Resumo: Ferrajoli nos ensina em um dos seus dez axiomas sobre garantias de direitos mínimos do acusado que “não há culpa sem processo”. Logo, para que alguém seja considerado culpado, faz-se necessário que o Estado que é o detentor do ius puniendi, por meio de um processo, forme ao seu final, com base no conjunto probatório, a convicção de culpa de alguém. Ocorre que no Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido ao Código de Processo Penal (CPP) pela lei 13.964 de 2019, popularmente, conhecida como Pacote anticrime, mitigou os princípios do processo penal, entre os quais destacamos a obrigatoriedade da Ação Penal Pública (AP), uma vez que embora não seja o caso de arquivamento do inquérito penal, o Ministério Público (MP) pode, atendendo determinados requisitos previstos no CPP, deixar de oferecer a denúncia e celebrar o acordo ainda na fase pré-processual. Entre os requisitos está a necessidade de confessar de forma formal e circunstancial a prática da infração penal. Nesta perspectiva, o artigo reflete sobre o valor da confissão no ANPP. A pergunta que norteia o trabalho é: Por se tratar de um acordo, haveria necessidade de confessar o cometimento do crime já que o acusado não exerceu suas garantias constitucionais que lhe assegura o devido processo legal? Para o alcance da finalidade do artigo utilizou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica. Espera-se contribuir com debate sobre a constitucionalidade e a mitigação do garantismo na justiça penal negociada.
Palavras-chave: Confissão; Acordo de Não Persecução Penal; transparência e Publicidade.
Abstract: Ferrajoli teaches us in one of his ten axioms about guarantees of minimum rights for the accused that “there is no guilt without trial”. Therefore, in order for someone to be found guilty, it is necessary that the State that is the holder of the ius puniendi, through a process, forms at the end, based on the evidence set, the conviction of someone's guilt. It so happens that the Criminal Non-Prosecution Agreement (ANPP), introduced to the Criminal Procedure Code (CPP) by law 13,964 of 2019, popularly known as the Anti-Crime Package, mitigated the principles of criminal procedure, among which we highlight the mandatory criminal action. Public (AP), since, although it is not the case of shelving the criminal investigation, the Public Prosecutor's Office (MP) may, meeting certain requirements set out in the CPP, stop offering the complaint and enter into the agreement still in the pre-procedural phase. Among the requirements is the need to formally and circumstantly confess the practice of the criminal offense. In this perspective, the article reflects on the value of confession in the ANPP. The question that guides the work is: Because it is an agreement, would there be a need to confess to committing the crime since the accused did not exercise his constitutional guarantees that ensure due process of law? In order to reach the purpose of the article, the bibliographic research was used as a methodology. It is expected to contribute to the debate on the constitutionality and mitigation of guaranteeism in negotiated criminal justice.
Keywords: Confession; Non-Persecution Agreement; transparency and publicity.
Introdução
Em um estado democrático de direito, na perspectiva kelseniana (2006), é a Constituição a expressão da vontade soberana de um povo. Logo, todo o ordenamento jurídico se sujeita aos seus mandamentos. De modo que, se uma lei contrária à Constituição, ela é uma lei morta desde o seu nascimento, devendo o controle de constitucionalidade se ocupar de declarar a sua inconstitucionalidade e, se for o caso, modular os seus efeitos, que, em regra, serão ex tunc (LUNARDI, 2020). No Brasil é o Poder Judiciário competente para exercer o controle concentrado e difuso. O primeiro é exercido unicamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o segundo, além do STF, qualquer juiz ou tribunal. Esse mecanismo de controle é extremamente importante pois mantém a superioridade da constituição frente às outras normas (BARROSO, 2019).
Na atualidade, o controle de constitucionalidade ganhou destaque, em função do papel cada vez mais protagonista do Judiciário na defesa dos direitos fundamentais dos indivíduos. E é neste contexto, que há algum tempo se debate a constitucionalidade da Resolução n.181 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNPM), alterada pela Resolução nº 183, de 24 de janeiro de 2018 e que institui o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).
Todavia, o que era uma resolução, por vontade do legislador, agora faz parte do Código de Processo Penal (CPP), com a introdução pelo Pacote Anticrime, lei 13.694 de 2019, do artigo 28-A. Com a alteração, se infere da exegese do artigo, que o Ministério Público (MP), titular da Ação Penal Pública (APP), pode propor ao investigado/indiciado de uma prática de infração penal, praticado sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o ANPP. Caso seja aceito, fará com que o MP renuncie ao seu poder-dever de denunciar, e, desde que os termos ajustados sejam plenamente cumpridos pelo investigado/indiciado, entre outros benefícios, não terá a infração penal anotada em sua certidão de antecedentes criminais. Em outra palavra, ele não será reincidente, logo, não terá nenhum embaraço e não sofrerá nenhuma consequência a que estão sujeitos os condenados.
Aparentemente, parece ser uma inovação positiva, afinal o beneficiário não sofrerá ius puniendi do Estado, sequer será processado, não haverá persecução penal, quando muito ele se encerrar ainda na fase de investigação, na fase do inquérito policial ou civil. Por outro lado, está a obrigatoriedade da confissão que de relativa no Código de Processo Penal, nesta fase pré-fase da persecução penal, é uma condição imposta ao indiciado. Em outras palavras, se o réu não confessar a prática do ilícito não haverá o acordo (MARCÃO, 2021).
Ocorre conforme nos ensina Ferrajoli (2022) em um dos seus dez axiomas sobre garantias de direitos mínimos do acusado, no processo penal e no direito penal, “não há culpa sem processo”. Logo, para que alguém seja considerado culpado, faz-se necessário que o Estado que é o detentor do ius puniendi, por meio de um processo, forme ao seu final, com base no conjunto probatório, a formação de convicção de culpa de alguém. Por outro lado, é direito de garantia do acusado, o devido processo legal, o direito à ampla defesa e ao contraditório, conservando durante todo o processo seu estado de inocência até a sentença condenatória. É o que extraímos dos princípios explícitos em nossa Constituição Federal de 1988 e dos tratados internacionais na qual o Brasil é signatário.
Todavia, no ANPP isso não acontece, já que não existe instrução criminal e a formação de culpa pelo Ministério Público tem como parâmetro a confissão do indiciado e os elementos probatórios colhidos em fase de inquérito e cabe ao juiz apenas o controle de legalidade do acordo homologado. De modo que, o artigo reflete sobre a constitucionalidade e o garantismo na justiça penal negocial, em especial atenção sobre o valor da confissão nesta fase. A pergunta que norteia o trabalho é: Por se tratar de um acordo, haveria necessidade de confessar o cometimento do crime já que o acusado não exerceu suas garantias constitucionais que lhe assegura o devido processo legal? A exigência da Confissão para celebração do acordo é inconstitucional?
Por fim, a pesquisa utiliza como método a pesquisa qualitativa documental, uma vez que foram pesquisados trabalhos publicados sobre o tema em livros e artigos disponibilizados nos bancos de dados disponíveis gratuitamente em plataforma virtual.
1.Garantismo penal e o Acordo de Não Persecução Penal
O garantismo penal de Ferrajoli (2002) não defende a eliminação do Direito Penal, mas a sua correta aplicação por parte do Estado, o que pode significar um instrumento para a garantia do respeito aos direitos do acusado. Em sua obra "Direito e Razão: teoria do Garantismo Penal", ele observa que é possível explicar o "garantismo" a partir de quatro planos classificados em modelos, quais sejam: o modelo normativo de direito, modelo da estrita legalidade, o epistemológico, onde encontramos o sistema cognitivo ou de poder mínimo; o político capaz de minimizar a violência e maximizar a liberdade e, por fim, o jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos.
Garantismo designa um modelo normativo de direito, precisamente, no que diz respeito ao Direito penal, o modelo da estrita legalidade, próprio do estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. (FERRAJOLI, 2002, p. 786)
Ferrajoli assenta seu sistema garantista em dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, entre os quais encontra-se o Nulla culpa sine judicio, na qual assegura que “não há culpa sem processo”. Além dos, Nullum judicium sine accusatione, que assegura o princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação, o Nulla accusatio sine probatione, que trata do princípio do ônus da prova ou da verificação; e o Nulla probatio sine defensione; princípio do contraditório ou da defesa.
Assim, no que tange às garantias processuais do acusado, tomando como base os axiomas acima citados, pode-se concluir que eles são de aplicação imediata, e no Brasil, possui respaldo da Constituição Federal/88, pois tais princípios estão positivados no artigo 5º, como direitos fundamentais da pessoa humana. De modo que, o indivíduo que sofre o uis puniendi do Estado brasileiro deve ter condições de usar de todos os meios à sua disposição para provar a sua inocência, não sendo possível pela garantia da nossa Lei Maior, condenar alguém, pela prática de uma infração penal antes do devido processo legal, este que, no nosso sistema punitivo brasileiro acusatório, não se perfaz sem contraditório e ampla defesa. Vejamos a definição nas palavras de Mougenot (2012) como isso se desenvolve ao explicar o ramo do direito processual penal,
é o instrumento do Estado para o exercício da jurisdição em matéria penal. O direito processual penal, portanto, pode ser definido como o ramo do direito público que se ocupa da forma e do modo (i.e.: o processo) pelos quais os órgãos estatais encarregados da administração da justiça concretizam a pretensão punitiva, por meio da persecução penal e consequente punição dos culpados (MOUGENOT, 2012, p.6).
Neste contexto, extrai-se dos conceitos apresentados que até a sentença condenatória transitada em julgado, deve prevalecer em relação ao acusado à presunção do seu estado de inocência. Isto é, o princípio da presunção da inocência impõe aos agentes públicos envolvidos na persecução penal o dever de tratar o acusado como inocente durante toda a persecução penal, até que se prove o contrário, nos termos da Constituição, em seu art. 5º, LVII, de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
É nesta perspectiva, sobre o prisma axiológico de Ferrajoli e as garantias constitucionais do acusado, que nos debruçamos ao analisar o Acordo de Não Persecução penal (ANPP), do artigo 28-A do CPP, que foi inspirado na Resolução n.181, alterada pela Resolução nº 183, de 24 de janeiro de 2018, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Em linhas gerais, pode-se dizer, que o Acordo é proposto ao indiciado de uma prática de infração penal, desde que praticado sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos. Caso seja aceito, fará com que o MP renuncie ao seu poder-dever de denunciar, e, desde que os termos ajustados sejam plenamente cumpridos pelo indiciado, entre outros benefícios, não terá a infração penal anotada em sua certidão de antecedentes criminais. Em outra palavra, o investigado não será reincidente, logo, não terá nenhum embaraço e não sofrerá nenhuma consequência a que estão sujeitos os condenados.
Aparentemente, parece ser uma inovação positiva, afinal o indivíduo não sofrerá ius puniendi do Estado, sequer será processado, não haverá persecução penal, quando muito ela se encerrar ainda na fase de investigação. Há neste sentido, conforme nos ensina Aury Lopes Jr (2021), uma ampliação de mecanismos da justiça negocial no Brasil, e, consequentemente, a mitigação de princípios orientadores da Ação Penal, o que obriga o ordenamento jurídico a necessidade de se reposicionar o papel do MP na persecução penal.
Também é preciso que o processo penal brasileiro reposicione o Ministério Público na persecução penal, pois, a vingar um modelo negocial, já não há espaço para os princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade da acusação, e a indisponibilidade do objeto do processo penal. São questões que não podem coexistir com a concepção tradicional ainda vigente (JR., 2021, p.165).
Para Vasconcellos e Giacomolli (2015), o ANPP como um instrumento da justiça negocial é uma tendência irremediável no ordenamento jurídico brasileiro. Os Autores relacionam a Justiça Negocial como uma justiça mais célere, simplificada em relação aos procedimentos, “que almejam abreviar o caminho necessário à imposição de uma sanção penal, cujo maior expoente é a justiça negocial, essencialmente representada pela barganha” (GIACOMOLLi, VASCONCELLOS, 2015, p.15). Eles argumentam ainda que está entre as finalidades desse novo modelo de justiça criminal negocial, inspirado no modelo norte americano, o não aumento do encarceramento no país, já que o investigado não cumpriria pena de restrição de liberdade no sistema penitenciário brasileiro, que como se sabe , pelos dados divulgados pelo INFOPEN (2019), possui mais de 750 mil presos, sendo que mais de 40% são de presos provisórios, ou seja, pessoas encaradas em função de uma prisão cautelar, a espera de um julgamento.
Em decisão sobre o sistema penitenciário brasileiro, o Ministro Lewandowski do Supremo Tribunal Federal (STF), descreveu em seu voto as violações de direitos humanos aos que cumprem pena no Brasil,
Abundam relatos de detentos confinados em contêineres expostos ao sol, sem instalações sanitárias; de celas previstas para um determinado número de ocupantes nas quais se instalam diversos “andares” de redes para comportar o dobro ou o triplo da lotação prevista; de total promiscuidade entre custodiados primários e reincidentes e, ainda, entre presos provisórios e condenados definitivamente; de rebeliões em que agentes penitenciários e internos são feridos ou assassinados com inusitada crueldade, não raro mediante decapitações ((BRASIL, 2015, p. 19-20, RE 592.581)
Assim, o ANPP se apresenta como uma alternativa de política criminal escolhida pelo legislador frente à superlotação e as crescentes violações que ocorrem nos estabelecimentos penitenciários. Todavia, é imperioso que haja o cuidado na regulamentação desses institutos da justiça negocial criminal para que não haja violação de direitos fundamentais da pessoa humana.
É neste contexto que se discute a constitucionalidade das condições impostas ao beneficiário do instituto, uma vez que ele é obrigado a confessar a prática da atividade delitiva, de modo que, a confissão que outrora era relativa no CPP agora passa, ao menos para este instituto, ter caráter absoluta. Retomando a um passado distante do direito processual penal, conforme assevera Marcão (2021), na qual a confissão possuía um valor absoluto, considerada a rainha das provas.
Além disso, há no ANPP a mitigação dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, e, principalmente, da presunção da inocência do investigado/indiciado, haja vista que confissão formal e circunstanciada ocorre em uma fase pré-processual a suposta infração penal. É sobre as implicações da necessidade de confissão que passaremos a debater a seguir.
2.A Confissão no Acordo de Não Persecução Penal
Diante de uma proposta de acordo do Ministério Público, muitos, senão todos, aceitariam todos os ajustes obrigacionais, porque do contrário, seria enfrentar um processo penal e arriscar ao final dele, ir cumprir pena em uma cela superlotada do falido sistema penitenciário brasileiro e vivenciar todos os horrores do cárcere. Ainda assim, não se pode comemorar a inovação que traz o ANPP ao sistema penal brasileiro, pelo simples fato de evitar a prisão restritiva de liberdade. Todavia, se bem utilizada, nos parece ser um importante instrumento, e é por essa razão, que merece ser aprimorada.
Evidente, que sopesando na balança o peso de um processo penal, suas consequências sociais, psicológicas e criminais, que inclui a possibilidade de ser preso e cumprir pena em um estabelecimento do sistema penitenciário brasileiro, a tendência do indivíduo é de aceitar o acordo. É quase impossível, imaginar, que alguém, diante dessas circunstâncias, mesmo sendo inocente, não confesse o cometimento de uma infração penal. Não se trata de um ato de liberalidade, é uma exigência, pois como já vimos, o ANPP tem como um dos requisitos a confissão formal e circunstanciada, ou seja, ou o indiciado confessa ou não haverá acordo.
Tal exigência destoa de outros institutos semelhantes que existem no Brasil há mais tempo e que estão dispostos na lei 9.099/1995, dos Juizados Especiais e que julgam os crimes de menor potencial ofensivo. A norma prevê a possibilidade de composição dos danos civis (art. 74), a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89). São importantes instrumentos despenalizadores, mas nenhum exige a confissão para que o MP ofereça a possibilidade de acordo, bastando, tão somente, o preenchimento dos requisitos. AMARAL e MATA (2020), por exemplo, destacam essa diferença entre o ANPP e a transação penal como substancial, uma vez que a lei dos Juizados Especiais, não exige e nem vultua nenhuma menção quanto à culpa ou confissão do crime transacionado.
Junior (2020) ao analisar a importância da confissão no nosso ordenamento jurídico destaca que não foi da vontade do legislador conferir a esse procedimento um valor probatório absoluto e sim relativo. Para ele, o nosso legislador relativizou a importância do acusado confessar a infração penal para confirmação da culpa do indivíduo, de modo que, a confissão é tão somente mais um elemento que integra o conjunto probatório capaz de orientar o juiz na tomada de decisão diante da análise do caso concreto. Ao citar a Exposição de Motivos do CPP o autor destaca,
a própria confissão do acusado não constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Em suma, a confissão não é mais, felizmente, a rainha das provas, como no processo inquisitório medieval. Não deve mais ser buscada a todo custo, pois seu valor é relativo e não goza de maior prestígio que as demais provas (JUNIOR, 2020, p.724).
De modo que, o ANPP ao exigir a confissão quer que o indivíduo reconheça sua culpa, mesmo com a ausência do devido processo legal, o que contraria frontalmente os axiomas do professor Ferrajoli e a intenção do legislador brasileiro ao relativizar a confissão no ordenamento jurídico, que por si só, não constitui o condão de estabelecer convicção de culpa de alguém. Assim, tal exigência vai na contramão dos institutos da justiça negocial já existentes no Brasil e confere a confissão um caráter absoluto, característica que não possui mais no ordenamento jurídico brasileiro.
Marcão (2021) ao analisar o caráter relativo da confissão assevera que o julgador não pode julgar somente com base na confissão e que este deve levar em consideração todo o conjunto probatório. “A confissão confortada por outros elementos da instrução conduz o julgador, com particular segurança, a um melhor conhecimento dos fatos que o processo visa a apurar." (MARCÃO, 2021, p.1196)
Do modo como foi positivado, o instituto não abre espaço para a não exigência da confissão. Ao investigado/indiciado em relação a ANPP, que tem na barganha uma das suas principais características, não lhe sobram muitas opções. Pois este é aplicável à maneira do "ou-tudo-ou-nada" ou ainda do “pegar ou largar”. Todavia, se o indivíduo largar, como não é caso de arquivamento do inquérito, o MP, como titular da ação penal pública, dará seguimento ao processo, que, embora seja assegurado os direitos de garantia do acusado, não ocorre de forma assimétrica.
Junior (2020) em discussão sobre o desvalor probatório da confissão, compartilhou dois casos, na qual atuou como advogado. Entre as razões que fizeram seus clientes confessar e aceitar o acordo, está no fato de ambos desejarem ingressar no serviço público,
Conforme já exposto nas transcrições das petições orientadoras deste artigo, o acusado do crime contra a dignidade sexual precisava confessar porque é Bacharel em Direito, aprovado em concurso da Polícia Militar do Distrito Federal, pensando na possibilidade de outros concursos públicos. O acusado do outro processo também é Bacharel em Direito e pensa em realizar em concursos públicos. Conforme se vê o disposto no art. 28-A, § 12, do CPP, para os dois acusados, o sigilo sobre o processo é uma forte razão para se pretender o acordo de não persecução penal e, portanto, para realização da confissão exigida por lei (JUNIOR, 2020, p.6).
Outro aspecto relevante é que nesta regra do pegar ou largar, principalmente por exigir confissão, não há na lei exigência legal para que haja transparência dos atos até a assinatura do acordo, como por exemplo, a necessidade de que todos os atos sejam devidamente gravados, isto visando evitar abusos, ou questionamentos futuros sobre em que condições o indivíduo confessou o crime. Não se pode deixar de considerar, que futuramente, o indivíduo possa alegar que confessou porque foi torturado pelos representantes do Estado, o que configuraria crime nos termos da Convenção Internacional sobre Tortura, da própria Constituição Federal vigente e a legislação infraconstitucional sobre o tema.
É no mínimo estranho a não inclusão da necessidade de gravação de todos os atos do acordo, já que a própria Resolução do CNPM dispõe em seu artigo 18, § 2º, que “a confissão detalhada dos fatos e as tratativas do acordo serão registrados pelos meios ou recursos de gravação audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações, e o investigado deve estar sempre acompanhado de seu defensor.” Todavia, conforme destacado anteriormente, a lei não dispõe sobre isso, o que nos leva crer que não há a exigência de gravação por meio audiovisual na fase de assinatura do acordo. Como está a norma, um procedimento tão importante não precisa ser registrado por meio de recursos audiovisuais, sendo suficiente a assinatura das partes no acordo firmado.
Quer nos parecer que o legislador errou ao não ter previsto a necessidade de gravação, e mesmo a lei sendo silente, espera-se que o MP continue a seguir o que dispõe a Resolução produzida pelo próprio órgão, pois não se trata de um ato qualquer, trata-se de um ato na qual o indivíduo fará a narração de todos os fatos e as circunstâncias de uma infração penal, confessando a sua prática. Em outras palavras, a existência da possibilidade de um controle externo pressupõe a possibilidade de recuperar a verdade sobre os fatos, na qual a gravação fará diferença. A não gravação é preocupante já que toda a transparência neste caso é pouca dada à importância da confissão para a celebração do acordo.
2.1 Reflexões sobre a (in) constitucionalidade da Confissão no Acordo de não Persecução Penal
É bem verdade que existem debates, ainda que recentes, no meio acadêmico e jurídico sobre a necessidade ou não da confissão no ANPP, tendo como pano de fundo a sua constitucionalidade. Isto é, seria constitucional exigir que alguém se declare culpado para ter acesso ao ANPP? A exigência legal de confissão não contraria a Constituição e seus princípios fundamentais de garantia do acusado? Não contraria a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto de São José da Costa Rica, norma supralegal introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 678 de 1992? De igual forma, não fere o princípio da publicidade dos atos processuais o silêncio da lei sobre a obrigatoriedade da gravação das tratativas para assinatura do acordo?
Para Souza (2020), por exemplo, a confissão como está é essencial para prevenir equívocos. De modo que, ao confessar, o beneficiário confere ao MP a segurança jurídica de que o acordo será celebrado com o indiciado apontado pelas provas colhidas na fase inquisitorial como autor da infração penal. Para o autor, a opinio delict não é formada pela confissão, já que foi formada em momento anterior, quando do oferecimento da denúncia
Assim, o principal objetivo de se exigir a confissão seria o de possibilitar um cotejamento com a versão constante dos autos, observando se guarda correlação lógica e compatível com as demais provas até então produzidas, evitando-se com isso, a celebração de acordos com confissões desconexas com as circunstâncias de tempo, local, modo, etc.
Já para Monteiro (2020) a exigência é inconstitucional, fere os direitos fundamentais do indivíduo. Ele destaca ainda, que se trata de fase anterior há a persecução penal, onde não há nenhuma análise do mérito, de modo que é irrelevante a confissão para a homologação do acordo pelo juízo competente. Para ele, ao magistrado caberá, tão somente, a análise da voluntariedade e formalidade legal do instituto acordado previamente entre as duas partes, o que torna a confissão desnecessária e ilegal.
Na mesma linha de pensamento, Betta (2020) também argumenta que além da inconstitucionalidade, não há relevância da confissão no ANPP, eis que trata-se de acordo penal extraprocessual, onde não se afere culpa (e nem poderia se aferir, eis que afrontaria o devido processo legal); onde não há exame de mérito dos fatos; onde não se profere uma sentença penal condenatória. Logo desnecessária.
O Supremo Tribunal Federal, ainda não se pronunciou sobre ANPP a luz do Pacote Anticrime no que diz respeito à confissão, mas já foi provocado em função da aplicação retroativa do artigo 28-A do CPP, por meio do habeas Corpus, 191.464 de 2020, o que não é o foco deste artigo ora em questão, razão pela qual não iremos tratar. Todavia, é certo que o debate permanece e tão logo terá a Suprema Corte que decidir, seja em sede do controle difuso ou concentrado, sobre a constitucionalidade da confissão como requisito necessário para celebração do referido instituto ora em análise.
Conclusão
Este artigo trouxe reflexões preliminares sobre a obrigatoriedade da confissão no Acordo de Não Persecução Penal incorporado ao Código de Processo Penal pela Lei 13.964 de 2019, conhecida popularmente como Pacote Anticrime, bem como a mitigação dos axiomas do direito processual penal e do direito penal relacionados às garantias do acusado. Tomou-se como referência os axiomas desenvolvidos pelo Jurista Ferrajoli e que é amplamente compatível com o ordenamento jurídico brasileiro. Buscou-se apresentar os argumentos daqueles que são favoráveis e dos que são contrários à necessidade da confissão para que o Ministério Público proponha a celebração do acordo com o indiciado.
Neste sentido, buscou mais do que apresentar a natureza jurídica da confissão, bem como a sua finalidade, mas enquadrá-la em relação ao seu valor probatório, que como vimos não deve ser considerada a rainha das provas, já que ela tem um valor probatório relativo, como qualquer outra prova. Ou seja, a confissão não tem valor absoluto nem na fase de investigação e nem mesmo na fase de instrução criminal, devendo o juiz competente considerá-la para formação de juízo de culpabilidade dentro do conjunto probatório produzido, para só assim, sentenciar o acusado.
É bem verdade que a justiça criminal negocial chegou para ficar, é de fato um caminho sem volta e uma opção legítima do legislador. Em muitos aspectos, consideramos ser uma política criminal acertada e importante para a celeridade e a simplificação dos procedimentos da justiça criminal, alinhada à estratégia de evitar o aumento da população carcerária no Brasil. Todavia, não se pode perder de vista os parâmetros existentes na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional brasileira. De modo que, se na instrução criminal a confissão tem valor relativo, não tem justificativa para que em uma fase pré-processual, ela tenha um valor absoluto. O que nos leva a considerar como importante os argumentos dos autores que demonstram claramente ser ela desnecessária como requisito para celebração do acordo.
Outro aspecto que merece destaque é quanto à não exigência legal de transparência dos atos que compõem o ANPP até a sua assinatura pelas partes. Pelo princípio da publicidade todos os atos praticados pelos agentes públicos, em regra, são públicos. E neste caso, não estamos a falar de qualquer ato, mas um ato na qual alguém confessa a prática de uma infração penal. Desta forma, aqui também corroboramos, com aqueles que defendem que deve haver total transparência, afinal embora estejamos sobre as regras de um sistema acusatório, não existe uma relação assimétrica entre os representantes do Estado e o indivíduo. Não se pode desconsiderar o poder de império do Estado diante do particular, ainda mais na esfera penal. Desta feita, a publicidade dos atos, por meio de gravação audiovisual, se faz necessária, para evitar possíveis abusos, devendo o Ministério Público manter a exigência, conforme previsto na resolução interna nº 181 que disciplina o ANPP.
Por fim, a expansão da justiça criminal negocial no Brasil não deve ser implantada a qualquer custo. Não é o direito processual penal que precisa se adequar para incorporar os procedimentos da justiça criminal negocial. É esta que precisa balizar sua atuação respeitando os direitos e garantias individuais. De modo que, é imperioso, que haja a compatibilização entre seus procedimentos e os princípios constitucionais de garantia do acusado, tais como os princípios da presunção de inocência, o exercício do contraditório e da ampla defesa e o acesso ao devido processo legal. Em outras palavras, qualquer aparente avanço na legislação, tem que defender as garantias do acusado, impondo limite ao Estado no seu direito de punir. Do contrário, é ilegal, é inconstitucional, devendo o Judiciário declará-la em defesa dos direitos fundamentais. .
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Advogada, Jornalista, Mestre em Desenvolvimento Regional, Doutoranda em Direito Constitucional. Professora Universitária. Ex-Secretária de Cidadania e Justiça do Estado do Tocantins (2015-2017).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Gleidy Braga. Reflexões sobre o Acordo de Não Persecução Penal e o garantismo na justiça criminal negocial brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2022, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58254/reflexes-sobre-o-acordo-de-no-persecuo-penal-e-o-garantismo-na-justia-criminal-negocial-brasileira. Acesso em: 27 dez 2024.
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