Resumo – o processo administrativo é o instrumento estatal para desempenho da função administrativa e encontra-se expressamente previsto no art. 5º, LV e LXXVIII, da CR/88. As agências reguladoras possuem atribuição para instauração de processo administrativo disciplinar tendente a verificar a ocorrência de infração às normas do respectivo serviço regulado, quando praticadas essas infrações por agentes privados exploradores de serviço público em que atua a autarquia. Questiona-se a constitucionalidade de lei que pretenda determinar o sigilo desses processos administrativos, à luz dos valores constitucionais que regulam os serviços públicos, bem como de acordo com recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave – Direito Constitucional. Direito Administrativo. Autarquias. Agência Reguladora. Serviço Público. Concessionária de serviço Público. Processo Administrativo Disciplinar. Sigilo. Publicidade. Inconstitucionalidade.
Sumário – Introdução. 1. Processo Administrativo. 1.1 Do conceito e competência para o processo administrativo. 1.2 Espécies de processos administrativos. 1.3 Princípios reguladores do processo administrativo. 1.3.1 Princípio do informalismo. 1.3.2 Princípio da oficialidade. 1.3.3 Princípio da publicidade 1.3.4 Princípios do contraditório e da ampla defesa. 2. Agências reguladoras. 2.1 Conceito, natureza jurídica e características básicas. 3. Processo administrativo disciplinar sigiloso previsto na Lei 10.233/01. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo procura trazer a lume a existência de processos administrativos disciplinares sigilosos, bem como colacionar a recente compreensão do Supremo Tribunal Federal a respeito do assunto. Entremente, procura ainda esclarecer certos conceitos estruturais para a compreensão do tema em análise, como a natureza jurídica e limites dos institutos questionados junto ao Tribunal Constitucional. Fato é que a existência de um processo sancionador sigiloso, qualquer que seja sua natureza, administrativo ou judicial, após mais de 30 anos da redemocratização do Estado Brasileiro, causa certa estranheza. O exercício do poder legislativo, ao fim e ao cabo, não pode ser pautado pela inespecificidade, sob pena de violação aos direitos e garantias individuais.
O artigo é desenvolvido pelo método hipotético-dedutivo. Não é relevante para seu desenvolvimento a pesquisa com base em casos reais eis que o tema possui como referência controle abstrato de constitucionalidade, modalidade de controle pautado pela objetividade. Assim, pretende o pesquisador eleger um conjunto de proposições hipotéticas, as quais acredita serem viáveis e adequadas para analisar o objeto da pesquisa.
1 PROCESSO ADMINISTRATIVO
1.1 DO CONCEITO E COMPETÊNCIA PARA O PROCESSO ADMINISTRATIVO
Alguns autores consideram inadequada a expressão “processo administrativo”, pois se entende como processo somente o processo judicial. Em um conceito mais amplo, contudo, processo seria o instrumento usado pelo Estado para desempenhar suas diversas funções, sendo perfeitamente possível falar em “processo administrativo”, “processo legislativo” e “processo jurisdicional”. O processo administrativo, portanto, é o instrumento estatal para desempenho da função administrativa e encontra-se expressamente referido no art. 5º, LV e LXXVIII, da CR/88.[1]
Art. 5° - LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
A CR/88 concentrou no âmbito federal – da União – a maior parte das competências legislativas. Em relação ao processo administrativo, há o entendimento de que cada ente, no exercício de sua autonomia, pode produzir suas próprias leis sobre seus processos administrativos, na medida em que todos eles possuem função administrativa. A União não tem em relação ao processo administrativo competência privativa.[2]
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
Vale ressaltar que há pequena divergência doutrinária acerca desse assunto. Processo administrativo é, em última análise, instituto jurídico com dupla natureza. Por um lado, envolve elementos fundamentais de direito processual, matéria de competência privativa da União, enquanto que por outro lado envolve matéria de direito administrativo, matéria de competência concorrente entre os Estados, Distrito Federal e União.
Contudo, pautado no elemento preponderante do instituto (direito administrativo) e na unidade de jurisdição, pode-se concluir que processo administrativo é processo, porém no exercício atípica da função judiciária, afastando-o da competência legislativa privativa da União.
1.2 ESPÉCIES DE PROCESSOS ADMINISTRATIVOS
Para cada tipo de segmento de atividade há espécies de processos administrativos que podem adotar procedimentos diferentes. Por exemplo o processo administrativo disciplinar é usado para apurar a responsabilidade disciplinar de servidores; já o processo administrativo tributário é usado para correção de lançamento tributário, dentre outros objetos relacionados à atividade fiscal; por sua vez o processo administrativo de outorga é usado para analisar o deferimento ou não de licenças, autorizações etc.
Há, no âmbito da Administração, uma processualidade intensa em virtude do que se entende por processo inominado. Qualquer lide na Administração gera um processo administrativo ainda que não haja previsão legal acerca dele. Requerimentos veiculados no âmbito da Administração Pública acabam por receber tratamento de processo físico, embora nem sempre fosse necessária sua autuação. A tendência hoje é aplicar à Administração o mesmo que ocorre com o processo judicial, criando classes organizadas dessas espécies.
A especificação decorre não apenas da necessidade de impor eficiência ao trabalho da administração pública como também do reconhecimento do Direito Administrativo como área do conhecimento jurídico autônoma, com seus conceitos e tecnologias próprias.
1.3 PRINCÍPIOS REGULADORES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO
Inicialmente cumpre esclarecer que os princípios orientadores do processo administrativo não são exaustivos[3], conforme se depreende do artigo 2°, caput, da Lei 9.874/99, bem como da força normativa da constituição[4], que orienta a elaboração, interpretação e aplicação de qualquer norma infraconstitucional.[5]
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
A seguir, apontamos os principais (porém não únicos) princípios que orientam o processo administrativo.
1.3.1 PRINCÍPIO DO INFORMALISMO
Significa que a Administração, na condução de um processo administrativo, pode simplificar as diversas etapas que o integram. Não há necessidade de adoção das mesmas solenidades adotadas no processo judicial. Há, porém, um limite, qual seja a preservação dos direitos do administrado. Não pode a Administração suprimir o contraditório e ampla defesa a pretexto de simplificar as etapas do processo administrativo.
Alguns Estados adotavam dois modelos de processo administrativo simplificado que foram considerados inconstitucionais.
Havia o modelo chamado “termo administrativo” em que todo o processo se concentrava em um único momento. Ainda que a infração fosse leve, essa concentração excessiva prejudicava a ampla defesa. O informalismo foi ao extremo de modo a não preservar de forma satisfatória o contraditório e a ampla defesa.
No modelo “verdade sabida”, se a autoridade, competente para punir, presenciasse a prática da infração, ela poderia dispensar a instauração do processo administrativo e diretamente aplicar a punição, o que certamente também ignora o contraditório e a ampla defesa.
Ambos os modelos, apesar de cumprirem o princípio do informalismo do processo administrativo violavam os direitos da ampla defesa e do contraditório. Logo, nota-se que a jurisprudência há tempos controla a validade do processo administrativo com enfoque constitucional e para além dos interesses da administração pública.
Mandado de segurança. Pena disciplinar. Cerceamento de defesa. Crítica via imprensa. Verdade sabida. Conhecimento direto. Estatuto dos funcionários públicos municipais de São Paulo. A notícia veiculada em jornal não importa em conhecimento direto do fato, ante a notória possibilidade de distorções. Por isso, não se convoca o instituto da verdade sabida para fugir à imposição constitucional da ampla defesa. Recurso provido.[6]
1.3.2 PRINCÍPIO DA OFICIALIDADE
De acordo com esse princípio, no processo administrativo, o impulso é oficial. A Administração deve adotar as providências necessárias à conclusão do processo administrativo, não deixando processos administrativos em aberto. É evidente que isso não pode ser aplicado em todas as situações, principalmente naqueles processos deflagrados a requerimento do interessado. Nesses casos, se o interessado não impulsionar o processo, pode a Administração determinar seu arquivamento.
Também em razão desse princípio a Administração pode deflagrar processos administrativos de ofício, isto é, independente de requerimento. Aqui não se aplica o chamado princípio da inércia jurisdicional.
1.3.3 PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
É um princípio geral da Administração, previsto no art. 37, “caput”, da CR/88, mas também um princípio setorial do processo administrativo.[7]
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
A Administração deve divulgar as principais etapas do processo administrativo permitindo seu conhecimento pelos interessados. A Administração pode restringir a publicidade, impondo o sigilo, naquelas hipóteses constitucionalmente previstas, tais quais preservação da intimidade.
O princípio da publicidade não está diretamente relacionado à publicação. Toda a publicidade tem um destinatário e não necessariamente a notícia chega ao destinatário mediante publicação na imprensa oficial. Por exemplo, se no processo administrativo a Comissão de Processo Disciplinar manda intimar o servidor acusado e o advogado dele toma ciência, não há necessidade de se publicar no Diário Oficial. Portanto, publicidade é ter ciência e esse ato pode ocorrer mediante publicação ou não.
Há discussão quanto à extensão da publicidade. Em princípio, publica-se a portaria, a decisão e o nome. É preciso cuidado, porém, com o conteúdo da portaria, de forma a não gerar responsabilidade civil do Estado por “excesso de publicidade” ou por ofensa à honra.
Por sua vez, os procedimentos preparatórios visam a apurar as mínimas informações necessárias à instauração de um processo administrativo. Há uma divergência quanto à possibilidade de a Administração apurar fatos, sem instaurar um processo administrativo e sem dar ciência ao investigado. Há doutrina que entenda não haver publicidade em procedimento preparatório.
Contudo, é necessária a ressalva de que a ausência de publicidade não se equipara ao sigilo. O primeiro é a desnecessidade de informação específica a interessados, que ainda assim podem tomar ciência do ato praticado, já o segundo é a vedação ao conteúdo das informações, de forma parcial ou total.
1.3.4 PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
O art. 5º, LV, da CR, dispõe que, mesmos nos processos administrativos, devem ser observados o contraditório e a ampla defesa.[8]
Art. 5° - LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
O interessado tem o direito de produzir todas as provas consideradas lícitas e necessárias. Aplica-se ao processo administrativo a vedação constitucional quanto à produção de prova ilícita. A Administração pode indeferir requerimento para produção de provas manifestamente desnecessárias, protelatórias, desde que a decisão se encontre devidamente fundamentada.
Há uma ideia de busca da verdade material que permite a Administração maior liberdade quanto à produção de provas no processo administrativo, podendo tomar provas emprestadas etc.
O Superior Tribunal de Justiça havia editado Súmula considerando imprescindível para a validade de processo administrativo a defesa técnica por advogado.
Súmula 343 – É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar.
Contrariando a Súmula do STJ, foi editada a Súmula Vinculante 5 pelo Supremo Tribunal Federal.
Súmula Vinculante 5 - A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.
Assim, afirmou o STF que não é indispensável a presença de defesa técnica de advogado para a validade do processo administrativo. Nada impede, porém, que diante de um determinado caso concreto, se verifique que a ausência de defesa técnica gerou cerceamento de defesa.
Em caso de revelia, o Estatuto dos Servidores prevê a designação de defensor dativo que pode ser até mesmo outro servidor. Normalmente, a situação de revelia ocorre nas hipóteses de abandono de cargo. Deve-se ter muito cuidado com essa hipótese, pois muitas vezes não há abandono voluntário de cargo, mas uma situação específica que justifica a ausência.
2 AGÊNCIAS REGULADORAS
2.1 CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E CARACTERÍSTICAS BÁSICAS
São autarquias de regime especial, cujos dirigentes são dotados de mandato fixo, que desempenham a fiscalização e a regulamentação de determinadas atividades econômicas e serviços públicos.
Fiscalização e regulamentação são atividades genuinamente administrativas, precípuas do Estado. Por tal razão, as agências reguladoras se enquadram como pessoas jurídicas de direito público, mais especificamente como autarquias.
Nos anos 90, iniciou-se tendência de privatização na administração pública brasileira. O Estado repassaria a terceiros mediante concessão ou permissão a prestação de serviços públicos, que antes eram desempenhadas pelo próprio Estado. Quando as atividades eram desempenhadas pelo Estado, o controle era interno. Contudo, com a descentralização, tornou-se necessário, então, criar um arcabouço de fiscalização coadunado com essa nova realidade.
Para suprir esse hiato, surgem as agências reguladoras.
A regra, portanto, é que o Estado só atuará na atividade econômica quando a atividade privada não suprir as necessidades sociais, estritamente na forma do artigo 173 da CR/88.
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.[9]
A devolução das atividades econômicas em sentido estrito para a iniciativa privada e descentralização dos serviços públicos busca uma administração mais eficiente, de resultados.
Por sua vez, o fortalecimento do Estado, buscando ordenar e fomentar condutas que satisfaçam o interesse público e que promovam direitos fundamentais traz a reboque o amadurecimento do Estado Democrático de Direito.
Já a intervenção do Estado indireta por direção ocorre quando a administração pública atua para fiscalizar e ordenar a atividade econômica. A regulação econômico social consiste em atividade estatal de intervenção indireta sobre a conduta dos agentes públicos e privados, de modo permanente e sistemático, para implementar as políticas de governo e realizar direitos fundamentais. Art. 174 da Cr/88.
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.[10]
A regulação é atividade complexa, abarcando uma série de outras atividades, não se adequando perfeitamente na repartição de poderes, pois engloba funções administrativas típicas (exercício do poder de polícia), função quase legislativa (poder normativo) e função quase judicante ou judiciariforme (dirimir conflitos).
Dentre as atribuições das agências reguladoras está a possibilidade de requisitar servidores e empregados de órgãos e entidades integrantes da administração pública. Durante os primeiros vinte e quatro meses subsequentes à sua instalação, as Agências poderão complementar a remuneração do servidor ou empregado público requisitado, até o limite da remuneração do cargo efetivo ou emprego permanente ocupado no órgão ou na entidade de origem, quando a requisição implicar redução dessa remuneração.
A função regulatória precede ao modelo das agências reguladoras, que não estão previstas expressamente na CR/88, tratando-se portanto de uma opção do legislador.
A razão de sua existência é a necessidade de criação de um ambiente de estabilidade institucional e segurança jurídica (compromisso regulatório); não sujeição a interesses político-partidários; alta complexidade técnica e fomento de atividades essenciais à economia.
Na qualidade de autarquias pode-se citar diversas características que tocam as Agências Reguladoras, a saber: são criadas mediante lei específica (art. 37, XIX, da CF); são extintas mediante lei específica (princípio da simetria ou paralelismo das formas); seus bens são públicos; possuem privilégios processuais; gozam de imunidade tributária; seu pessoal se submete ao regime estatutário; e são vinculadas ao ente federativo que as criou.
Na relação de vinculação, não há possibilidade de livre revisão dos atos por parte do ente federativo. O controle é finalístico e só pode se dar nos exatos termos da lei (fiscalização condicionada).
São, contudo, consideradas autarquias em regime especial já as agências reguladoras têm maior autonomia. A maior autonomia envolve dois pilares básicos: mandato fixo de seus dirigentes – em tese, não há possibilidade de livre exoneração; obtenção de receitas próprias – além de ter destinação orçamentária, pode receber receitas próprias.
3 DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR SIGILOSO PREVISTO NA LEI 10.233/01
A LEI 10.233/01 previa em seu bojo processo administrativo disciplinar voltado para apuração de atos infracionais e aplicação de penalidades às concessionárias de serviço público que atuam nos setores regulados pela respectiva lei.[11]
Art. 78-B. O processo administrativo para a apuração de infrações e aplicação de penalidades será circunstanciado e permanecerá em sigilo até decisão final.
§ 1º A Diretoria da Agência poderá estender o sigilo do processo até a decisão final, por meio de ato fundamentado, para assegurar a elucidação do fato e preservar a segurança da sociedade e do Estado.
O processo administrativo em análise decorre do poder regulamentar e disciplinar conferindo às Agências Reguladoras por meio de lei. São poderes essenciais ao exercício de sua função institucional, e mesmo que não estivesse previsto em seus estatutos decorreria logicamente de suas atribuições, pela aplicação da Teoria dos Poderes Implícitos.
Não obstante a presença de lei conferindo tal poder e função à agência reguladora, fato é que qualquer instituto infraconstitucional, ainda que pautado na supremacia do interesse público, deve obediência à Constituição. Logo, a presença de autorização para processar sigilosamente concessionária de serviço público deve ser lida de acordo com a força normativa dos princípios que regem o próprio processo administrativo, em especial o da publicidade e o do contraditório e ampla defesa.
Despiciendo argumentar que o sigilo de processo público é “contradictio in adiecto”, ou seja, uma contradição em seus próprios termos.
Nos parece, em verdade, que processar sigilosamente não é verdadeiramente processar, já que o exercício do poder de fiscalizar e punir exercido ao arrepio da Constituição é ilegal e impede seu reconhecimento como um instituto de direito.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal o artigo de lei acima colacionado é viciado de inconstitucionalidade material, nulo desde a origem portanto.
Para o Tribunal Constitucional a previsão de processo administrativo disciplinar sigiloso viola a publicidade como elemento essencial do Estado Democrático de Direito, sendo o sigilo, nessa espécie de processo administrativo, absolutamente excepcional.
O princípio republicano, da publicidade e do acesso à informação orientam todo o sistema normativo, em especial os atos emanados do poder público em sede de ato administrativo punitivo.
A supremacia do interesse público não justifica o afastamento, como regra, de direito e garantia individual fundamental (extensível às pessoas jurídicas prestadoras de serviço público).[12]
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Art. 5° XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;
Sendo excepcionais as hipóteses de afastamento do direito à publicidade, devem estas decorrer de previsão expressa na CRFB. Assim sendo, apenas em casos de proteção à segurança do Estado e da Sociedade e à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas é que está o Estado autorizado a processas administrativamente fato sob o manto do sigilo.
Porém, a previsão constitucional repetida em lei infraconstitucional não cumpre suficientemente a concretização da hipótese de exceção. O exercício do poder legislativo em seu espaço de conformação deve observar a razoabilidade e a estrita legalidade, sem previsões genéricas nas hipóteses de limitação de direitos.
Não foi outra a conclusão do Supremo Tribunal Federal:
Em regra, a imposição de sigilo a processos administrativos sancionadores, instaurados por agências reguladoras contra concessionárias de serviço público, é incompatível com a Constituição. Isso porque (i) a regra no regime democrático instaurado pela Constituição de 1988 é a publicidade dos atos estatais, sendo o sigilo absolutamente excepcional; (ii) a Constituição Federal afasta a publicidade em apenas duas hipóteses: informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança do Estado e da sociedade e proteção à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas; (iii) essas exceções constitucionais, regulamentadas pelo legislador especialmente na “Lei de Acesso à Informação”, devem ser interpretadas restritivamente, sob forte escrutínio do princípio da proporcionalidade; e (iv) o STF deve se manter vigilante na defesa da publicidade estatal, pois retrocessos à transparência pública têm sido recorrentes. Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, julgou procedente o pedido formulado e declarou a inconstitucionalidade do art. 78-B da Lei 10.233/2001.
CONCLUSÃO
Percebe-se, portanto, que o processo administrativo disciplinar é instituto com origem em mais de um ramo do direito. De um lado é instituto jurídico afeto ao Direito Processual, ao passo que por outro lado se relaciona ao Direito Administrativo. Sua natureza jurídica debatida na doutrina não escapa da necessária filtragem constitucional de suas normas.
Nessa toada, deve respeitar não apenas os interesses públicos em jogo, tanto primário como secundário, submetidos às limitações e prerrogativas decorrentes da supremacia e indisponibilidade do interesse público, como também deve se pautar pelos direitos e garantias fundamentais.
Logo, havendo previsão genérica conferindo sigilo ao processo administrativo sancionatório será esta inconstitucional, salvo justificativa legal submetida a interpretação restritiva.
Não cabe ao legislador, sob a frágil proteção de argumentos inespecíficos, limitar direitos e garantias fundamentais.
Apesar da jurisprudência clássica do Supremo Tribunal Federal de que o controle abstrato de inconstitucionalidade não possui efeitos transcendentes, aplicando-se apenas à lei atacada, entendemos como positiva a decisão exarada na ADI 5371/DF, para além da Lei 10.233/01.
Forma-se assim um importante precedente na defesa de direitos individuais face o exercício excessivo de poder punitivo pelo Estado Legislativo, reafirmado a função da Corte Constitucional como protetora da Constituição Federal, instrumento de garantia individual e pilar do Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
______. Lei nº 9.784/99. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
______. Lei nº 10.233/01. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10233.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
______. Supremo Tribunal Federal. Adin nº 5371/DF. Relator: Ministro Roberto Barroso. Disponível em <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4834219>. Acesso em: 23 mar. 2022
CARVALHO, Matheus. Direito Administrativo. 6ed. Bahia: Juspodivm. 2019.
FERRAZ, Sergio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 4 ed. Bahia: Juspodivm, 2020.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Bonet. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
[1] BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
[2] Ibid.
[3] FERRAZ, Sergio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 4 ed. Bahia: Juspodivm, 2020.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Bonet. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
[5] ______. Lei nº 9.784/99. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
[6] Supremo Tribunal Federal. Adin nº 5371/DF. Relator: Ministro Roberto Barroso. Disponível em <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4834219>. Acesso em: 23 mar. 2022
[7] BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
[8] BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
[9] BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
[10] BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
[11] Lei nº 10.233/01. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10233.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
[12] Lei nº 10.233/01. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10233.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
Graduado pela Universidade Estácio de Sá. Advogado. Pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Paulo Figueiredo Fonseca. Da inconstitucionalidade de processo administrativo sigiloso instaurado por agência reguladora Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 abr 2022, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58199/da-inconstitucionalidade-de-processo-administrativo-sigiloso-instaurado-por-agncia-reguladora. Acesso em: 26 dez 2024.
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