Resumo – O presente trabalho versa sobre possível espécie de (in)compatibilidade entre a norma do artigo 287 do CPP e a CR/88. Para tanto, analisa qual a ação objetiva de controle de constitucionalidade cabível, em tese, face a respectiva norma. Procura ainda esclarecer os elementos do mandado de prisão, bem como as consequências do descumprimento de tais formalidades. Questiona, por fim, a validade da norma que autoriza a prisão por crime inafiançável sem apresentação de mandado, à luz da Constituição Federal e de seus institutos processuais, amplamente reconhecidos como garantias fundamentais.
Palavras-chave – Direito Constitucional. Constitucionalidade. Recepção. Conflito Intertemporal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Preceito Fundamental. Mandado de prisão. Formalidades. Prisão sem mandado. Prisão em flagrante. Ordem judicial. Vício e irregularidade.
Sumário – Introdução. 1. Código de Processo Penal e seu controle abstrato de constitucionalidade. 1.1. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. 2. Mandado de prisão. 2.1. Dos elementos formais essenciais do mando de prisão. 3. Da prisão sem apresentação de mandado e sua constitucionalidade. 3.2. Da prisão por crimes afiançáveis e o registro do mandado de prisão no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – Resolução n° 251 04/09/2018. Conclusão. Referência.
INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende investigar as normas contidas no artigo 287 do CPP, a natureza do controle abstrato de constitucionalidade a que se submetem tais normas, caso sejam sob esse enfoque atacadas junto ao Supremo Tribunal Federal, o instituto do mandado de prisão e seus elementos formais, bem como espécie de (in)validade em caso de ausência em caso de falta de elemento, e as exceções a necessidade de apresentação do mandado quando de seu cumprimento, bem como suas justificativas.
A razão do trabalho é a necessária análise de compatibilidade constitucional das normas infraconstitucionais, em especial aquelas aparentemente anteriores à CR/88, à luz da força normativa da constituição, para verificar sua regularidade e permanência no ordenamento jurídico. Sendo o instituto objeto do trabalho de natureza processual penal, são estes os elementos constitucionais que servirão de paradigma para sua análise, face à constituição.
Importante ainda elencar os requisitos constitucionais do mandado de prisão, bem como os requisitos formais, de regularidade e validado, do referido instituto.
Por fim, trata o presente artigo das hipóteses de prisão sem apresentação de mandado e respectivas exceções, à luz do CPP e da Resolução 251 do CNJ.
O artigo é desenvolvido pelo método hipotético-dedutivo. Assim, pretende o pesquisador eleger um conjunto de proposições hipotéticas, as quais acredita serem viáveis e adequadas para analisar o objeto da pesquisa.
1 CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E SEU CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE
Inicialmente cumpre esclarecer se as normas presentes no Código de Processo Penal podem submeter-se a juízo de constitucionalidade ou de recepção, aquele um confronto entre a regularidade formal e material da norma com a CR/88 e este juízo intertemporal e, em síntese, de revogação da norma.
O juízo de recepção constitucional é sempre pautado pelo conteúdo da constituição, já que não existe não recepção por aspectos de constitucionalidade formal, ficando a exceção por conta do aspecto formal orgânico, quando a norma passa da competência concorrente da União, Estados e DF para a competência privativa da União. Essa exceção decorre da impossibilidade, prática, de serem recepcionadas dezenas de leis Estaduais e Distritais como única lei federal.
Importante destacar que o fato de uma norma estar presente em um corpo codificado não a torna igual, para fins de controle de constitucionalidade, ao restante do diploma. Assim, um código de normas anteriores à CR/88 se submete a juízo de recepção, mas essa conclusão não se aplica a alguma norma incluída no texto codificado após a CR/88, que sofrerá análise de constitucionalidade.
Nesse sentido, o artigo 287 do CPP em comento, apesar de possuir origens remotas anteriores à CR/88, foi alterado pela Lei 13.964/19 (chamada de Pacote Anticrime por seu preâmbulo). Contudo, a alteração não afetou a norma da prisão sem mandado por crime inafiançável, incluindo apenas a necessidade de realização de audiência de custódia quando da prisão.[1]
Art. 287. Se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará à prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado.
Art. 287. Se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia.
Fato é que um dispositivo pode conter mais de uma norma[2], salvo exceções de dispositivos mais simples e unívocos. No caso do “novo” artigo 287 do CPP, as normas ali contidas seriam: (i) em caso de crime inafiançável a falta de mandado não obsta a prisão; (ii) nesse caso deve o preso ser apresentado ao juiz que expediu o mandado; e (iii) será realizado a audiência de custódia nesses casos.
Nota-se que as normas (i) e (ii) do parágrafo antecedente são anteriores à CR/88, enquanto a norma do item (iii) é posterior à CR/88. Logo, as duas primeiras normas estão submetidas ao controle intertemporal face à Constituição Federal e a última norma se submete a controle de constitucionalidade.[3]
Sendo assim, em que pese recente alteração do dispositivo em que inserida a norma objeto do presente estudo, fato é que esta não foi significativamente alterada, permanecendo o cabimento de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, caso se pretenda questionar a permanência da norma do mundo jurídico.
1.1 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
Não sendo o Direito Constitucional e suas ações próprias o escopo deste trabalho, analisaremos sucintamente os aspectos mais relevantes da ADPF, instrumento que se prestaria a atacar as normas do artigo 287 do CPP que possuem relevância para o trabalho, como já referido anteriormente.
A ADPF está prevista no artigo 102 da CR/88[4]:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§ 1.º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. (Transformado do parágrafo único em § 1º pela Emenda Constitucional nº 3, de 17/03/93)
Possui ainda previsão infraconstitucional, em que é melhor detalhada e estabelecido rito para cautelar, julgamento e efeitos da decisão (Lei 9.882/99).[5]
O objeto da ADPF é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público e também quando for relevante o fundamento de controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual e municipal, incluídos os anteriores à Constituição.
Uma de suas características mais relevantes é a subsidiariedade a outro meio de igual eficácia, não necessariamente de controle abstrato de constitucionalidade.
São legitimados ativos os mesmos da ADIN, na forma do artigo 103 da CR/88. Por sua vez, o parâmetro para controle são os chamados preceitos fundamentais, previstos na CR/88 ou em tratados internacionais incorporados ao ordenamento na forma de emenda constitucional.
Nesse sentido, o STF já se manifestou sua posição sobre o alcance da expressão “preceitos fundamentais”, quais sejam: a separação e independência entre os Poderes; o princípio da igualdade; o princípio federativo; a garantia de continuidade dos serviços públicos; os princípios e regras do sistema orçamentário ; o regime de repartição de receitas tributárias; e a garantia de pagamentos devidos pela Fazenda Pública em ordem cronológica de apresentação de precatórios.[6]
EMENTA MEDIDA CAUTELAR EM ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. DECISÕES JUDICIAIS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 1ª REGIÃO. BLOQUEIO, ARRESTO, PENHORA, SEQUESTRO E LIBERAÇÃO DE VALORES EM CONTAS DO PODER EXECUTIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. PAGAMENTO DE SALÁRIOS E BENEFÍCIOS DE SERVIDORES ATIVOS E INATIVOS. SATISFAÇÃO DE CRÉDITOS DE PRESTADORES DE SERVIÇOS. DEFINIÇÃO DE PRIORIDADES POLÍTICAS NA APLICAÇÃO DE RECURSOS PÚBLICOS. ATO DO PODER PÚBLICO. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL CABÍVEL. ARTS. 1º, CAPUT, E 4º, § 1º, DA LEI Nº 9.882/1999. ALTERAÇÃO DA DESTINAÇÃO ORÇAMENTÁRIA DE RECURSOS PÚBLICOS. TRANSPOSIÇÃO DE RECURSOS ENTRE DIFERENTES ÓRGÃOS OU CATEGORIAS DE PROGRAMAÇÃO SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA. VEDAÇÃO. ARTS. 2º, 84, II, e 167, VI e X, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. FUMUS BONI JURIS E PERICULUM IN MORA DEMONSTRADOS. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA EM PARTE. SUSPENSÃO DOS EFEITOS DAS DECISÕES IMPUGNADAS EXCLUSIVAMENTE NOS CASOS EM QUE AS MEDIDAS CONSTRITIVAS TENHAM RECAÍDO SOBRE RECURSOS DE TERCEIROS, ESCRITURADOS CONTABILMENTE, INDIVIDUALIZADOS OU COM VINCULAÇÃO ORÇAMENTÁRIA ESPECÍFICA. 1. As reiteradas decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região que resultaram em bloqueio, arresto, penhora, sequestro e liberação de valores administrados pelo Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro para atender demandas relativas a pagamento de salário de servidores ativos e inativos, satisfação imediata de créditos de prestadores de serviços e tutelas provisórias definidoras de prioridades na aplicação de recursos públicos traduzem, em seu conjunto, ato do Poder público passível de controle pela via da arguição de descumprimento de preceito fundamental, cabível nos moldes dos arts. 1º, caput, e 4º, § 1º, da Lei 9.882/1999. 2. A efetividade do modelo de organização da Administração Pública preconizado pela Constituição Federal supõe a observância dos princípios e regras do sistema orçamentário (arts. 167, VI e X, da CF), do regime de repartição de receitas tributárias (arts. 34, V, 158, III e IV, e 159, §§ 3º e 4º, e 160, da CF) e da garantia de paramentos devidos pela Fazenda Pública em ordem cronológica de apresentação de precatórios (art. 100, da CF). Expropriações de numerário existente nas contas do Estado do Rio de Janeiro, para saldar os valores fixados nas decisões judiciais, que alcancem recursos de terceiros, escriturados contabilmente, individualizados ou com vinculação orçamentária específica implicam alteração da destinação orçamentária de recursos públicos e remanejamento de recursos entre categorias de programação sem prévia autorização legislativa, o que não se concilia com o art. 167, VI e X, da Constituição da República. A aparente usurpação de competências constitucionais reservadas ao Poder Executivo – exercer a direção da Administração – e ao Poder Legislativo – autorizar a transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro – sugere lesão aos arts. 2º, 84, II, e 167, VI e X, da Carta Política. Precedente: ADPF 387/PI, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 23.3.2017. Fumus boni juris evidenciado. 3. Satisfeito o requisito do periculum in mora ante o elevado risco de comprometimento do patrimônio e das receitas correntes do Estado do Rio de Janeiro. 4. Deferimento apenas parcial para suspender os efeitos das decisões judiciais impugnadas exclusivamente nos casos em que as medidas constritivas nelas determinadas tenham recaído sobre recursos escriturados, com vinculação orçamentária específica ou vinculados a convênios e operações de crédito, valores de terceiros sob a administração do Poder Executivo e valores constitucionalmente destinados aos Municípios, em afronta aos arts. 2º, 84, II, e 167, VI e X, da Constituição da República. 5. Medida cautelar deferida em parte.
Logo, sendo as normas em comento anteriores à CR/88, e inexistindo ato com igual eficácia para atacar a norma em abstrato, conclui-se ser cabível a ADPF na hipótese.
2 MANDADO DE PRISÃO
O mandado de prisão é elemento essencial para a decretação e cumprimento de prisão por ato judicial. Segundo ditames constitucionais, não é possível a prisão de alguém sem flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada. Por sua vez, o CPP especifica qual ordem escrita é essa, clarificando tratar-se justamente do mandado de prisão.
Art. 5º – LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
Art. 285. A autoridade que ordenar a prisão fará expedir o respectivo mandado.
Tais preceitos compreendidos de forma conjunta leva, consequentemente, ao entendimento de que toda prisão por ordem judicial deve ser cumprida em razão do mandado de prisão. Essa compreensão, contudo, não impede a prisão sem a apresentação do mandado de prisão ao investigado/denunciado, como se verá mais adiante.
Vale ressaltar que a existência do mandado de prisão previamente à prisão possui ainda a finalidade de submeter o ato ao contraditório, ainda que posterior, sobre o ato judicial praticado, cumprindo com o princípio da ampla defesa e do contraditório, ambos de envergadura constitucional.
2.1 DOS ELEMENTOS FORMAIS ESSENCIAIS DO MANDADO DE PRISÃO
De acordo com o CPP o mandado de prisão depende de alguns elementos para ser considerado válido e, com isso, autorizar a execução material da ordem de prisão. Caso contrário haverá nulidade do ato processual e dos atos que dele decorram, à luz da teoria dos frutos da árvore envenenada.
Vale lembrar que prisão não é prova, porém como faz parte do conjunto de atos processuais realizados no curso do processo, se submete ao regramento de nulidade (absolutas e relativas) bem como tem o condão de eivar de vício insanável atos posteriores que dela decorram.[7]
São elementos essenciais do mandado de prisão (e aqui tomamos de empréstimo o rol definido pelo professor Guilherme Nucci[8], por sua completude e clareza, atributos que lhe são peculiares): a) lavratura por escrivão ou escrevente, com assinatura do juiz, cuja autenticidade é certificada pelo escrivão-diretor; b) designação da pessoa a ser presa, com seus dados qualificadores (RG, nomes do pai e da mãe, alcunha, sexo, cor da pele, data do nascimento, naturalidade, endereço residencial e endereço comercial); c) menção da infração penal por ele praticada; d) declaração do valor da fiança, se tiver sido arbitrada, quando possível; e) emissão à autoridade policial, seus agentes ou oficial de justiça, competentes para cumpri-lo; f) colocação da Comarca, Vara e Ofício de onde é originário; g) número do processo e/ou do inquérito, onde foi proferida a decisão decretando a prisão; h) nome da vítima do crime; i) teor da decisão que deu origem à ordem de prisão (preventiva, temporária, pronúncia, sentença condenatória etc.); j) data da decisão; k) data do trânsito em julgado (quando for o caso); l) pena aplicada (quando for o caso); m) prazo de validade do mandado, que equivale ao lapso prescricional.
Vale ressaltar que de acordo com o artigo 286 do CPP, e diferentemente da prisão em flagrante, apenas o oficial de justiça, a autoridade policial e seus agentes podem cumprir o mandado de prisão.[9]
Art. 286. O mandado será passado em duplicata, e o executor entregará ao preso, logo depois da prisão, um dos exemplares com declaração do dia, hora e lugar da diligência. Da entrega deverá o preso passar recibo no outro exemplar; se recusar, não souber ou não puder escrever, o fato será mencionado em declaração, assinada por duas testemunhas.
3 DA PRISÃO SEM APRESENTAÇÃO DE MANDADO E SUA CONSTITUCIONALIDADE
A intenção do legislador ao estabelecer a possibilidade de prisão determinada em ordem judicial à míngua da apresentação de mandado de prisão decorre da necessidade de maior tutela sobre crimes graves, bem como a vontade de fazer sobressair o interesse público à segurança sobre a inviolabilidade de locomoção, em especial por já estar este direito afastado pela própria ordem.
Dessa forma, nos crimes inafiançáveis, em razão de sua gravidade em abstrato, associado a gravidade em concreto analisado quando da decretação da prisão, é possível o cumprimento da ordem sem dar ao apreendido imediato conhecimento do decreto. Isso não significa que o preso não conhecerá do mandado de prisão, mas apenas que esse conhecimento é diferido em razão da imediata possibilidade de cumprimento do ato associado ao superior interesse público na hipótese.[10]
Sendo o caso de prisão sem apresentação do mandado, os executores do ato devem encaminhar o custodiado diretamente ao juiz, para adoção das medidas cabíveis (atualmente, inclusive, a realização da audiência de custódia). Logo, difere da prisão em flagrante em que o apreendido é apresentado imediatamente à autoridade policial, que então lavra auto de prisão em flagrante.
Observe-se que a prisão sem mandado, ou seja, aquela em que não há mandado de prisão prévio, com realização do mandado a posteriori, é prática ilegal.
O dispositivo é amplamente encampado pela jurisprudência: “A prisão efetuada em comarca diversa da responsável pela emissão do mandado de prisão, sem a expedição de carta precatória, não torna a prisão ilegal, pois constitui mera irregularidade, perfeitamente sanável, prevalecendo, nessas hipóteses, o interesse público em ver o procurado recolhido ao cárcere. Não há falar em ilegalidade da prisão em virtude de suposta ausência de assinatura no decreto constritivo, pois, no caso, ao que tudo indica, a decisão advém de processo eletrônico com assinatura digital, tratando-se de ordem emanada por autoridade judiciária competente. Ordem denegada” (HC 82207/2015 – MT, 2.ª C. C., rel. Pedro Sakamoto, 29.07.2015)
Como a hipótese em análise neste trabalho é caso de prisão com ordem judicial (ainda que conhecido o decreto pelo custodiado após seu cumprimento pela autoridade policial) não há se falar em incompatibilidade com a ordem constitucional, logo, não é hipótese de não recepção da norma aqui discutida.
Como já referido a CR/88 determina que os indivíduos apenas serão presos em flagrante delito ou após ordem prévia, escrita e fundamentada de autoridade judicial. Contudo, a CR/88 não determina que será o mandado, sempre e necessariamente, apresentado ao indivíduo antes de sua prisão.
Dessa forma, a especificação da apresentação a posteriori procura dar maior efetividade a norma constitucional, determinando que em alguns casos é possível a prisão sem imediata apresentação do decreto, à luz da supremacia do interesse público.[11]
Em que pese vozes da doutrina no sentido de ser o interesse público o fundamento jurídico para a norma do artigo 287 do CPP, ousamos acrescentar a praticidade e efetividade das medidas de caráter penal. Exigir do policial que se transforme em verdadeiro oficial de justiça e leve consigo todo o acervo de mandados de prisão em uma determinada comarca traz ônus desproporcional ao serviço público de segurança, direito fundamental previsto no caput do artigo 5° da CR/88.
Esses argumentos, contudo, não afastam o interesse público, pelo contrário, o complementam. Tanto assim o é que essa maior efetividade e praticidade apenas é conferida ao cumprimento de mandados de prisão por crimes inafiançáveis ou afiançáveis registrados em banco próprio, como se verá.
Logo, não deve ser outra a conclusão senão a de que as normas do artigo 287 do CPP, objeto do presente trabalho, foram integralmente recepcionadas pela CR/88: (i) em caso de crime inafiançável a falta de mandado não obsta a prisão; e (ii) nesse caso deve o preso ser apresentado ao juiz que expediu o mandado.
3.2 DA PRISÃO DE CRIMES AFIANÇÁVEIS E O REGISTRO DO MANDADO DE PRISÃO NO BANCO NACIONAL DE MONITORAMENTO DE PRISÕES – RESOLUÇÃO Nº 251 de 04/09/2018 DO CNJ
Conforme já esclarecido, a regra para a realização de prisão por mandado é a apresentação do decreto na sua execução. Excepcionalmente é admitida a apresentação posterior em casos crimes inafiançáveis. Como exceção da exceção, o legislador sentiu por bem acrescentar hipótese em que o mandado de prisão também não será imediatamente apresentado, no caso de crimes afiançáveis.
Prevê o artigo 289-A do CPP que:[12]
Art. 289-A. O juiz competente providenciará o imediato registro do mandado de prisão em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça para essa finalidade. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 1o Qualquer agente policial poderá efetuar a prisão determinada no mandado de prisão registrado no Conselho Nacional de Justiça, ainda que fora da competência territorial do juiz que o expediu. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 2o Qualquer agente policial poderá efetuar a prisão decretada, ainda que sem registro no Conselho Nacional de Justiça, adotando as precauções necessárias para averiguar a autenticidade do mandado e comunicando ao juiz que a decretou, devendo este providenciar, em seguida, o registro do mandado na forma do caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 3o A prisão será imediatamente comunicada ao juiz do local de cumprimento da medida o qual providenciará a certidão extraída do registro do Conselho Nacional de Justiça e informará ao juízo que a decretou. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 4o O preso será informado de seus direitos, nos termos do inciso LXIII do art. 5o da Constituição Federal e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, será comunicado à Defensoria Pública. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 5o Havendo dúvidas das autoridades locais sobre a legitimidade da pessoa do executor ou sobre a identidade do preso, aplica-se o disposto no § 2o do art. 290 deste Código. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 6o O Conselho Nacional de Justiça regulamentará o registro do mandado de prisão a que se refere o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
Percebe-se, portanto, que caso o decreto de prisão esteja, previamente ao ato de prisão, registrado no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0, instituído pela Resolução n° 251 do CNJ, será possível seu cumprimento sem apresentação do mandado no momento de seu cumprimento.
Novamente, surge aqui o fundamento da praticidade e superior interesse público, associados à eficiência da máquina pública na execução de seus atos, dando cumprimento ao disposto no caput do artigo 37 da CR/88, com redação dada pela Emenda Constitucional 19 de 1998.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
Ainda, não deve ser ignorado o fundamento, já relatado, de que a ordem existe, é prévia e fundamentada, apenas será mostrada ao custodiado quando de sua apresentação à autoridade judicial que a exarou.
Por fim, vale ressaltar que elementos formais da expedição do mandado de prisão, desde que não digam respeito a validade do próprio ato (como é o caso da exposição dos fatos que o sustentam) são tratados pela jurisprudência como mera irregularidade.
A prisão efetuada em comarca diversa da responsável pela emissão do mandado de prisão, sem a expedição de carta precatória, não torna a prisão ilegal, pois constitui mera irregularidade, perfeitamente sanável, prevalecendo, nessas hipóteses, o interesse público em ver o procurado recolhido ao cárcere. Não há falar em ilegalidade da prisão em virtude de suposta ausência de assinatura no decreto constritivo, pois, no caso, ao que tudo indica, a decisão advém de processo eletrônico com assinatura digital, tratando-se de ordem emanada por autoridade judiciária competente. Ordem denegada” (HC 82207/2015 – MT, 2.ª C. C., rel. Pedro Sakamoto, 29.07.2015, v.u.)
CONCLUSÃO
O trabalho procura desenvolver os elementos básico do mandado de prisão, elencando requisitos formais e necessários para sua expedição. Ao se debruçar sobre a norma em análise, resta evidente que eventual controle de constitucionalidade desta se dará no campo temporal, em razão de ser norma anterior à CR/88.
Para fins de análise foram definidas as seguintes normas presentes no artigo 287 do CPP: (i) em caso de crime inafiançável a falta de mandado não obsta a prisão; (ii) nesse caso deve o preso ser apresentado ao juiz que expediu o mandado; e (iii) será realizado a audiência de custódia nesses casos. Contudo, são relevantes ao trabalho apenas as normas (i) e (ii).
Tratando-se de norma anterior à constituição caberia sua análise, em abstrato pelo STF, por meio de ADPF e apenas verificada sua regularidade material. Sendo a norma debatida reguladora da execução de mandado de prisão, in casu, sem apresentação do mandado, deve o confronto de validade da lei em comento ser realizado face os valores constitucionais relacionados ao processo penal.
A conclusão a que se chega é que pretendeu o legislador conferir maior amparo à segurança pública, interesse público, praticidade e eficiência no cumprimento de mandados por crimes inafiançáveis em razão da gravidade em abstrato dos crimes assim tratados. Esse tratamento não ofende a inafastabilidade da jurisdição e o comendo do artigo 5, LXI, da CR/88, na medida em que a não apresentação do mandado não se equipara à justificação posterior.
Fato é que a norma exige ordem judicial, escrita e prévia ao cumprimento do mandado e o contrário seria verdadeira contradictio in adjecto, já que só possível cumprir mandado sem sua apresentação se este existir previamente.
Conforme trabalhado ao longo do texto, exceções à exibição do mandado de prisão são possíveis, desde que fundamentada em razões de superior interesse público, sendo, contudo, a regra, a apresentação do mandado no momento da execução da prisão.
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[3] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 5 ed. São Paulo, Saraiva, 2011
[4]BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
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[7] BRASILEIRO, Renato. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013
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[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 16 ed. São Paulo: Forense, 2017.
[11] PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2017.
[12] ______. Decreto-Lei n° 3.689/41. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm> Acesso em: 08 abr. 2022.
Graduado pela Universidade Estácio de Sá. Advogado. Pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Paulo Figueiredo Fonseca. Da prisão sem mandado em caso de crimes inafiançáveis à luz da constituição federal – Art. 287 do CPP Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 abr 2022, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58221/da-priso-sem-mandado-em-caso-de-crimes-inafianveis-luz-da-constituio-federal-art-287-do-cpp. Acesso em: 26 dez 2024.
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