2018) que “atualmente, no entanto, com a relativização da dicotomia público x privado, a democratização da defesa do interesse público e a complexidade (heterogeneidade) da sociedade atual, entre outros fatores, vem ganhando força a ideia de ‘desconstrução’ do princípio da supremacia do interesse público em abstrato”. Conclui o referido autor, mais adiante, que “a promoção do interesse público significa a promoção de interesses privados” e que “há uma conexão necessária entre o interesse público e os interesses privados”.
Em reforço a esse ponto de vista, Humberto Ávila (2001), em renomado artigo a respeito do assunto, nega que exista uma supremacia do interesse público sobre o interesse privado; este, inclusive, necessariamente representaria uma parte daquele. Afirma que o interesse privado e o interesse público, na verdade, são indissociáveis:
Se eles — o interesse público e o privado — são conceitualmente inseparáveis, a prevalência de um sobre outro fica prejudicada, bem como a contradição entre ambos. A verificação de que a administração deve orientar-se sob o influxo de interesses públicos não significa, nem poderia significar, que se estabeleça uma relação de prevalência entre os interesses públicos e privados. Interesse público como finalidade fundamental da atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o particular não denotam o mesmo significado. O interesse público e os interesses privados não estão principialmente em conflito, como pressupõe uma relação de prevalência. Daí a afirmação de HÄBERLE: “Eles comprovam a nova, aberta e móvel relação entre ambas as medidas...”.
Por fim, arremata que “deve haver, outrossim, uma ponderação, não somente dos interesses reciprocamente implicados, mas, também, dos interesses públicos entre si” (p. 25). Tal ponderação se faz necessária, segundo o referido autor, na medida em que, identificados os bens jurídicos envolvidos na questão e as normas passíveis de aplicação, devem aqueles ser preservados e protegidos ao máximo. Logo, não é admissível haver uma interpretação que já se mostre, desde o princípio, favorável ao interesse público, de uma forma abstrata, sem que se observem as nuances de cada situação.
Essa ideia produz um significativo impacto na temática do concurso público, uma vez que este se cuida de processo administrativo que fatalmente envolve o interesse público – ou, como se prefere modernamente, conforme alguns autores, interesses públicos, no plural – e inúmeros interesses privados, na medida em que, normalmente, alta é a quantidade de pessoas que se inscrevem e se submetem aos concursos de provas e de provas e títulos em busca da aprovação e consequente nomeação para um cargo público.
4. A DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Entende-se, tradicionalmente, que o poder discricionário consiste na possibilidade de a Administração Pública, em determinados casos, atuar com certa margem de liberdade, de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, desde que o faça de forma adstrita aos limites legalmente estabelecidos. Os atos discricionários, portanto, contrapõem-se aos atos vinculados, já que, nestes, não há qualquer possibilidade de exercício de escolha na atuação do agente público.
Leciona Hely Lopes Meirelles (2014, p. 184):
A discricionariedade não se manifesta no ato em si, mas sim no poder de a Administração praticá-lo pela maneira e nas condições que repute mais convenientes ao interesse público. Discrição é liberdade de ação dentro dos limites legais. A discricionariedade administrativa encontra fundamento e justificativa na complexidade e variedade dos problemas que o Poder Público tem que solucionar e, para os quais a lei não poderia prever todas as soluções, ou, pelo menos, a mais vantajosa para o caso concreto.
Compreende-se que a discricionariedade deve ser levada a efeito nos moldes contemporaneamente preconizados, o que significa que não há mais como ser considerada de maneira irrestrita ou ilimitada, como se observava outrora.
Assim, não se pode confundir discricionariedade com arbitrariedade, tampouco desconsiderar os direitos e garantias fundamentais dos administrados. A título de ilustração, a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal afirma que “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. Da simples interpretação textual de tal enunciado, infere-se que as razões de conveniência e oportunidade não são absolutas, mas sim limitadas, por exemplo, pelo devido respeito aos direitos adquiridos.
Deve-se, obviamente, resguardar o melhor interesse da coletividade, não se perdendo de vista que a atividade administrativa, em que pese autônoma, é alcançada pelo controle judicial.
Cumpre aduzir que, para parte da doutrina, o poder discricionário não seria, na realidade, um poder autônomo, mas sim um atributo de outros poderes ou competências da Administração (OLIVEIRA, 2018).
Assim, em face das condicionantes mencionadas, não há, portanto, espaço para conceber a discricionariedade administrativa como totalmente livre e ilimitada. Essa premissa igualmente deve permear as decisões a serem tomadas pelos agentes públicos ao longo da realização de um concurso público e, ainda, posteriormente, por ocasião da nomeação dos candidatos aprovados.
5. A NOMEAÇÃO DE CANDIDATOS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO
O preenchimento de cargos públicos vagos se dá mediante o ato administrativo de provimento, gênero que comporta duas espécies: originário e derivado. A espécie de provimento que interessa ao presente trabalho é o originário, assim denominado porque ocorre quando o ocupante não possui vínculo anterior com aquele cargo que será preenchido. Concretiza-se com a nomeação, a qual é elencada como forma de provimento de cargo público pelo art. 8º, I, da Lei 8.112/90, pertinente ao âmbito federal do serviço público.
Inclusive, o referido diploma legislativo, em seu art. 10, corrobora o princípio da acessibilidade dos cargos e empregos públicos veiculado pelo art. 37, II, da Constituição Federal, ao estabelecer que “a nomeação para cargo de carreira ou cargo isolado de provimento efetivo depende de prévia habilitação em concurso público de provas ou de provas e títulos, obedecidos a ordem de classificação e o prazo de sua validade”.
O Supremo Tribunal Federal consubstanciou, em sua Súmula nº 16, o seguinte entendimento: “Funcionário nomeado por concurso tem direito à posse”. Salienta-se, contudo, que o referido enunciado foi aprovado em sessão plenária realizada na data de 13 de dezembro de 1963, refletindo uma necessidade dessa época. Não existe, atualmente, qualquer discussão a respeito do direito de tomar posse que detém a pessoa aprovada em concurso público e nomeada para determinado cargo.
Todavia, não se pode dizer o mesmo a respeito do direito do aprovado em concurso público em relação à sua nomeação, já que se trata de ato administrativo que, em regra, é abarcado pela discricionariedade da Administração Pública, a qual, por isso, não se encontra de qualquer forma vinculada e obrigada a efetivá-la.
Constata-se, aliás, que um instrumento costumeiramente utilizado pela Administração é o denominado cadastro de reserva, isto é, o grupo daqueles candidatos que foram aprovados no certame, porém não alcançaram classificação dentro do número de vagas previsto no edital. Essas pessoas devem figurar como excedentes, ocupando um lugar que se assemelha a uma lista de espera.
Trata-se de um recurso que atende ao interesse público, na medida em que permite o aproveitamento dos candidatos que se mostraram aptos, ao mesmo tempo em que não obriga o Poder Público a nomeá-los, permitindo que seja realizado um planejamento adequado a partir de uma avaliação integrada e sistêmica por parte do gestor público. Desse modo, antes de ser efetivada uma nomeação, poderão ser levados em consideração fatores os mais diversos, tais como o equilíbrio das contas públicas ou o enfrentamento de uma grave crise econômica, por exemplo.
Esse entendimento prestigia o princípio da eficiência administrativa e o espaço de discricionariedade que deve ser resguardado ao administrador público. Por outro lado, evita que seja frustrada eventual expectativa que fora justamente criada pelo administrado em virtude de um comportamento anterior da Administração Pública, em face da proteção da confiança legítima dos cidadãos, em respeito à dignidade destes. De todo modo, não se vislumbra qualquer óbice constitucional ou legal à sua utilização.
5.1. O direito subjetivo à nomeação
Primeiramente, convém assentar uma breve definição de direito subjetivo, o qual pode ser relacionado ao brocardo jurídico jus est facultas agendi, isto é, o direito é a faculdade de agir. Pode-se afirmar que se refere “a uma faculdade incorporada à chamada esfera jurídica do sujeito em decorrência de previsão do direito objetivo” (DONIZETTI; QUINTELLA, 2020).
Assim, em palavras singelas, enquanto o direito objetivo alude às normas que integram o ordenamento jurídico, o direito subjetivo é dele derivado e confere ao seu titular a faculdade de exercitá-lo ou de exigi-lo de outrem.
Apesar de, conforme já consignado, a nomeação para cargo público ocorrer, em regra, de acordo com a conveniência da Administração Pública, há circunstâncias em que o candidato aprovado em concurso público possui direito subjetivo a ser nomeado, desde que presentes determinados requisitos e obedecidos certos parâmetros. Em casos tais, pode-se afirmar que inexiste discricionariedade da Administração quanto à decisão de nomear ou não aquele candidato.
Tendo em vista que se cuida de temática de cunho essencialmente prático e real, é preciso que a perscrutação da existência de um direito subjetivo à nomeação seja realizada, principalmente, a partir de uma análise dos casos concretos apreciados e decididos pelos Tribunais superiores, a fim de se verificarem quais os parâmetros estabelecidos pela sua jurisprudência.
Isso porque, em não havendo como o legislador antever todas as situações possíveis no mundo dos fatos, o que o impede de definir as soluções e as diretrizes a serem seguidas em cada caso que emergir, resta aos Tribunais delimitarem a resolução de importantes questões não previstas em lei.
Desse modo, as decisões exaradas pelo Poder Judiciário assumem posição de incontestável relevância, na medida em que direcionam as condutas a serem praticadas pela Administração Pública. Permitem, assim, que exista um efetivo e ajustado planejamento por parte do gestor público. Por outro lado, apontam o que o administrado pode esperar diante do Poder Público, uma vez que orientam o que pode ser ou não exigido deste.
5.1.1. O direito subjetivo à nomeação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça
Tradicionalmente, detinha o Supremo Tribunal Federal a posição de que o candidato aprovado em concurso público titularizava uma mera expectativa de direito. É nesse sentido, inclusive, a Súmula nº 15, aprovada em Sessão Plenária realizada em 13 de dezembro de 1963, segundo a qual, “dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem direito à nomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação”.
Desse modo, durante muitos anos, reconhecia-se o direito subjetivo à nomeação em uma única hipótese, qual seja, caso verificado o desrespeito à ordem de classificação dos candidatos aprovados. Ora, denota-se que, se não fosse possível a sindicabilidade do comportamento do Poder Público sequer nessa situação, estar-se-ia diante de um absurdo jurídico, uma inegável e flagrante injustiça, além de verdadeira subversão dos princípios e regras que norteiam o concurso público.
De fato, o mínimo que se espera em um certame é que os candidatos sejam nomeados conforme a ordem em que restaram classificados. Tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal precisou definir o que deveria ser óbvio e essencial na realização de um concurso, vislumbra-se o quão a temática era parcamente explorada e como o postulado do concurso público era desrespeitado com indizível facilidade.
Feito esse aparte, frisa-se que, em todas as outras situações, não havia como impor qualquer dever de nomeação à Administração Pública, já que se compreendia que existia simples expectativa por parte do candidato. Este, reitera-se, apenas possuiria direito a ser nomeado na evidente situação de ser preterido em relação a outro candidato cuja classificação fosse inferior à sua.
Ocorre que, em paradigmática decisão proferida nos autos do RE 598.099/MS, resolveu o Plenário que o candidato aprovado dentro do número de vagas especificado no edital do concurso público possui direito subjetivo a ser nomeado, fazendo surgir, portanto, um dever de nomeação para a Administração Pública.
Na ocasião, restou asseverado que, dentro do prazo de validade do certame, a Administração até pode eleger o momento mais propício, sob a sua ótica, para proceder à nomeação; todavia, não lhe é facultado deixar de realizá-la, pois se trata de um verdadeiro dever que lhe é imposto.
Vê-se que, em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes declarou que esse entendimento “reconhece e preserva da melhor forma a força normativa do princípio do concurso público, que vincula diretamente a Administração”.
Em razão da sua primazia, segue a ementa do julgado citado:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONCURSO PÚBLICO. PREVISÃO DE VAGAS EM EDITAL. DIREITO À NOMEAÇÃO DOS CANDIDATOS APROVADOS.
I. DIREITO À NOMEAÇÃO. CANDIDATO APROVADO DENTRO DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. Dentro do prazo de validade do concurso, a Administração poderá escolher o momento no qual se realizará a nomeação, mas não poderá dispor sobre a própria nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa a constituir um direito do concursando aprovado e, dessa forma, um dever imposto ao poder público. Uma vez publicado o edital do concurso com número específico de vagas, o ato da Administração que declara os candidatos aprovados no certame cria um dever de nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas.
II. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. BOA-FÉ. PROTEÇÃO À CONFIANÇA. O dever de boa-fé da Administração Pública exige o respeito incondicional às regras do edital, inclusive quanto à previsão das vagas do concurso público. Isso igualmente decorre de um necessário e incondicional respeito à segurança jurídica como princípio do Estado de Direito. Tem-se, aqui, o princípio da segurança jurídica como princípio de proteção à confiança. Quando a Administração torna público um edital de concurso, convocando todos os cidadãos a participarem de seleção para o preenchimento de determinadas vagas no serviço público, ela impreterivelmente gera uma expectativa quanto ao seu comportamento segundo as regras previstas nesse edital. Aqueles cidadãos que decidem se inscrever e participar do certame público depositam sua confiança no Estado administrador, que deve atuar de forma responsável quanto às normas do edital e observar o princípio da segurança jurídica como guia de comportamento. Isso quer dizer, em outros termos, que o comportamento da Administração Pública no decorrer do concurso público deve se pautar pela boa-fé, tanto no sentido objetivo quanto no aspecto subjetivo de respeito à confiança nela depositada por todos os cidadãos.
III. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO. CONTROLE PELO PODER JUDICIÁRIO. Quando se afirma que a Administração Pública tem a obrigação de nomear os aprovados dentro do número de vagas previsto no edital, deve-se levar em consideração a possibilidade de situações excepcionalíssimas que justifiquem soluções diferenciadas, devidamente motivadas de acordo com o interesse público. Não se pode ignorar que determinadas situações excepcionais podem exigir a recusa da Administração Pública de nomear novos servidores. Para justificar o excepcionalíssimo não cumprimento do dever de nomeação por parte da Administração Pública, é necessário que a situação justificadora seja dotada das seguintes características: a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores de uma situação excepcional devem ser necessariamente posteriores à publicação do edital do certame público; b) Imprevisibilidade: a situação deve ser determinada por circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis à época da publicação do edital; c) Gravidade: os acontecimentos extraordinários e imprevisíveis devem ser extremamente graves, implicando onerosidade excessiva, dificuldade ou mesmo impossibilidade de cumprimento efetivo das regras do edital; d) Necessidade: a solução drástica e excepcional de não cumprimento do dever de nomeação deve ser extremamente necessária, de forma que a Administração somente pode adotar tal medida quando absolutamente não existirem outros meios menos gravosos para lidar com a situação excepcional e imprevisível. De toda forma, a recusa de nomear candidato aprovado dentro do número de vagas deve ser devidamente motivada e, dessa forma, passível de controle pelo Poder Judiciário.
IV. FORÇA NORMATIVA DO PRINCÍPIO DO CONCURSO PÚBLICO. Esse entendimento, na medida em que atesta a existência de um direito subjetivo à nomeação, reconhece e preserva da melhor forma a força normativa do princípio do concurso público, que vincula diretamente a Administração. É preciso reconhecer que a efetividade da exigência constitucional do concurso público, como uma incomensurável conquista da cidadania no Brasil, permanece condicionada à observância, pelo Poder Público, de normas de organização e procedimento e, principalmente, de garantias fundamentais que possibilitem o seu pleno exercício pelos cidadãos. O reconhecimento de um direito subjetivo à nomeação deve passar a impor limites à atuação da Administração Pública e dela exigir o estrito cumprimento das normas que regem os certames, com especial observância dos deveres de boa-fé e incondicional respeito à confiança dos cidadãos. O princípio constitucional do concurso público é fortalecido quando o Poder Público assegura e observa as garantias fundamentais que viabilizam a efetividade desse princípio. Ao lado das garantias de publicidade, isonomia, transparência, impessoalidade, entre outras, o direito à nomeação representa também uma garantia fundamental da plena efetividade do princípio do concurso público.
V. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
(RE 598099, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2011, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-189 DIVULG 30-09-2011 PUBLIC 03-10-2011 EMENT VOL-02599-03 PP-00314 RTJ VOL-00222-01 PP-00521)
Não se pode deixar de indicar que esse direito subjetivo conferido àqueles aprovados dentro do número de vagas do edital pode se estender, de certa forma, aos aprovados fora delas. Explica-se: na eventualidade de desistência por parte de candidato melhor classificado, aquele que, em decorrência disso, passar a figurar dentro do número de vagas previstas no edital terá direito subjetivo a ser nomeado. Prescrevem os Tribunais superiores que esse acontecimento se mostra suficiente para convolar a mera expectativa de direito anteriormente existente em direito líquido e certo. Essa conclusão, diga-se, mostra-se justa e consentânea com a boa-fé e a segurança jurídica.
Nota-se que esse posicionamento foi assumido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo regimental em Recurso Extraordinário 1.058.317/MG, julgado em 01 de dezembro de 2017, bem como pelo Superior Tribunal de Justiça em decisões proferidas nos Recursos Ordinários em Mandados de Segurança 52.251/PR e 53.506/DF, julgados, respectivamente, em 05 e 26 de setembro de 2017.
Importa ressalvar, no entanto, que, caso a desistência do aprovado dentro das vagas ocorra após o prazo de validade do certame, não haverá falar em advento de direito subjetivo àquele que, em razão da desistência de outrem, passar a compor o quantitativo de vagas ofertado no edital. Decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 63.676/RS, julgado em 22 de março de 2021, que não há previsão legal nesse sentido.
Acompanhando a natural evolução da sociedade e a complexidade das relações sociais que lhe é intrínseca, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal avançou quando o Plenário proferiu decisão, em 09 de dezembro de 2015, no Recurso Extraordinário 837.311/PI, sob a sistemática da repercussão geral. Nela, os Ministros elencaram hipóteses nas quais, atualmente, exsurge o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado em concurso público:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. TEMA 784 DO PLENÁRIO VIRTUAL. CONTROVÉRSIA SOBRE O DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO DE CANDIDATOS APROVADOS ALÉM DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO NO CASO DE SURGIMENTO DE NOVAS VAGAS DURANTE O PRAZO DE VALIDADE DO CERTAME. MERA EXPECTATIVA DE DIREITO À NOMEAÇÃO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. IN CASU, A ABERTURA DE NOVO CONCURSO PÚBLICO FOI ACOMPANHADA DA DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DA NECESSIDADE PREMENTE E INADIÁVEL DE PROVIMENTO DOS CARGOS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 37, IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988. ARBÍTRIO. PRETERIÇÃO. CONVOLAÇÃO EXCEPCIONAL DA MERA EXPECTATIVA EM DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA, BOA-FÉ, MORALIDADE, IMPESSOALIDADE E DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. FORÇA NORMATIVA DO CONCURSO PÚBLICO. INTERESSE DA SOCIEDADE. RESPEITO À ORDEM DE APROVAÇÃO. ACÓRDÃO RECORRIDO EM SINTONIA COM A TESE ORA DELIMITADA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. O postulado do concurso público traduz-se na necessidade essencial de o Estado conferir efetividade a diversos princípios constitucionais, corolários do merit system, dentre eles o de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (CRFB/88, art. 5º, caput).
2. O edital do concurso com número específico de vagas, uma vez publicado, faz exsurgir um dever de nomeação para a própria Administração e um direito à nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas. Precedente do Plenário: RE 598.099 - RG, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 03-10-2011.
3. O Estado Democrático de Direito republicano impõe à Administração Pública que exerça sua discricionariedade entrincheirada não, apenas, pela sua avaliação unilateral a respeito da conveniência e oportunidade de um ato, mas, sobretudo, pelos direitos fundamentais e demais normas constitucionais em um ambiente de perene diálogo com a sociedade.
4. O Poder Judiciário não deve atuar como “Administrador Positivo”, de modo a aniquilar o espaço decisório de titularidade do administrador para decidir sobre o que é melhor para a Administração: se a convocação dos últimos colocados de concurso público na validade ou a dos primeiros aprovados em um novo concurso. Essa escolha é legítima e, ressalvadas as hipóteses de abuso, não encontra obstáculo em qualquer preceito constitucional.
5. Consectariamente, é cediço que a Administração Pública possui discricionariedade para, observadas as normas constitucionais, prover as vagas da maneira que melhor convier para o interesse da coletividade, como verbi gratia, ocorre quando, em função de razões orçamentárias, os cargos vagos só possam ser providos em um futuro distante, ou, até mesmo, que sejam extintos, na hipótese de restar caracterizado que não mais serão necessários.
6. A publicação de novo edital de concurso público ou o surgimento de novas vagas durante a validade de outro anteriormente realizado não caracteriza, por si só, a necessidade de provimento imediato dos cargos. É que, a despeito da vacância dos cargos e da publicação do novo edital durante a validade do concurso, podem surgir circunstâncias e legítimas razões de interesse público que justifiquem a inocorrência da nomeação no curto prazo, de modo a obstaculizar eventual pretensão de reconhecimento do direito subjetivo à nomeação dos aprovados em colocação além do número de vagas. Nesse contexto, a Administração Pública detém a prerrogativa de realizar a escolha entre a prorrogação de um concurso público que esteja na validade ou a realização de novo certame.
7. A tese objetiva assentada em sede desta repercussão geral é a de que o surgimento de novas vagas ou a abertura de novo concurso para o mesmo cargo, durante o prazo de validade do certame anterior, não gera automaticamente o direito à nomeação dos candidatos aprovados fora das vagas previstas no edital, ressalvadas as hipóteses de preterição arbitrária e imotivada por parte da administração, caracterizadas por comportamento tácito ou expresso do Poder Público capaz de revelar a inequívoca necessidade de nomeação do aprovado durante o período de validade do certame, a ser demonstrada de forma cabal pelo candidato. Assim, a discricionariedade da Administração quanto à convocação de
aprovados em concurso público fica reduzida ao patamar zero (Ermessensreduzierung auf Null), fazendo exsurgir o direito subjetivo à nomeação, verbi gratia, nas seguintes hipóteses excepcionais:
i) Quando a aprovação ocorrer dentro do número de vagas dentro do edital (RE 598.099);
ii) Quando houver preterição na nomeação por não observância da ordem de classificação (Súmula 15 do STF);
iii) Quando surgirem novas vagas, ou for aberto novo concurso durante a validade do certame anterior, e ocorrer a preterição de candidatos aprovados fora das vagas de forma arbitrária e imotivada por parte da administração nos termos acima.
8. In casu, reconhece-se, excepcionalmente, o direito subjetivo à nomeação aos candidatos devidamente aprovados no concurso público, pois houve, dentro da validade do processo seletivo e, também, logo após expirado o referido prazo, manifestações inequívocas da Administração piauiense acerca da existência de vagas e, sobretudo, da necessidade de chamamento de novos Defensores Públicos para o Estado.
9. Recurso Extraordinário a que se nega provimento.
(RE 837311, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 09/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-072 DIVULG 15-04-2016 PUBLIC 18-04-2016)
Destaca-se que se utilizou expressamente a locução latina verbi gratia, ou seja, não se trata de um rol taxativo de situações, mas sim exemplificativo.
Embora as duas primeiras hipóteses – a saber, aprovação dentro do número de vagas previsto no edital e ocorrência de preterição por inobservância da ordem de classificação –, já estivessem pacificadas na jurisprudência, pelo menos em linhas gerais, considera-se acertada a decisão da Corte de fixá-las na ementa do referido acórdão, em conjunto com a terceira hipótese, para fins de adequada clareza e condensação das decisões mais relevantes já proferidas pelo Tribunal no tocante ao assunto em estudo.
Quanto ao caso de preterição de candidato aprovado, coube ao Superior Tribunal de Justiça dirimir dúvida ainda existente ao estabelecer, no Recurso Especial 1.643.048/GO, julgado em 05 de março de 2020, que, nos casos de preterição de candidato aprovado em concurso público, o termo inicial do prazo prescricional quinquenal recai na data em que foi nomeado outro servidor em seu lugar, caracterizando, dessa forma, a abominável preterição.
Em relação à terceira hipótese, relacionada ao surgimento de novas vagas e abertura de novo concurso durante o prazo de validade do anterior, caso em que se exige, ainda, a ocorrência de preterição de candidatos com arbitrariedade e de forma imotivada por parte da Administração, hão de ser realizadas algumas considerações.
A primeira conclusão a que se chega é a de que o simples advento de novos cargos vagos e a abertura de novo certame não são suficientes, por si sós, a ensejarem aos candidatos aprovados fora das vagas o direito a serem nomeados. Ressalta-se que tal inferência se mantém ainda que o novo certame seja deflagrado durante o prazo de validade do primeiro concurso público, pois, mesmo nesse caso, deverá prevalecer a discricionariedade da Administração, diante da inexistência de situação que acarrete, aos candidatos aprovados, direito subjetivo à nomeação.
Circunstância diferente, contudo, ocorre na hipótese em que, somada à existência de cargos vagos, há uma demonstração inequívoca de que a Administração necessita provê-los. Segundo decidiu o Supremo Tribunal Federal, consolidando entendimento que já vinha sendo explanado, isso se revela nos casos em que a Administração age com arbitrariedade ou pretere candidato melhor classificado em benefício de outro.
No caso concreto tratado no Recurso Extraordinário 837.311/PI, referente a concurso realizado para o cargo de Defensor Público do Estado do Piauí, houve a publicação de edital de novo concurso público ainda durante o prazo de validade do primeiro concurso. O Supremo entendeu que, somado a isso, restou caracterizada a necessidade de provimento dos cargos, “diante dessa sequência de circunstâncias: comprovação da existência de vagas de Defensor Público, a declaração do Defensor Público-Geral da necessidade de novo concurso e a Resolução que, ainda que exarada logo após o término da validade do concurso, já previa a necessidade, desde 2007, desses novos defensores”. Assim, reconheceu-se o direito subjetivo dos candidatos aprovados a serem nomeados, em que pese a sua classificação tenha se dado além das vagas previstas no edital, tendo em vista a conjunção de fatores que terminou por delinear a necessidade de provimento dos cargos vagos.
Cuida-se de interessante decisão e importante passo dado na presente temática. Percebe-se, cada vez mais, que a jurisprudência e a doutrina sinalizam no sentido de ser imprescindível que a discricionariedade do Poder Público seja exercida em consonância com os valores e princípios que regem o ordenamento jurídico, preservando os direitos fundamentais dos administrados.
Nos casos mencionados, reconhecer o direito subjetivo do cidadão em face da Administração não a enfraquece; pelo contrário, significa, na verdade, conferir uma maior legitimidade às condutas por ela adotadas.
Cabe salientar que a aludida preterição arbitrária e imotivada por parte da Administração Pública deve ser demonstrada, de forma inequívoca, pelo interessado, quer dizer, pelo candidato aprovado fora do número de vagas e que almeja a sua nomeação. Por todas, a decisão exarada pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.478/DF, julgado em 9 de agosto de 2016.
Torna-se interessante aduzir que, conquanto o Supremo Tribunal Federal não tenha se reportado à necessidade de inexistência de restrição orçamentária, assim o fez o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir o Mandado de Segurança 22.813/DF, julgado em 13 de junho de 2018.
Verifica-se, por fim, que, em qualquer cenário de nomeação tardia de candidato aprovado em concurso público, por força de decisão judicial, não existirá direito às promoções e progressões funcionais que o candidato teria alcançado se a sua nomeação houvesse ocorrido na época acertada. Trata-se de relevante posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, sob a sistemática da repercussão geral, no Recurso Extraordinário 629.392/MT, julgado em 8 de junho de 2017.
6. O DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO EM FACE DO ADVENTO DE SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS
É bastante perceptível que a jurisprudência dos Tribunais superiores outorga uma posição de inegável primazia ao direito subjetivo à nomeação, conforme se demonstrou.
No entanto, impende conferir o merecido destaque às situações excepcionalíssimas as quais, no entender do Supremo Tribunal Federal, justificam a recusa da nomeação, pela Administração Pública, de candidatos aprovados em concurso público, ainda que detenham direito subjetivo à nomeação. Essa noção, evidentemente, é imprescindível para o estudo da temática em análise.
O julgado que permanece atualmente como paradigma a ser adotado é o já anteriormente referenciado Recurso Extraordinário 598.099/MS. Nele, proclamou-se que, para que uma situação seja qualificada como excepcional a ponto de refrear o direito subjetivo à nomeação, é necessário que seja dotada, cumulativamente, das seguintes características: superveniência, imprevisibilidade, gravidade e necessidade.
Sublinhou-se que tais situações necessitam ser devidamente motivadas pela Administração, possibilitando, dessa maneira, o adequado controle judicial.
A citada decisão vem sendo invocada igualmente pelo Superior Tribunal de Justiça, como ocorreu no julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 57.565/SP, em 20 de agosto de 2018, cuja ementa restou assim lavrada:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 3/STJ. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO CLASSIFICADO DENTRO DO NÚMERO DE VAGAS OFERTADAS INICIALMENTE. RECUSA AO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO. FALTA DE ADEQUAÇÃO ÀS CONDICIONANTES PREVISTAS NO RE 598.099/MS.
1. A recusa da Administração Pública ao direito público subjetivo de nomeação em favor do candidato classificado dentro do número de vagas ofertadas no edital de concurso público somente se justifica se obedecidas integralmente as condicionantes previstas no RE 598.099/MS, que constitui o marco jurisprudencial regulatório desse direito.
2. Dentre essas condicionantes, deve haver a comprovação pela Administração Pública de que não havia outros meios menos gravosos e extremos para lidar com a situação de excepcionalidade e que, portanto, a recusa constituiu a "ultima ratio". 3. Recurso ordinário em mandado de segurança provido.
(RMS 57.565/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma, DJe 20.08.2018)
Na trilha do que vêm assentando os Tribunais superiores, então, conclui-se que meras vicissitudes ou intercorrências naturais às rotinas administrativas não se mostram aptas a evitar a nomeação à qual é obrigada a Administração Pública. Longe disso, pois, não obstante seja aceita a possibilidade de determinadas circunstâncias justificarem a relatada negativa por parte do Poder Público, deve-se ter em mente que estas são, nos próprios dizeres do Supremo Tribunal Federal, acompanhado pelo Superior Tribunal de Justiça, situações “excepcionalíssimas”.
Inclusive, observou o Ministro Mauro Campbell Marques, Relator do julgado colacionado acima, que, “como ultima ratio, a recusa à nomeação deveria ser justificada com a alegação e comprovação de adoção das providências previstas no art. 169, §§ 3.º e 4.º, da Constituição da República, do que o recorrido não se desincumbiu do ônus de provar”. Isso demonstra, ainda mais, o quão significativa, realmente, deve ser a justificativa da Administração para que ampare a esquiva da obrigação de nomear.
Nesse sentido, já por ocasião do julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 66.316/SP, em 19 de outubro de 2021, o Superior Tribunal de Justiça evidenciou que sequer situações como pandemia, crise econômica e limite prudencial atingido para despesas com pessoal são suficientes, por si sós, para que seja negada a nomeação de candidato aprovado detentor de direito à nomeação.
Denota-se, indiscutivelmente, que as determinações dos Tribunais caminham na direção de sobrelevar de tal forma o direito subjetivo à nomeação, que este deve ser resguardado até o limite em que, efetivamente, não existam outras formas menos extremas para enfrentar o quadro excepcional que despontou para o Poder Público. Tal quadro, reitera-se, deve ser, cumulativa e invariavelmente, imprevisível, superveniente, grave e necessário.
7. A SUPERVENIÊNCIA DE LEI QUE EXTINGUE OS CARGOS OFERTADOS EM EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO
Tendo em vista as discussões anteriormente levantadas, as quais já vêm sendo decididas pelos Tribunais, impõe-se a seguinte indagação: na hipótese de ser realizado concurso público para o provimento de determinados cargos, pode a Administração Pública, com esteio em sua discricionariedade, extinguir aqueles mesmos cargos, mediante lei superveniente ao certame?
O Supremo Tribunal Federal ainda não enfrentou problema especificamente desse jaez, tendo apenas tangenciado o assunto em algumas decisões, com ligeiras menções, sem aprofundamentos, já que esse tópico não compunha o objeto dos processos em apreciação. No entanto, reconheceu a existência de repercussão geral desse tema, no Recurso Extraordinário 1.316.010/PA, o qual se encontra aguardando o julgamento de mérito.
Conquanto ainda não exista um posicionamento pacificado na jurisprudência, é possível tecer algumas considerações a respeito dos elementos que devem ser levados em consideração, bem como dos parâmetros a serem avaliados, a partir das questões já solucionadas pelos Tribunais superiores.
7.1. Argumentos favoráveis ao Poder Público
Inicialmente, cumpre rememorar que, para parte representativa da doutrina, admite-se, como forte alicerce do Direito Administrativo, o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, o qual deve inspirar simplesmente toda a atuação administrativa. Em outras palavras, aquilo que se compreende como interesse público deve prevalecer em face de qualquer interesse privado, em hipóteses nas quais se entenda haver uma contraposição entre ambos.
Naturalmente, deduz-se que, em uma situação de conflito entre o que ordena uma lei superveniente a um concurso público e o direito subjetivo à nomeação de candidato naquele aprovado, deve prevalecer a disposição legal. Isso porque a edição de lei nada mais é do que uma das manifestações possíveis da supremacia do interesse público, razão pela qual a ela deve ser conferida a primazia que lhe é inerente, em detrimento daquelas pessoas que eventualmente possuíam direito subjetivo a serem nomeadas.
Ora, é plenamente possível que, após a realização de um concurso público para o preenchimento de determinados cargos, advenham motivos que afastem o interesse público anteriormente existente quanto ao provimento daqueles mesmos cargos.
Prosseguindo na linha desse argumento, não há lógica, portanto, em engessar a atuação do Poder Público, obrigando-o à admissão de novos servidores, se isso significa ir de encontro ao que se concebe como interesse público. Pode-se dizer até mesmo que se estaria diante de uma espécie de autoflagelo por parte da Administração, em se considerando que ela exerceria um comportamento contrário aos seus interesses e, por conseguinte, aos interesses da própria coletividade.
Sob outro ponto de vista, mas ainda no mesmo sentido, entende-se que é imperioso se resguardar à Administração Pública o poder-dever de se conformar e de se estruturar da forma que seja mais consentânea com o interesse público, já que visa a alcançá-lo. Isso remete à discricionariedade que amplamente permeia a atividade administrativa e que com ela se compatibiliza.
É nessa discricionariedade, sobretudo, que se fundamenta a Administração Pública ao se defrontar com situações complexas cuja solução não foi antevista pelo legislador e que exigem a adesão a uma ou a outra opção, dentro de uma certa margem de liberdade da qual se dispõe.
Como já explanado, a discricionariedade atribuída à Administração Pública não pode ser ilimitada; não obstante, igualmente não pode ser mitigada a ponto de obstruir a atuação administrativa, tolhendo excessivamente as alternativas que se colocariam à disposição do gestor público. Pelo contrário, deve-se, sim, prestigiar a reserva de administração, permitindo-se que a Administração disponha dos caminhos que avalie como mais apropriados à consecução das suas finalidades.
Ademais, é cediço que compete ao administrador o planejamento das funções administrativas, de forma a conquistar uma maior racionalização no tocante à prestação dos serviços públicos. Afinal, a modernização da Administração Pública constitui uma finalidade visada tanto por aqueles que a integram, quanto pelos administrados, a quem os serviços são prestados.
Um dos pilares em que se apoia a almejada realização de um planejamento administrativo acertado é a satisfatória gestão dos cofres públicos, a qual, na realidade, é inegavelmente imprescindível. Deve-se buscar sempre a sua otimização, mediante contínuas tentativas de aprimoramento, a fim de que o ente seja capaz de fazer face às múltiplas demandas sociais que lhe são impostas. Afinal, como se afirma costumeiramente, enquanto os recursos públicos são, por sua natureza, sempre escassos, as necessidades sociais, por outro lado, são ilimitadas.
Isso representa um dos maiores desafios, senão o maior, com que se depara o administrador público: atingir o ponto de equilíbrio mais adequado entre a satisfação das necessidades sociais, de um lado, e a atenção ao montante das despesas públicas, de outro, ciente da manifesta improbabilidade de se alcançar o patamar que se afiguraria como ideal.
Divisa-se, nesse contexto, o chamado princípio ou cláusula da reserva do possível. Afirma Bernardo Gonçalves (2018, p. 746):
A chamada cláusula da “reserva do possível” (Der Vorbehalt dês Moglichen), que começou a ser alegada a partir da década de 1970, é criação do Tribunal Constitucional alemão e compreende a possibilidade material (financeira) para prestação dos direitos sociais por parte do Estado, uma vez que tais prestações positivas são dependentes de recursos presentes nos cofres públicos. A partir daí, alguns autores vão defender que as aplicações desses recursos e, consequentemente, a implementação de medidas concretizadoras de direitos sociais seria uma questão restrita e limitada à esfera de discricionariedade das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas nos planos de políticas públicas destes e conforme as previsões orçamentárias.
Existem, assim, limitações diversas a condicionar as escolhas administrativas, as quais terminamente influenciam as condutas a serem empreendidas pelo Poder Público. Uma das mais significativas dessas limitações consiste na necessidade de previsão orçamentária para a execução de gastos públicos, o que se relaciona diretamente à nomeação de pessoas aprovadas em concursos públicos.
Com efeito, a própria Constituição Federal dispõe, em seu art. 169, § 1º:
§ 1º A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas: (Renumerado do parágrafo único, pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (Vide Emenda constitucional nº 106, de 2020)
I - se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II - se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
À vista disso, torna-se evidente que, para a admissão de pessoal, é indispensável a prévia dotação orçamentária, em medida que seja bastante para atender às respectivas despesas e suas projeções, bem como a autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias.
Além de tais requisitos, o próprio caput do exposto art. 169 da Constituição Federal exige que a despesa com pessoal ativo e inativo e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não pode exceder os limites estabelecidos em lei complementar. Em obediência a esse dispositivo, prescreve a Lei Complementar nº 101/2000, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, em seus arts. 19 e 20, os percentuais da receita corrente líquida que cada ente federativo não poderá exceder no que concerne à despesa total com pessoal, havendo, ainda, percentuais específicos para o Poder Executivo, o Ministério Público, o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, incluído o respectivo Tribunal de Contas.
Desse modo, como é possível depreender, a realização de despesas com pessoal pressupõe o atendimento a uma série de formalidades e o preenchimento de diversos requisitos. Vale assinalar que as exigências aqui elencadas representam tão somente uma pequena amostra de todas aquelas às quais deve se submeter a Administração Pública.
Assim, verifica-se, sob a ótica administrativa, que não apenas o interesse público primário, mas igualmente o interesse público secundário não podem ser desprezados em função de interesses meramente individuais. Os recursos públicos devem ser alocados de forma racional e planejada, evitando-se fatores que possam ocasionar a desorganização da atividade administrativa e o desequilíbrio do orçamento, sob pena de ser prejudicada até mesmo a continuidade das próprias políticas públicas a serem implementadas.
7.2. Argumentos favoráveis ao detentor do direito à nomeação
Reconhece-se que, com amparo na discricionariedade administrativa, o gestor público, de fato, detém um amplo espaço de autonomia, o que engloba a chamada reserva de administração. Com efeito, na esteira do princípio da separação dos poderes, compreende-se que um órgão ou entidade não pode se imiscuir no núcleo essencial da competência de outro, razão pela qual, em princípio, o órgão realizador do concurso público possui liberdade para dispor da nomeação dos candidatos aprovados conforme melhor lhe aprouver.
Entretanto, ao lado dos tradicionais critérios de conveniência e oportunidade, os quais tradicionalmente orientam o exercício da discricionariedade administrativa, devem caminhar também razões de justiça e de equidade. Deve-se, portanto, analisar se o comportamento do Poder Público, naquele contexto, mostra-se justo ou, pelo menos, dotado de boa-fé objetiva, já que é indeterminada a acepção de justiça.
Afinal, sabe-se que a boa-fé deve nortear todos os comportamentos estatais, o que inclui as ações empreendidas ao longo de um processo seletivo realizado pela Administração. Assim, é necessário se conduzir pela boa-fé objetiva até mesmo no que diz respeito à previsão das vagas que deverão ser preenchidas a partir daquele certame, não podendo existir qualquer intento de deslealdade administrativa quanto a isso.
Não custa lembrar que as regras do edital de um certame público obrigam não somente os candidatos que se submetem à seleção, mas igualmente impõem determinadas condutas ao ente responsável pela sua realização, vinculando-o em certas questões.
Observa-se, realmente, que a execução de um concurso público escorreito adstringe a Administração Pública à observância de regras de organização previamente estabelecidas, seja na Constituição Federal, na lei ou no edital, de modo a resguardar garantias fundamentais dos cidadãos e, ainda, preservar a efetividade da grande conquista democrática que é o postulado do concurso público.
Apreende-se que esse respeito essencial que deve existir aos direitos fundamentais informa a noção que atualmente se tem acerca da discricionariedade do Poder Público, de modo que a direciona e a limita. Desse modo, ainda que na sua atuação discricionária, a Administração deve ser deferente aos direitos fundamentais, prestigiando, em especial, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Para tanto, faz-se primordial que se mantenha a devida atenção ao princípio da segurança jurídica, em seu aspecto pertinente à proteção da confiança legítima, já que, sob o ponto de vista do cidadão, é criada uma justa expectativa, ante um comportamento anterior da Administração. No caso, entende-se como comportamento anterior da Administração principalmente aquele exposto nas regras contidas no edital do concurso público.
Além disso, obviamente se presume que o Poder Público, antes de deflagrar um concurso público, conhecia apropriadamente a sua realidade e considerou, a fundo, todas as suas condições fáticas possíveis. É forçoso inferir que o ente necessariamente possuía um planejamento a médio e a longo prazo, pois, do contrário, estar-se-ia diante de inaceitável irresponsabilidade do respectivo governante, em clara afronta a várias regras e princípios do ordenamento jurídico, entre os quais se destaca o princípio republicano.
O arremate dessa questão, sob a perspectiva que se vem destrinchando, vem da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Fato é que as decisões desses Tribunais apontam que a recusa à nomeação daquele que possui direito subjetivo a ser nomeado deve ser a ultima ratio. Consequentemente, é nessa qualidade de última alternativa a ser exercida que a refutação ao ato de nomeação deve ser considerada.
Tanto é assim que, segundo os Tribunais superiores, para que se legitime a negativa de nomeação, é necessária a existência de um cenário cujas características a serem identificadas – a saber, superveniência, imprevisibilidade, gravidade e necessidade – sejam inequívocas. Como visto, não são aceitas para tal finalidade sequer conjunções drásticas, como a eclosão de uma pandemia, e muito menos situações mais comuns, como o atingimento do limite prudencial para despesas com pessoal.
É crucial ressaltar que a imprevisibilidade em questão não se confunde com situações que resultam da desorganização ou da imprevidência administrativas, sob pena de se prestigiar o gestor negligente. Afinal, é lógico que uma gestão financeira desastrada, por exemplo, facilmente conduzirá a Administração a um estado de dificuldades de toda ordem.
Nesse encadeamento de ideias, a ilação que se alcança não pode ser outra senão a de que lei posterior à realização de concurso público para determinados cargos não pode extingui-los ou, pelo menos, se chegar a extingui-los, não poderá atingir o direito subjetivo à nomeação daqueles que o possuem.
Afirmar em sentido contrário significaria prestigiar comportamentos contraditórios da Administração e, portanto, vedados, por afrontarem sobretudo a boa-fé, a segurança jurídica e a dignidade da pessoa humana, vetores que, impreterivelmente, devem guiar as posturas administrativas.
Ora, tem-se, então, que sequer uma pandemia, quadro cuja gravidade é irrefutável, possui densidade suficiente a legitimar o descumprimento do dever de nomeação pela Administração Pública. Logicamente, com mais razão ainda, o simples advento de uma lei não poderia ter essa aptidão, tão somente em virtude de militar em direção oposta àquela seguida pela Administração no momento em que ponderou pela realização de um concurso público.
Tal circunstância, na verdade, está a indicar mais uma ausência de planejamento, ou, no mínimo, de visão a longo prazo, do que o surgimento de situação grave e inesperada. É difícil acatar que, logo em seguida à consumação de um processo seletivo, o interesse público antes havido quanto ao preenchimento daquelas vagas simplesmente deixou de existir.
Importa registrar que a simples edição de uma lei, por si, não cumpre todas as características enumeradas pela jurisprudência as quais, conjuntamente, permitem, de forma excepcionalíssima, sobrepujar o direito subjetivo à nomeação. Em que pese superveniente ao concurso, a publicação de lei não se revela um acontecimento extraordinário e imprevisível, extremamente grave e necessário.
Não há fundamento jurídico, pois, para se frustrar o direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em razão da extinção do respectivo cargo por lei superveniente à realização do concurso público.
8. CONCLUSÃO
A análise do assunto em questão, inevitavelmente, deve se debruçar sobre o direito subjetivo dos candidatos aprovados à nomeação, de um lado, e a discricionariedade administrativa, de outro, à luz dos princípios que norteiam a Administração Pública e, ainda, a possibilidade de controle judicial da atuação do Poder Público.
Em princípio, é verdade que a Administração Pública, atuando no âmbito da reserva de administração, possui liberdade quanto à conformação da atividade administrativa. Em regra, pois, não concerne ao Poder Judiciário se imiscuir no mérito dos atos administrativos, tampouco na organização das atribuições e no desempenho das funções do Poder Público.
Ocorre que tal discricionariedade não se faz absoluta, devendo ser pautada em critérios outros além dos simples juízos de conveniência e oportunidade, como classicamente se coloca.
O zelo que a Administração Pública deve manter em relação ao interesse público, basilar para o regime jurídico-administrativo, assume, atualmente, uma conotação que se aproxima do fomento de interesses privados.
É claro que a Administração não pode se pautar apenas pelo que se mostra ou não mais conveniente aos particulares que se submetem aos concursos públicos. No entanto, isso não pode significar, por outro lado, que ela detém permissão absoluta para atuar com arbitrariedade, em flagrante desrespeito aos cidadãos que se submetem aos certames.
Embora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, acompanhada pela do Superior Tribunal de Justiça, admita que, em situações excepcionalíssimas, a Administração Pública seja desobrigada do dever de nomeação que lhe é imposto, resta clara a necessidade de se cuidarem de conjunturas incontestavelmente gravíssimas.
Assim, alterações corriqueiras das condições fáticas, as quais muitas vezes são até mesmo esperadas, não se mostram aptas a embasar o afastamento do direito subjetivo à nomeação.
Deve-se sempre ter em mente que a recusa da nomeação deve ser medida de ultima ratio a ser adotada pela Administração Pública, isto é, quando, além de cumpridos os requisitos elencados pela jurisprudência, realmente não houver qualquer outra alternativa possível no caso concreto.
Por conseguinte, aguarda-se que o Supremo Tribunal Federal defina as balizas específicas a serem seguidas em relação à possibilidade de afastamento do direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado, tendo em vista a superveniência de lei que extingue o respectivo cargo. Uma alternativa possível seria viabilizar a extinção do cargo com efeitos prospectivos, mantendo-se, assim, aqueles existentes que motivaram a realização do concurso público, com a consequente realização da nomeação nos termos anteriormente planejados.
Indiscutível é que a aferição, a partir do caminho que vem sendo trilhado pelas decisões proferidas, de que deverá haver respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos e atenção à boa-fé objetiva e à segurança jurídica, uma vez que a discricionariedade administrativa não pode ceder espaço a arbitrariedades, consideradas, de todo modo, as circunstâncias verificadas no caso concreto.
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
Pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Oficiala de Justiça Avaliadora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, Suzana Maurício. A superveniência de lei que extingue cargos públicos: o direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em concurso público em face da discricionariedade da Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 fev 2024, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58125/a-supervenincia-de-lei-que-extingue-cargos-pblicos-o-direito-subjetivo-nomeao-de-candidato-aprovado-em-concurso-pblico-em-face-da-discricionariedade-da-administrao-pblica. Acesso em: 26 dez 2024.
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