Resumo – A denúncia é a peça inicial que dá início ao procedimento para a instauração do processo penal. Sem a denúncia não há processo criminal, à luz do princípio do promotor natural e do devido processo legal. Cabe ao judiciário verificar se os elementos mínimos necessários da peça de acusação estão nela presentes, autorizando com isso o prosseguimento do feito. As consequências do recebimento da denúncia dão origem a divergência doutrinária e jurisprudencial sobre sua natureza e alcance da necessidade e profundidade de sua fundamentação.
Palavras-chave – Direito Processual Pena. Denúncia. Fundamentação. Direito fundamental ao devido processo legal. Teoria Geral do Processo. Denúncia. Decisão. Despacho. Natureza jurídica.
Sumário – Introdução. 1. Teoria Geral do Processo Penal e lide penal. 2. Da rejeição da denúncia. 2.1. Do momento de recebimento da denúncia. 2.2. Hipóteses de rejeição da denúncia. 2.2.1. Inépcia da inicial acusatória. 2.2.2. Falta dos pressupostos processuais e condições da ação. 2.2.3 Ausência de justa causa. 3. Do recebimento da denúncia. 3.1 Da necessidade de fundamentação do recebimento da denúncia. 3.2 Da profundidade da fundamentação do recebimento da denúncia. 3.3. Da novidade incluída pela Lei 13.964/19 no bojo da Lei 12.850/13. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende esclarecer a existência de divergência acerca da necessidade de fundamentação do recebimento da inicial acusatória, as razões dessa divergência e o atual posicionamento doutrinário e jurisprudencial. Não pretende encerrar a divergência, mas apenas expor as correntes existentes e eventuais consequências de sua adoção, em especial no que toca a anulação do processo e a interrupção da prescrição.
Para tanto, apoia-se a pesquisa em informações doutrinárias e jurisprudenciais, construídas à luz do contraditório e da ampla defesa, enfrentando o assunto pelo método hipotético-dedutivo.
1 TEORIA GERAL DO PROCESSO PENAL E LIDE PENAL
Em que pese a resistência de parte da doutrina[1] em falar em uma teoria geral do processo, é inegável a existência de princípios e origens comuns ao processo civil e ao processo penal, pois tanto a tutela da liberdade quanto a da propriedade estão asseguradas pelo devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), conforme destaca o Professor Nicolitt.[2]
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;[3]
Importante abandonar a noção de lide dada por Carnelutti (lide como conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida) como diferenciador entre o processo civil e o processo penal, especialmente porque, no dizer da doutrina, ela é um elemento não essencial (acidental) a ambos os ramos processuais.
O elemento diferencial repousa na pretensão, essencial ao processo. A pretensão penal será sempre punitiva ou de liberdade. Parcela da doutrina fala em pretensão acusatória.
Destaca o professor Afrânio Silva[4] que o processo tem por objetivo a satisfação da pretensão. Desse modo, a jurisdição penal não tem a finalidade de recompor o direito subjetivo da vítima violado pelo crime. Na verdade, o Estado reage, no processo, através de uma pretensão punitiva visando recompor a ordem jurídica desrespeitada pela prática da infração penal.
Os estudos quanto à natureza jurídica do processo ganharam impulso a partir da obra de Oskar Von Bullow (Teoria dos Pressupostos Processuais em 1868) que concebia o processo como relação jurídica, passando por visões como a de Afrânio que o considera uma categoria autônoma, até concepções como a de Nicolitt que o enquadra como garantia fundamental (art. 5º, LIV, da CF) ou de a Elio Fazzalari que vê o processo como um procedimento realizado em contraditório.
Nota-se, portanto, que se a própria natureza do processo mostrou-se mutável ao longo da história e de seu estudo, de modo que também é mutável a natureza jurídica de seus institutos.
1.1 PROCESSO PENAL E PROCEDIMENTO
Processo penal é um procedimento realizado em contraditório, animado por uma relação jurídica e que visa à satisfação de uma pretensão penal.
Já o procedimento é apenas o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo. É a manifestação exterior deste. A noção de procedimento é basicamente formal, não passando da coordenação de atos que se sucedem e que objetivam um provimento final.[5]
Destaca a doutrina que o procedimento é uma coordenação sucessiva de atos que exteriorizam o processo. O processo desenvolve verdadeira relação entre as partes, ao passo que procedimento é apenas a relação entre os atos ocorridos no curso do processo.
Ainda, continua a doutrina, procedimento é o itinerário que deve ser desenvolvido para que, ao final, possa ser exercida a pretensão penal punitiva, sem o qual esta não restará legítima. Percebe-se portanto que procedimento decorre logicamente do comando constitucional do devido processo legal.
2 DA REJEIÇÃO DA DENÚNCIA
O artigo 395 do Código de Processo Penal trata das hipóteses em que ocorrerá a rejeição da inicial acusatória.[6]
Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
I – for manifestamente inepta (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
III – faltar justa causa para o exercício da ação penal. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
Parágrafo único. (Revogado) Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
Com a esperada alteração legislativa de 2008, ocorre não apenas um deslocamento da norma de capítulo específico denominado “Ação Penal”, mas também maior especificação dos termos do referido artigo: (i) utilização da terminologia “inépcia da inicial”; e (ii) a consagração da ausência de “justa causa” como causa de rejeição.
No que toca o rol de testemunhas, é entendimento majoritário que esse elemento, na denúncia, é opcional e de acordo com o acervo probatório disponível e suficiente para a formação da opinião delitiva do membro do Ministério Público.
No número máximo de 8 testemunhas devem ser abstraídas as não compromissadas, o ofendido e os peritos. Em relação à acusação, o número relaciona-se com a quantidade de fatos criminosos imputados. Para quem admite a denúncia alternativa, também haveria fatos múltiplos, admitindo-se 8 testemunhas em relação a cada fato. Para Afrânio[7], a denúncia alternativa não viola a ampla defesa, mas a concretiza, na medida em que se há dúvidas se o agente cometeu um ou outro crime, a coisa julgada ao final acobertará ambos.
No que toca as condições da ação é assente na doutrina que a remoção da possibilidade jurídica do pedido como condição da ação civil não afeta a teoria do direito processual penal, permanecendo nessa seara, como condições da ação: (i) a legitimidade da parte, ativa e passiva; (ii) o interesse jurídico, não apenas econômico ou sentimental; e (iii) a possibilidade jurídica do pedido, sendo pedido impossível, por exemplo, a aplicação da pena de morte.
2.1 DO MOMENTO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA
A Lei 11.719/2008 deu nova redação ao art. 399 do CPP, o que gerou certa dúvida quanto ao momento do recebimento da denúncia.
Parte da doutrina sustenta que o momento adequado para o recebimento é o do art. 399 do CPP numa interpretação prospectiva, comprometida com o projeto constitucional de efetivar a ampla defesa e o contraditório, com reflexos no marco interruptivo da prescrição.
Deve-se permitir ao acusado influir na decisão de recebimento ou não da denúncia, seguindo-se logo em seguida a verificação do art. 397 do CPP.
Outro segmento defende que o momento correto é o art. 396 do CPP, ou seja, tão logo seja remetida ao juiz a denúncia ou queixa, deve ele avaliar se receberá ou rejeitará a denúncia, citando o réu para oferecer resposta à acusação caso a receba.
Para esta corrente, é indevida a referência feita pelo art. 399, pois a demanda já teria sido admitida, inclusive diante do teor do art. 363 do CPP.[8]
Art. 363. O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.
De acordo com parcela significativa da doutrina, após a reforma legislativa operada pela Lei 11.719/2008, o momento do recebimento da denúncia se dá, nos termos do artigo 396 do Código Penal, após o oferecimento da acusação e antes da apresentação de resposta à acusação, seguindo-se o juízo de absolvição sumária do acusado, tal como disposto no artigo 397 da Lei Processual Penal.
Sugere ainda, Afrânio Silva Jardim[9], que se faça uma interpretação conforme do art. 396 do CPP de modo a se ler “notificação” no lugar de citação, incluindo um contraditório prévio ao recebimento/rejeição da denúncia/queixa; e uma declaração de nulidade parcial sem redução de texto do art. 399 do CPP (“recebê-la-á”), para melhor conformação com o modelo constitucional que tem o contraditório e o direito de defesa como bases fundantes.
2.2 HIPÓTESES DE REJEIÇÃO DA DENÚNCIA
2.2.1 INÉPCIA DA INICIAL ACUSATÓRIA
Inépcia da inicial nada mais é do que aquela exordial que deixa de cumprir os requisitos mínimos dispostos no artigo 41 da Lei Processual Penal, enumerados da seguinte forma: (i) exposição do fato criminoso e suas circunstâncias; (ii) qualificação do acusado ou esclarecimentos que permitem a sua identificação; (iii) classificação do crime; e (iv) quando necessário, rol de testemunhas.
Vale ressaltar que é posição pacífica que a denúncia genérica, sem limitar os fatos ou acusados, não permite o exercício do contraditório e ampla defesa em sua integralidade. De acordo com arestos dos tribunais superiores, tal espécie de denúncia é afrontosa ao estado democrático de direito e outra não poderia ser a conclusão desses tribunais.[10]
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 121, § 3º, DO CÓDIGO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. DENÚNCIA INEPTA.
I – O trancamento de ação por falta de justa causa somente é viável desde que se comprove, inequivocamente, hipóteses, v.g., como a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito.
II – A ausência de justa causa só pode ser reconhecida se perceptível de imediato com dispensa ao minucioso cotejo do material cognitivo. Se é discutível a caracterização de eventual ilícito criminal, não há que se trancar a ação penal por ausência de justa causa.
III – A inicial de acusação que, sucinta e genérica, não descreve objetiva e concretamente conduta delitiva e a participação do denunciado é formalmente inepta, dada a inobservância do disposto no art. 41 do CPP. Recurso parcialmente provido para anular o processo a partir da denúncia, inclusive.
Predomina na jurisprudência, contudo, o entendimento de que, em situações excepcionais, diante da gravidade e complexidade objetiva (concurso de crimes) ou subjetiva (concurso de agentes) dos fatos, deve-se admitir a denúncia geral, que não individualize plenamente a conduta de cada agente, desde que não inviabilize a defesa.
Essa compreensão que autoriza a denúncia geral não significa que a sentença condenatória possa ser igualmente geral. Apenas o ato de imputação dos fatos, para fins de instauração do processo penal, pode ser não individualizado em casos excepcionais. No curso do processo será necessário individualizar especificadamente os atos praticados pelos agentes, para então restar autorizada a condenação.
Ou seja, esclarecem os julgados importante distinção entre denúncia genérica e denúncia geral, a primeira rechaçada por violação a garantias fundamentais e a segunda autorizada em razão da indefinição dos fatos e agentes, sem possibilidade, no momento de oferecimento da exordial, de definir a conduta individualizada de cada um.
Consideram ainda os tribunais ser inepta a denúncia alternativa, na medida em que ela impossibilita a plenitude da defesa, devendo o parquet fazer a opção pela classificação do crime antes do oferecimento da denúncia, procedendo a outras diligências caso necessário via investigação preliminar. A impossibilidade de denúncia alternativa não significa vedação à adequação típica realizada pelo magistrado por meio do instituto da emendatio libelli.[11]
Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 1o Se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 2o Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
2.2.2 FALTA DOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS E CONDIÇÕES DA AÇÃO
Pressupostos processuais é expressão em que estão incluídos: (i) de existência: necessários para o nascimento da relação processual; e (ii) de validade: necessários para o regular desenvolvimento do processo.
É criticável a postura do legislador na medida em que a falta de pressuposto processual não leva sempre à rejeição da inicial.
Condições da ação são a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes e o interesse de agir.
2.2.3 AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA
A justa causa consiste num lastro probatório mínimo sobre a existência material e a autoria de um fato criminoso e de todas as circunstâncias, ou seja, é a prova da existência do crime e os indícios suficientes de autoria.
Vale ressaltar que a justa causa é conceito que se espraia por todo o direito processuais penal, devendo ser considerado quando da concessão de requerimento de medida cautelar pessoal (p. ex. prisão preventiva) ou real (p. ex. na concessão de pedido de sequestro).
O CPP elenca a justa causa como um requisito a parte para rejeição da inicial, razão pela qual a doutrina majoritária entende que não é condição da ação.
3 DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA
O recebimento da denúncia é questão extremamente debatida na doutrina e jurisprudência. Não apenas a necessidade de fundamentação, objeto deste artigo, como inclusive seu momento. Adiante, analisaremos de forma separada os argumentos favoráveis e contrários à necessidade de fundamentação e a profundidade (espécie de cognição) exigida nessa fundamentação.
3.1 DA NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA
Como referido, há divergência acerca da necessidade e da profundidade da fundamentação da decisão ou despacho (a depender da corrente adotada) de recebimento da denúncia.
Por ora, ater-nos-emos a necessidade de fundamentação.
A necessidade de fundamentação de uma decisão judicial decorre tanto da CR/88, de forma expressa, como da própria lógica do sistema democrático e da necessidade de justificação de decisões sem representatividade indireta. Cabe ao judiciário fundamentar suas decisões como poder, conferindo legitimidade às suas decisões e permitindo, com isso, o convencimento das partes e suas insurreições por vias próprias (recursos, ações autônomas e sucedâneos recursais).
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
Importante ressaltar que a CR/88 cita que as “decisões” serão fundamentadas. Por isso, historicamente, dispensa-se a fundamentação de despachos, em especial aqueles ordinatórios de mero prosseguimento do feito.
Nesse sentido, importante questionar a natureza jurídica da decisão/despacho de recebimento da denúncia.
Fato é que todo aquele provimento judicial que produz efeitos na esfera jurídica de alguém deve ser encarado, a princípio, como decisão. Sendo o recebimento da denúncia ato judicial capaz de afastar o corrimento da prescrição da pretensão punitiva, parcela considerável da doutrina compreende tal ato como verdadeira decisão judicial.[12]
Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se:
I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa;
Por essas razões, a doutrina aparentemente majoritária se posiciona pela natureza jurídica do ato como verdadeira decisão.[13]
Porém, deve-se ressaltar corrente em sentido contrário, amparada na ausência de efeitos internos do despacho que recebe a denúncia, sendo a interrupção da prescrição efeito externo, não próprio do conteúdo do despacho.
O CPC, inclusive, possui posição semelhante no que toca a natureza jurídica do ato, determinando tratar-se de despacho o ato que ordena a citação e interrompe a prescrição, dando a entender que a interrupção da prescrição como efeito do ato não é suficiente para classificá-lo como decisão judicial.
Art. 240. A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
§ 1º A interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação.
Fato é que a jurisprudência, historicamente, dispensava a fundamentação no ato de recebimento da denúncia. Porém, atualmente, surge como tendência a necessidade de fundamentação adequada ao ato e ao momento, em especial à luz dos argumentos trazidos pela defesa.[14]
2. A decisão de recebimento da denúncia possui natureza interlocutória, prescindindo de fundamentação complexa (Precedentes).
3. Caso em que o julgador, nem mesmo de forma concisa, ressaltou a presença dos requisitos viabilizadores da ação penal. Deixou de verificar a presença dos pressupostos processuais e das condições da ação, tampouco tratou da existência de justa causa para o exercício da ação penal, limitando-se a cuidar da presença dos pressupostos intrínsecos à peça processual, nestes termos: "Recebo a denúncia, pois a peça acusatória preenche todos os requisitos do art. 41 do CPP". (RHC 59759 STJ)
Mesmo na clássica decisão do Supremo Tribunal Federal quando da solução do HC 70.763 o Ministro Celso de Melo sentiu por bem consignar em seu voto que: “De qualquer maneira, e mesmo tendo presente a jurisprudência desta Suprema Corte que tem ressaltado a desnecessidade de motivação para o ato de recebimento da denúncia, é relevante observar que, na espécie, houve, efetivamente, manifestação fundamentada quando da prolação do ato judicial em questão.”
Logo, resta claro que a questão não é pacífica, sendo, contudo, mais prudente do ponto de vista processual que o recebimento da denúncia seja razoavelmente fundamentado, à luz do caso concreto.
3.2 DA PROFUNDIDADE DA FUNDAMENTAÇÃO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA
A fundamentação é conteúdo integrante da própria decisão judicial, conforme art. 489 do CPC[15] e art. 381 do CPP:
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
Art. 381. A sentença conterá:
III - a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;
O processo, contudo, admite mais de uma espécie de fundamentação. Nesse sentido, a doutrina classifica a fundamentação em sumária e exauriente.[16]
Cognição exauriente é aquela realizada após todas as fases ordinárias do processo: postulatória; instrutória; e finalmente decisória. No processo penal a cognição exauriente resulta em condenação ou absolvição, ou eventualmente nulidade já que a aplicação da teoria da asserção na cognição exauriente no processo penal não possui os mesmos efeitos do processo civil. Nesse sentido, a ilegitimidade da parte acusatória reconhecida ao final do processo penal não gera absolvição, mas nulidade do processo, por exemplo.
Já cognição sumária é aquela decorrente de juízo sobre fatos ainda em análise, típica de decisões cautelares e antecipadas, de urgências ou de evidência. No processo penal o maior e mais comum exemplo de cognição sumária é justamente o recebimento da denúncia. Dessa forma, para que a denúncia seja recebida basta a aparência de regularidade da exordial, com todos os elementos exigidos pelo artigo 41 do CPP, narrados de forma lógica e fundamentada, apta a autorizar a instauração de persecução criminal.
Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.
Atualmente a jurisprudência se posiciona nesse sentido: a decisão que recebe a inicial acusatória é decisão interlocutória mista e, por isso, exige fundamentação, sendo esta pautada em cognição sumária.
Não cabe ao juiz, salvo hipóteses de absolvição sumária, realizar juízo típico de cognição exauriente e absolver ou condenar o acusado no momento inicial do processo, independentemente das divergências sobre o momento do recebimento da denúncia.
3.3 DA NOVIDADE INCLUÍDA PELA LEI 13.964/19 NO BOJO DA LEI 12.850/13
Atualmente diz a Lei 12.850/13[17] que o recebimento da denúncia não pode ser fundamentado apenas nas declarações do colaborador.
Art. 4º - § 16. Nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
II – recebimento de denúncia ou queixa-crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Podem ser extraídas duas normas desse único dispositivo[18] (conceito integralmente aceito, já que norma e dispositivo são elementos distintos).
A primeira é que o recebimento da denúncia deve ser fundamentado, ao menos no que toca os crimes praticados por organizações criminosas e o próprio crime de organização criminosa.
A segunda é que as declarações do colaborador são servem, exclusivamente, como fundamento do recebimento da denúncia.
Parece, portanto, que o legislador se aproxima do modelo mais recente da jurisprudência, ao considerar o recebimento da denúncia como um ato a ser fundamentado, sem, contudo, determinar expressamente a necessidade de juízo exauriente, apenas afastando a fundamentação exclusiva em caso de colaboração premiada (e do contrário não poderia ser).
Tal desdobramento, contudo, ainda não foi suficientemente abordado pela jurisprudência dos tribunais superiores.
CONCLUSÃO
Longe de pretender encerrar a acirrada discussão acerca da fundamentação da decisão que recebe a denúncia, pretendeu o presente trabalho traçar os atuais parâmetros das posições doutrinárias e jurisprudenciais. Restou claro, portanto, que o tema é sensível e supera o mero tecnismo. Possui relevância prática em razão dos efeitos materiais do recebimento da denúncia.
Caso decida-se pela absoluta necessidade e profunda fundamentação da denúncia o despacho de cite-se no processo penal é nulo e não interromperá a prescrição, sendo sua relevância ululante.
Lado outro, tomando por base a atual jurisprudência e majoritária doutrina, deve o magistrado fundamentar suficientemente a decisão e pautado nas razões da defesa caso já as possua. Tal fundamentação, contudo, obedecerá a regra da cognição sumária não exauriente, ou seja, dispensa profundidade acerca de todos os elementos da denúncia, já que não é nesse momento realizado juízo condenatório e apenas excepcionalmente pode ser o acusado absolvido antes do processamento do feito.
Por fim, há a possibilidade de compreender o ato como mero despacho ordinatório, posição atualmente superada, mas que ainda encontra fundamento em parcela minoritária da doutrina.
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[1]JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 18 ed. São Paulo Saraiva
[2]NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 9 ed. Minas Gerais: D'Plácido, 2019
[3]BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 23 mar. 2022.
[4]JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho. 15 ed. Bahia: Juspodivm, 2018
[5] DINAMARCO, Cândido Rangel, BADARÓ Gustavo Henrique Righi Ivahy, LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 32 ed. Bahia: Juspoivm, 2020.
[6] ______. Decreto-Lei n° 3.689/41. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm> Acesso em: 08 abr. 2022.
[7] JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho. Direito Processual Penal 15 ed. Bahia: Juspodivm, 2018
[8] ______. Decreto-Lei n° 3.689/41. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm> Acesso em: 08 abr. 2022.
[9] JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho. Direito Processual Penal 15 ed. Bahia: Juspodivm, 2018
[10] ______. Superior Tribunal de Justiça. RHC 12.663/SP. Relator: Ministro Felix Fischer. Disponível em <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=200200441973&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 08 abr. 2022.
[11] ______. Decreto-Lei n° 3.689/41. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm> Acesso em: 08 abr. 2022.
[12] ______. Decreto-Lei n° 2.848/40. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> Acesso em: 08 abr. 2022.
[13] BRASILEIRO, Renato. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013
[14] ______. Superior Tribunal de Justiça. RHC 59.579/SC. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Disponível em <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201501184031&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 08 abr. 2022.
[15]______. Lei n° 13.105/15. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em: 08 abr. 2022.
[16]CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de Direito Processual Civil. 1 ed. São Paulo: Atlas, 2022
[17] ______. Lei n° 12.850/13. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm> Acesso em: 08 abr. 2022.
[18] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
Graduado pela Universidade Estácio de Sá. Advogado. Pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Paulo Figueiredo Fonseca. Da (des)necessidade de fundamentação da decisão que recebe a denúncia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 fev 2024, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58225/da-des-necessidade-de-fundamentao-da-deciso-que-recebe-a-denncia. Acesso em: 26 dez 2024.
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