PAULO RÓBSON MARTA DA SILVA[1]
(Coautor)
KÁTIA GOMES DA SILVA[2]
(Coautora)
RESUMO: O presente trabalho tratará de forma suscinta sobre como é dada a aplicação do direito estrangeiro na justiça brasileira. O direito internacional privado e suas normas formadoras são parte integrante da ordem jurídica de um país, desta forma, o embate surge quando se tem dúvidas em como deve ser o procedimento de aplicação das normas jurídicas quando em se tratando de situações internacionais e que engloba não só a ordem jurídica de um estado, mas também outros estados participantes nas lides. Dessa forma, é interessante analisar o que a lei brasileira entende como certo aplicar, o que as cortes superiores já aplicaram, assim como o posicionamento da jurisprudência e doutrinadores sobre o assunto. O trabalho visa explanar, de forma genérica e superficial, devido à complexidade do tema, a aplicação das leis estrangeiras, que por mais que pareçam distantes do cotidiano, se mostram muito mais próximas e corriqueiras do que se possa imaginar.
Palavras-chave: Direito internacional privado; Justiça brasileira; ordem jurídica nacional; Conflitos internacionais.
ABSTRACT: The present work will briefly address how foreign law is applied in Brazilian justice. Private international law and its formative norms are an integral part of the legal order of a country, in this way, the clash arises when there are doubts about how the procedure for applying the legal norms should be when dealing with international situations and which includes not only the legal order of a state, but also other states participating in the disputes. Thus, it is interesting to analyze what Brazilian law understands as right to apply, what the higher courts have already applied, as well as the positioning of jurisprudence and scholars on the subject. The work aims to explain, in a generic and superficial way, due to the complexity of the subject, the application of foreign laws, which, although they seem distant from everyday life, are much closer and more commonplace than one might imagine.
Keywords: Private international law; Brazilian Justice; national legal order; International conflicts.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Aplicação da Lei Estrangeira. 3. Conclusão. 4. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Quando se trata de conflitos de normas jurídicas, deve-se remeter ao surgimento destas. Na antiguidade não se falava em conflito de normas justamente pelo fato de não haver. Ocorria que o estrangeiro, via de regra, não tinha direitos fora do seu estado de origem, portanto, no caso de conflitos de interesses entre este e alguém do país em que estava, seria como se o estrangeiro não tivesse direito a nada, nem mesmo suscitar o questionamento já que seu direito era inexistente. Dessa forma o direito internacional privado sequer existia, já que o seu objeto de estudo e aplicação é justamente a resolução dos conflitos gerados entre estados diferentes.
No decorrer da história, com a necessidade de julgar os eventuais conflitos entre normas de diferentes estados, foram criados tribunais, estes por sua vez chamados de “excepcionais”, como exemplo o tribunal de Polemarca em Atenas. Após esses casos deixarem de ser exceções e se tornarem rotineiros, aliado à fixação do homem na terra e à estruturação maior por parte dos feudos, houve com isso o fim da chamada fase de personalidade da lei, aplicando-se então em substituição, o princípio da territorialidade da lei, o que conferia a aplicabilidade exclusiva da lei dos territórios a conflitos existentes, o que de certa forma evitava os conflitos, já que a regra seria somente esta.
A sociedade, porém, não se limitou a constituição de feudos, e com isso começou a ocorrer com mais frequência a circulação de pessoas e coisas no espaço, evidenciando conflitos que a territorialização destes por si só não conseguiria resolver sem deixar pelo menos uma das partes descontente e prejudicando assim a economia e os negócios pela dificuldade de obter o justo. Aliado a isso, muitas ordens jurídicas foram surgindo e com essa pluralidade de ordenamentos para as mesmas situações, a dúvida sobre o direito a ser aplicado foi se tornando um problema bem mais corriqueiro. Como a unificação das legislações existentes não é possível por conta da autonomia jurídica de cada estado, em negociações internacionais, a dúvida sobre qual o direito a ser aplicado surge, tendo que escolher entre o nacional e o estrangeiro, podendo ser mais de dois direitos envolvidos, o que pode tornar ainda mais complexa a decisão.
As primeiras tentativas de estipular qual o direito a ser aplicado marcam em si o início da ciência do direito internacional privado. Essa ciência, após todo o desenvolvimento a que foi submetida e no seu grau de maturidade integra a chamada ordem jurídica interna de cada estado, e com isso acaba por vincular o juiz a atuar de ofício de acordo com essas normas. Com a aplicação desse ramo do direito, percebeu-se que o grande gargalo é saber quando e qual norma aplicar nos casos em que normas estrangeiras estão presentes no processo.
Um fator importante quando se trata de conflito de normas jurídicas é o “elemento da estraneidade”, que, resumidamente, necessita da aplicação do direito internacional privado pelo fato de que atrai a possível aplicação de uma lei estrangeira. Caso este elemento não esteja presente, não há que se falar em conflito de normas, mas caso esteja, busca-se solucionar a lide resolvendo o conflito de leis no espaço gerado com os princípios do direito internacional privado.
2. APLICAÇÃO DA LEI ESTRANGEIRA
Quando se trata da aplicação do direito estrangeiro cabe, primeiramente, ressaltar sobre qual direito estrangeiro se está tratando. Segundo Basso (2020), ao se discutir a lei estrangeira, deve-se ter em mente que esta lei refere-se ao direito substancial/material estrangeiro, chamado também de privado comum estrangeiro, não devendo-se confundir com o direito privado especial, também chamado de internacional privado estrangeiro, por sua vez proibido pela lei brasileira por ir contra princípios aplicados nacionalmente. Estes princípios, a que se fez referência, nada mais tratam do que da impossibilidade da lei internacional brasileira fazer referência a outra lei internacional estrangeira, o que, de forma simples, não resolveria a lide em questão, não apontando um direito material a ser escolhido para resolver, mas sim passando a decisão para outro estado decidir.
Após essa diferenciação é interessante citarmos uma das principais leis, não sendo descartadas outras que também têm dispositivos auxiliares, que faz referência a aplicação de leis estrangeiras na ordem jurídica brasileira, sendo esta, a lei nº12.376/10, conhecida como Lei de introdução às normas do direito brasileiro (LINDB). A citada lei é a base para a interpretação de dispositivos estrangeiros e sua recepção no ordenamento pátrio. A lei citada traz uma imperatividade das normas de direito internacional privado, exigindo do juiz do caso em análise uma profunda observância em sua resposta aos conflitos de leis no espaço.
Na obra de Dolinger e Tibúrcio (2020), quando se trata de lei estrangeira , estes são categóricos ao afirmar que após a identificação de que se trata de uma lei e não somente de um fato estrangeiro, a aplicação da lei estrangeira deve ser feita ex officio, podendo ser suscitada e aplicada a qualquer momento ou fase do processo, tendo a possibilidade, inclusive, de ser objeto de recurso especial perante o STJ ou de ação rescisória. Em relação a essa aplicação, é importante salientar que foi decidido na Conferência Interamericana Especializada Sobre Direito Internacional Privado de Montevidéu em 1979, que em seu art. 2º dispõe que os juízes devem aplicar o direito internacional da mesma forma como este seria aplicado pelos juízes do estado ao qual este direito pertence, ou seja, preservando o direito das partes de pleitear e provar a existência e o conteúdo da lei invocada, seja ela de qual estado pertencer.
De acordo com Basso (2020), a LINDB traz consigo as etapas que devem ser utilizadas para solucionar os conflitos de leis no espaço, mas que devem ser utilizadas de forma a apontar o direito material que será utilizado para solução do problema subjacente, ou seja, não será resolvido o problema em si somente com a aplicação da LINDB, mas se decidirá sobre qual norma será responsável por resolvê-lo. Dentro dessa resolução de conflitos espaciais, é externado o seguinte:
a) Reconhecer que se trata de fato comum do direito privado com elementos estrangeiros;
b) Reconhecer o conflito de leis no espaço;
c) Definir a natureza jurídica do fato analisado, tendo como base a lei brasileira, definindo assim se trata- se de um caso de direito pessoal, de família, das coisas ou outro tipo de direito;
d) Definição da regra jurídica aplicável ao caso, utilizando a LINDB;
e) Após encontrar a regra aplicável, encontra-se o elemento de conexão, e com este, é possível identificar o direito aplicável;
f) Verificação de que o direito indicado resolve o conflito, podendo esse direito indicado ser nacional ou estrangeiro a depender do caso concreto em análise;
g) Aplicar ao caso o direito substancial/material indicado pela norma em apreço.
A melhor forma de exemplificar uma fórmula é aplicando esta a um caso concreto. O exemplo contido na obra de Novo (2018) traz o caso de um contrato assinado entre um brasileiro de 18 anos de idade domiciliado no Brasil e um escocês de 17 anos de idade domiciliado na Escócia, estando em litígio no Brasil. O brasileiro alega que o contrato deve ser cancelado pelo fato de que o escocês é menor incapaz de acordo com a lei brasileira, este porém alega que na Escócia a maioridade atinge-se com 16 anos, o que o torna plenamente capaz. No caso em questão, aplicando o procedimento citado anteriormente: a) Trata-se de um caso de direito privado, com elementos nitidamente estrangeiros; b) Existe o conflito de leis no espaço, pois o brasileiro invoca a lei brasileira e o escocês invoca a lei Escocesa; c) Trata-se de direito contratual; d) Utilizando-se a LINDB chega-se a conclusão de que a capacidade processual é dada pela lei o país em que a pessoa reside, no caso na Escócia; e) O elemento de conexão é simplesmente a maioridade escocesa considerada no domicílio do estrangeiro, ou seja, de 16 anos de idade; f) A lei selecionada resolve o caso em questão, dessa forma pode ser aplicada sem ressalvas; g) Aplica-se a norma selecionada, ou seja, o direito a ser aplicado será o direito escocês que prevê a maioridade aos 16 anos de idade.
Ainda ao tratar dos elementos de personalidade, Novo (2018) traz a importância dos elementos de conexão como elemento chave para solucionar os conflitos de leis no espaço. Cada país elege os elementos de conexão que opta para solucionar os conflitos entre legislações internacionais, sendo que no Brasil foi eleita a lex domicilii (Lei do domicílio) para reger, por exemplo, os limites da personalidade, nome, capacidade e também os direitos de família. Além disso, quando se trata de bens, o elemento de conexão eleito é a lex rei sitae (Lugar da coisa).
Quando se aplica o direito estrangeiro, devem haver mecanismos que garantam que a lei está sendo corretamente aplicada na sua essência, ou seja, além de estar traduzida da forma correta, deve-se atestar a sua veracidade e atualidade em relação à vigência. Sobre esse assunto Dolinger e Tibúrcio (2020) apontam em sua obra que ao juiz ou à parte cabe apurar o direito estrangeiro, o que inclui o seu conteúdo, vigência e existência, utilizando-se do direito comparado, quando couber, para sanar possíveis embates. Como não existe uma legislação única ou uma forma de garantir o conhecimento uniforme de toda a comunidade internacional das leis de cada estado, o código de Bustamante á ainda utilizado para sanar esse tipo de dúvida. Neste código, nos arts. 409 a 411 são dadas duas opções para a prova do direito estrangeiro, sendo estas: 1) Certidão atestada por dois advogados em exercício no país do qual a legislação se queira provar; 2) Por meio de informação diplomática fornecida pelo mais alto tribunal, ou pela procuradoria-geral ou mesmo o ministério da justiça do país cujo direito do qual tenha o interesse de se aplicar. Além disso, segundo Basso (2020) a figura do affidavit também merece destaque, sendo esta abrangente no ordenamento jurídico brasileiro, configurada como uma forma de parecer jurídico de um profissional do próprio país do qual se deseja aplicar a lei em questão ou até mesmo por profissional brasileiro com notório saber jurídico sobre o direito estrangeiro que será aplicado ao caso em análise.
Sobre a análise e interpretação da lei estrangeira, Mazzuoli (2015) cita que tudo o que for relativo às leis estrangeiras, o que inclui, por exemplo, sua vigência e revogação deve ser analisado de acordo com as próprias normas de origem, e não de acordo com a Lex fori (Lei do foro), no caso, a lei brasileira. Dessa forma, ao se aplicar as normas estrangeiras o juiz deve pensar de forma como se estrangeiro o fosse, mesmo que a norma que esteja aplicando seja estranha ao seu ordenamento jurídico. Ao mesmo tempo que aplica a norma estrangeira, o juiz deve-se atentar às limitações que essa interpretação da norma estrangeira deve contemplar. Pois de acordo com o art. 5º da LINDB, ao aplicar a norma estrangeira o juiz deve atentar para os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, ou seja, buscar a essência da norma que este está aplicando buscando satisfazer o legislador ao criar aquela norma, mas ao mesmo tempo aplicando filtros que possam detectar as violações não permitidas como a à ordem pública, da moral e dos bons costumes. No Brasil, a última instância sobre as normas de direito internacional privado cabe ao STF, pois este dirá se o juiz ou tribunal aplicou corretamente a norma estrangeira, comprando inclusive com a jurisprudência existente no estado de origem.
3. CONCLUSÃO
Após essa explanação sobre os principais pontos que englobam o tema da aplicação do direito estrangeiro, pode-se concluir que essa aplicação é de extrema importância no que tange sua finalidade principal, sendo esta a de estabelecer, baseado nos elementos de conexão, as regras e os princípios para a extraterritorialidade da lei, qual norma deve ser aplicada ao caso concreto, a decidir se cabe norma de cunho nacional ou estrangeiro.
Dessa forma, é mister salientar que no caso de se definir que a norma a ser aplicada seja a norma internacional, o juiz deve, à primeira vista, verificar a existência da norma, seu conteúdo e sua vigência. Cabe ressaltar que o juiz pode também determinar que a prova de que a legislação tem as condições citadas seja da parte que requereu sua aplicação. Lembrando que existe um procedimento para prova dessa legislação, sendo o mais comum o da certidão passada pela autoridade consular brasileira ou certidão da autoridade estrangeira autenticada pelo cônsul.
A norma estrangeira apresenta força coativa igual à brasileira, sendo vedado às partes renunciar ao seu império, tendo uma obrigatoriedade tão reconhecida que o juiz tem o dever de aplicar as normas estrangeiras mesmo quando estas não são invocadas pelas partes. Além disso, a aplicação das normas estrangeiras deve seguir suas próprias normas processuais, não necessitando assim de seguir as normas de direito interno.
Valoroso também aludir que os limites da aplicação do direito estrangeiro se mostram na ordem pública, nas normas imperativas e no princípio da neutralização dos efeitos da fraude à lei. Sendo nesse caso, a ordem pública equivalente aos valores da sociedade local e as normas imperativas da legislação nacional, limitando assim a absorção e aplicação desmedida da lei estrangeira em território nacional.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASSO, Maristela. Curso de direito internacional privado. 6. Ed. – São Paulo: Atlas, 2020.
DOLINGER, Jacob; TIBÚRCIO, Carmem. Direito internacional privado. 15 ed. – Rio de janeiro: Forense. 2020.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional privado: curso elementar. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
NOVO, Benigno Nuñez. A aplicação do direito estrangeiro. 2018.
Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-170/a-aplicacao-do-direito-estrangeiro/>
Acesso em: 21/03/2021.
Lei nº 12.376/2010. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Brasília. 2010.
[1] Bacharel em Gestão em Agronegócio pelo Instituto Federal do Tocantins (IFTO). Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) em Palmas/TO. 2º Sargento da Polícia Militar do Estado do Tocantins. Exerce atribuições de Operador Aerotático. E-mail: [email protected]
3 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Estadual do Tocantins. Especialista em Legislação Educacional pela UNITINS. Especialista em Docência de Ensino Superior pela Faculdade Suldamérica. Bacharel em Sistemas de Informação pelo Centro Universitário Luterano de Palmas, CEULP/ULBRA. Servidora pública da Universidade Estadual do Tocantins.
Bacharelando do curso de Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) em Palmas/TO. Bacharel em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Servidor público efetivo do Município de Porto Nacional. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIDOVIX, Lucas Fernandes de Morais. Direito internacional: aplicação do direito estrangeiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jun 2022, 04:11. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58711/direito-internacional-aplicao-do-direito-estrangeiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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