RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar a viabilidade jurídica de se reconhecer a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017 em sede de controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Para tal finalidade, utilizou-se como metodologia de pesquisa estudos de caso (ADIs nº 5728/DF e 5772/DF) e revisão bibliográfica. Ao final, concluiu-se pela possibilidade jurídica de se declarar a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017 em sede de controle abstrato de constitucionalidade por manifesta violação a cláusula pétrea prevista no art. 60º, § 4º, VI, da Constituição Federal de 1988, com vistas à efetivação da tutela dos direitos e garantias individuais.
Palavras-chave: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Supremo Tribunal Federal. Cláusula Pétrea. Reação Legislativa. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988.
ABSTRACT: This article aims to analyze the legal feasibility of recognizing the unconstitutionality of Constitutional Amendment No. 96/2017 in the context of concentrated control of constitutionality by the Federal Supreme Court. For this purpose, case studies (ADIs nº 5728/DF and 5772/DF) and literature review were used as research methodology. In the end, it was concluded that the legal possibility of declaring the unconstitutionality of Constitutional Amendment No. 96/2017 in the abstract control of constitutionality for manifest violation of the stony clause provided for in art. 60, § 4, VI, of the Federal Constitution of 1988, with a view to enforcing the protection of individual rights and guarantees.
Keywords: Direct Action of Unconstitutionality. Federal Court of Justice. Petra Clause. Legislative Reaction. Federal Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988.
1.Introdução
O presente artigo pretende analisar a viabilidade jurídica de reconhecimento da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, que acrescentou o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal de 1988, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
Nesse sentir, abordar-se-á os fundamentos das ADIs nº 5728/DF e nº 5772/DF, ajuizadas, respectivamente, pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e pelo Procurador-Geral da República no ano de 2018, sendo que as referidas ações do controle concentrado pretendem, em seu mérito, dentre outras coisas, que o Excelso Pretório reconheça a inconstitucionalidade da EC nº 96/2017 com lastro na violação ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado protegido pelo art. 225, §1º, VII e art. 60, §4º, IV da CRFB/88.
Especificados o objeto e a problemática do presente artigo, importa detalhar a metodologia de pesquisa utilizada. Nessa senda, consigne-se que foram realizados estudos de caso concernentes à casuística da vaquejada, o que ensejou uma análise documental e argumentativa minuciosa dos fundamentos expostos na ADI nº 5728/DF e ADI nº 5772/DF. Além disso, realizou-se revisão bibliográfica de doutrina especializada, conforme referências bibliográficas citadas ao final do artigo.
2. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade de nº 5728/DF e nº 5772/DF
A Emenda Constitucional nº 96/2017 inseriu o parágrafo sétimo no bojo do art. 225 da Constituição Federal, de modo a considerar como não cruéis as atividades desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais nos termos do art. 215, § 1º, da CRFB/88 e desde que registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo haver regulamentação por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. Nesse sentir, veja-se:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de so comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 96, de 2017) (grifado)
Destarte, com o desiderato de impugnar a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, foram ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 5728/DF e nº 5772/DF.
Com efeito, para fins de melhor compreensão, tratar-se-á primeiramente do teor da ADI nº 5728/DF, a qual foi ajuizada em 09 de junho de 2017 pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal em face da Emenda Constitucional nº 96/2017, sob o fundamento de que a referida emenda constitucional violou o art. 225, § 1º, VII e o art. 60, §4º, IV, ambos da Constituição Federal, ao acrescentar o parágrafo sétimo ao art. 225 da CRFB/88.
Após, serão detalhados os aspectos gerais da ADI nº 5772/DF, ação do controle concentrado ajuizada em 05 de setembro de 2017 pelo Procurador-Geral da República Rodrigo Janot Monteiro de Barros, na qual foi impugnada a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, da expressão “vaquejada” constante nos art. 1º, 2º e 3º da Lei nº 13.364/2016, que elevou a referida prática à condição de patrimônio cultural imaterial brasileiro, e da expressão “as vaquejadas” presente no art. 1º, parágrafo único da Lei 10.220/01, que instituiu normas gerais referentes à atividade de peão de rodeio e equiparou o referido peão a um atleta profissional.
Em análise aos fundamentos jurídicos abordados pela petição inicial da ADI nº 5728/DF, verifica-se que a parte autora destaca que o Supremo Tribunal Federal deverá declarar a inconstitucionalidade de emenda constitucional criada pelo poder constituinte reformador quando for constatado que a referida norma constitucional violou as cláusulas pétreas previstas no art. 60, §4º da Constituição Federal de 1988 (ADI nº 5728/DF, 2017, p. 11).
Com lastro em tal assertiva, defende a mencionada associação que a Emenda Constitucional nº 96/2017 deve ter sua inconstitucionalidade reconhecida, tendo em vista que viola diretamente o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito individual garantido pelo artigo 225, §1ª, VII da CFRB/88. Assim, seguindo essa linha de intelecção, a referida emenda constitucional sequer deveria ter sido objeto de deliberação no Congresso Nacional, haja vista ter o poder constituinte originário especificado em art. 60, §4º, IV da CFRB/88 que não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. (ADI nº 5728/DF, 2017, p. 13)
Nessa esteira, ao tratar da crueldade ínsita à prática da vaquejada, a petição inicial da ADI nº 5728/DF defende que a mera contemplação da citada atividade é suficiente para evidenciar a sua natureza cruel, haja vista a submissão dos animais a dor, medo, e lesões como ruptura de cauda, fratura de costelas, dentre outras, o que é ratificado por conclusões de pareceres confeccionados por médicos veterinários, consoante consta em documentação colacionada aos autos da mencionada ADI. (ADI nº 5728/DF, 2017, p. 19)
Consta, ainda, no teor da ADI ora detalhada o argumento de que é inviável se assegurar o bem-estar dos animais envolvidos na vaquejada, tendo em vista que a própria prática como um todo vai de encontro à proteção à fauna constitucionalmente garantida pelo art. 225 da CFRB/88, porquanto fere a integridade física e mental dos bovinos e equinos participantes (ADI nº 5728/DF, 2017, p. 19-20). Nesse sentido:
Como conceber que ‘práticas desportivas que utilizam animais’, - e a eles impinge incontestável sofrimento -, deixa de ser cruel, tão somente porque e ‘desde que sejam manifestações culturais’? [...]
Bois, bezerros e cavalos sofrem, em demasia, lesões físicas e mentais, conforme extensa narrativa e comprovação pericial, apostadas em laudos e pareceres balizados por médicos veterinários e técnicos, em diversas ações promovidas em municipalidades donde a prática se perpetua, como, - pasme! -, entretenimento e cultura. A prática cruel não deixa de sê-lo porque a norma assim resolve. A prática cruel jamais será cultura. Jamais será entretenimento.
A inconstitucionalidade da Emenda nº 96 repousa em seu âmago, na pretensa distorção da razão, da lógica. Traveste-se de norma a ferir princípios éticos, preceitos racionais, a ciência, e texto constitucional advindo do poder constituinte originário, que, explicitamente incumbiu o Poder Público de PROTEGER A FAUNA, para assegurar a efetividade do direito fundamental ao meio ambiente. INCUMBIU O ESTADO DE VEDAR A SUBSUNÇÃO DOS ANIMAIS À CRUELDADE. (ADI nº 5728/DF, 2017, p. 19-20).
Em contrapartida, ao defender a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, que acrescentou o §7º ao art. 225 da CRFB/88, os representantes da Advocacia-Geral da União argumentaram em petição de defesa que a citada emenda constitucional ensejou a possibilidade de se harmonizar a participação de animais em práticas desportivas com o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, haja vista ter a parte final do §7º do art. 225 da CRFB/88 previsto que as citadas atividades desportivas deverão ser regulamentadas por lei específica que garanta o bem-estar dos animais participantes. (ADI nº 5728, 2017, p. 58)
Destacou, ainda, a Advocacia-Geral da União, em sua peça de defesa, que a EC nº 96/2017 foi promulgada de forma legítima, tendo em vista que, sob a sua ótica, o Poder Constituinte Derivado respeitou as limitações formais, materiais e circunstanciais previstas na Constituição Federal de 1988 para a criação de novas normas constitucionais. Salienta, nesse ponto, que não houve violação das cláusulas pétreas dispostas no art. 60, §4º da CRFB/88, razão pela qual pugnou, ao final da petição defensiva, pela improcedência da ADI nº 5728. (ADI nº 5728, 2017, p. 58)
Posteriormente, em 3 de maio de 2018, corroborando o entendimento explicitado pela parte autora da ADI nº 5728, a Procuradora-Geral da República Raquel Elias Ferreira Dodge apresentou, nos autos da retrocitada ação um parecer opinando por seu conhecimento e, no mérito, pela sua procedência, a fim de que o Excelso Pretório reconheça a inconstitucionalidade total da Emenda Constitucional nº96/2017. (ADI nº 5728, 2017, p. 20)
Na fundamentação do referido parecer, a representante do Ministério Público Federal destacou que a promulgação da emenda constitucional ora discutida possuiu o desiderato único de contornar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, especificamente no julgamento da ADI nº 4983/CE, que reconheceu a inconstitucionalidade da prática da vaquejada por violação direta ao art. 225, § 1º, VII da CRFB/88. (ADI nº 5728, 2017, p. 15)
Impende consignar que o parecer emitido pela Procuradora-Geral da República Raquel Dodge seguiu a mesma linha de intelecção explicitada em petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5772, a qual foi ajuizada, em 5 de setembro de 2017, pelo Procurador-Geral da República Rodrigo Janot Monteiro de Barros com o objetivo de impugnar a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, da expressão “vaquejada” constante nos art. 1º, 2º e 3º da Lei nº 13.364/2016 e do termo “as vaquejadas” presente no art. 1º, parágrafo único, da Lei 10.220/01. (ADI nº 5772, 2017, p. 1-2). Por oportuno, transcreve-se teor dos citados artigos:
LEI 13.364/16
Art. 1º Esta Lei eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial.
Art. 2º O Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, passam a ser considerados manifestações da cultura nacional.
Art. 3º Consideram-se patrimônio cultural imaterial do Brasil o Rodeio, a Vaquejada e expressões decorrentes [...] (grifado) (BRASIL, 2016)
Lei 10.220/01:
Art. 1º [...] Parágrafo único. Entendem-se como provas de rodeios as montarias em bovinos e equinos, as vaquejadas e provas de laço, promovidas por entidades públicas ou privadas, além de outras atividades profissionais da modalidade organizadas pelos atletas e entidades dessa prática esportiva. (grifado) (BRASIL, 2001)
Na aludida peça exordial da ADI nº 5772, a Procuradoria-Geral da República destacou que, no julgamento da ADI nº 4983, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a correlação existente entre a tutela constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado, a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, o que resultou na declaração de inconstitucionalidade da prática da vaquejada e da Lei Estadual nº 15.299/2013/CE (ADI nº 5772, 2017, p. 7).
Salientou, assim, em petição inicial, que a promulgação da Emenda Constitucional nº 96/2017 é incompatível com os preceitos constitucionais voltados à proteção do meio ambiente, em especial com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto pelo art. 225, §1º, VII da CRFB/88, o qual constitui direito fundamental de 3ª geração de titularidade coletiva. Defende a Procuradora-Geral da República, dessa forma, que a EC nº 96/2017 fere a cláusula pétrea disposta no art. 60, §4º, VI da CRFB/88, haja vista ter acarretado supressão de direitos e garantias individuais voltadas à proteção do meio-ambiente (ADI nº 5772, 2017, p. 6).
Argumentou, ainda, que a prática desportiva que acarreta maus tratos aos animais, como é o caso da vaquejada, não deixa de ser cruel pelo simples fato de ter sido registrada como manifestação cultural, haja vista que o reconhecimento de determinada atividade como patrimônio imaterial não retira a crueldade ínsita ao exercício dessa prática, permanecendo, portanto, a violação direta ao disposto no art. 225, § 1º, VII da CRFB/88 (ADI nº 5772, 2017, p. 14). Nesse sentido:
A emenda constitucional ainda contém uma ilogicidade insuperável: define como não cruéis as práticas desportivas se forem reconhecidas como manifestação cultural. Ocorre que a crueldade intrínseca a determinada atividade não desaparece nem deixa de ser ética e juridicamente relevante pelo fato de uma norma jurídica a rotular como “manifestação cultural”. A crueldade ali permanecerá, qualquer que seja o tratamento jurídico a ela atribuído. (ADI nº 5772, 2017, p. 14).
Assim, no caso concreto, constatando-se conflito entre a tutela do meio-ambiente e a proteção às manifestações culturais, a parte autora da ADI nº 5772/DF propõe que seja realizado uma ponderação entre ambas as normas, devendo prevalecer a tutela ambiental na presente casuística, uma vez que “não é possível extrair da Constituição autorização para impor sofrimento intenso e para mutilar animais, com fundamento no exercício de direitos culturais e esportivos” (ADI nº 5772/DF, 2017, p. 22).
Em contrapartida, a Advocacia-Geral da União aduziu em sua peça de defesa constante nos autos da ADI nº 5772/DF que a promulgação da Emenda Constitucional nº 96/2017 não é incompatível com o entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 4983/CE, mormente em razão do fato de que a referida EC não dispôs especificamente acerca da prática da vaquejada, mas sim sobre todas as práticas desportivas que são consideradas por lei como manifestações culturais, enquanto que a mencionada ADI teria, sob a sua ótica, se limitado a tratar da inconstitucionalidade da vaquejada e da Lei Estadual nº 15.299/2013/CE (ADI nº 5772/DF, 2017, p. 7-8).
No entanto, observa-se que a prática da vaquejada acarreta maus-tratos aos animais, o que enseja violação à tutela da fauna prevista pelo inciso VII, §1º do art. 225 da CRFB/88, núcleo normativo do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual é protegido como cláusula pétrea nos moldes do art. 60, §4º, IV da CRFB/88.
Em decorrência disso, passa a se analisar a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017 no julgamento das ADIs nº 5728/DF e nº 5772/DF.
3. A viabilidade jurídica de reconhecimento da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017 em sede de controle abstrato de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal
Consoante explicita Dirley da Cunha Júnior em sua obra Curso de Direito Constitucional, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi promulgada pela Assembleia Geral Constituinte no exercício de seu poder constituinte originário, o qual impôs restrições de reforma do corpo constitucional ao poder constituinte derivado reformador, exercido pelo Congresso Nacional, com o desiderato de proteger o núcleo intangível da CRFB/88 (CUNHA JR, op. cit., p. 218-219).
Em razão disso, o poder constituinte reformador somente está apto a promulgar determinada emenda constitucional caso esta obedeça de forma estrita às limitações circunstanciais, formais e materiais (implícitas e explícitas) impostas pela Constituição Federal de 1988, sob pena de se reconhecer a inconstitucionalidade de norma constitucional derivada mediante controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal (Ibidem, p. 219-220).
No que se refere às limitações circunstanciais impostas pela Constituição Federal para a criação de emendas constitucionais pelo Congresso Nacional, o art. 60, § 1º, explicita que a Constituição Federal não pode ser emendada na vigência de estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal. No caso da Emenda Constitucional nº 96/2017, verifica-se que o poder reformador respeitou a limitação circunstancial imposta pela CRFB/88, haja vista que na data de sua promulgação nenhum dos três institutos retromencionados estavam em vigência no país.
Nessa senda, em se tratando das limitações formais explicitadas pelo texto constitucional para a criação de normas constitucionais derivadas, o art. 60, caput, § 2º, § 3º e § 5º da CRFB/88 dispôs que a propositura e a posterior promulgação de uma emenda constitucional deverá obedecer a procedimento específico, tendo especificado o referido dispositivo constitucional, em rol taxativo, os legitimados para a propositura de Proposta de Emenda Constitucional (PEC), bem como o procedimento específico para a sua aprovação, que deverá ocorrer mediante votação em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, respeitando-se o quórum qualificado de 3/5 dos votos dos respectivos membros de cada Casa. Nesse sentido:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II - do Presidente da República;
III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
[...] § 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. [...]
§ 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. (BRASIL, 1988)
Impende consignar, nesse aspecto, que a promulgação da EC nº 96/2017 pelo Congresso Nacional obedeceu às limitações formais definidas pelo poder originário e especificadas no art. 60 da Constituição Federal de 1988, porquanto não se observou qualquer vício formal na iniciativa, votação e tramitação da PEC, de modo que foi devidamente respeitado o processo legislativo previsto para a criação de normas constitucionais derivadas.
Entretanto, no que concerne às limitações materiais implícitas e explícitas fixadas pela Constituição Federal para a criação de emendas constitucionais, verifica-se que a Emenda Constitucional nº 96/2017 possui um grave vício material por violação de limitação material explícita, o que enseja o reconhecimento de sua inconstitucionalidade mediante controle abstrato de constitucionalidade a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Explica-se.
As limitações materiais à emenda da Constituição Federal são subdivididas pelo autor Dirley da Cunha Júnior como limitações materiais implícitas/inerentes e limitações materiais explícitas/expressas. As limitações materiais implícitas são reconhecidas pela doutrina mesmo estas não constando expressamente no corpo constitucional, haja vista sua inegável importância, consubstanciada na proteção da Constituição Federal em face de propostas de emenda constitucional que objetivem alterar a titularidade do poder constituinte originário, a titularidade do poder constituinte reformador ou o processo formal exigido para a promulgação de emendas constitucionais (CUNHA JR, op. cit., p. 222-223).
Já as limitações materiais explícitas, previstas no art. 60, § 4º da Constituição Federal, impossibilitam a propositura de uma Emenda Constitucional tendente a abolir quaisquer das cláusulas pétreas dispostas no mencionado dispositivo constitucional, razão pela qual não se pode propor uma nova norma constitucional derivada que viole a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação de Poderes e os direitos e garantias individuais (Ibidem, p. 220-221). Nesse sentido:
Art. 60º - [...] §4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988) (grifado)
Verifica-se, em análise ao teor do inciso IV da retrotranscrita norma constitucional, que sequer é permitido que se delibere acerca de uma proposta de emenda à Constituição que viole os direitos e garantias individuais protegidos pela Constituição Federal de 1988. É nesse ponto que se observa a existência de vício material na Emenda Constitucional nº 96/2017.
Isso porque a referida emenda constitucional, ao acrescer o § 7º ao art. 225 da CRFB/88 para determinar que não são consideradas como cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial, violou diretamente o direito fundamental ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, protegido como cláusula pétrea pelo art. 60, § 4º da CRFB/88.
Isso porque o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado possui um caráter transindividual, uma vez que configura, concomitantemente, direito individual e direito social (CUNHA JR, op. cit., p. 667). Assim, dada a sua natureza transindividual, verifica-se que o referido direito fundamental assume o status de cláusula pétrea por subsumir ao teor do inciso IV do §4º, art. 60 da CRFB/88.
Assim sendo, observa-se que a EC nº 96/2017, ao legitimar a prática da vaquejada em território nacional mediante acréscimo do §7º ao art. 225 da CRFB/88, incorreu em violação à cláusula pétrea constante em inciso IV, §4º, do art. 60 e em art. 225, caput e §1º, VII, da CRFB/88, razão pela qual se pode afirmar que a referida emenda constitucional contém um grave vício material que enseja o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.
Desse modo, constatando-se a existência de um vício material na promulgação da Emenda Constitucional nº 96/2017, é plenamente viável que o Supremo Tribunal Federal declare a sua inconstitucionalidade por meio de controle abstrato de constitucionalidade, aplicando-se efeitos retroativos à decisão que reconhece a inconstitucionalidade da norma. Nesse sentido, o doutrinador Dirley da Cunha Júnior disserta:
[...] O Poder Constituinte Reformador, por ser um poder derivado ou constituído, está sujeito a limites circunstanciais, materiais (explícitos ou implícitos) e procedimentais. Em razão disso, tem-se admitido, sem divergências, o controle abstrato da constitucionalidade das emendas constitucionais, caso violem quaisquer dessas limitações. Seria a aplicação parcial da teoria alemã da inconstitucionalidade das normas constitucionais, quando estas resultam de emendas constitucionais lesivas àqueles limites. Mas é imperioso anotar que a parametricidade do controle de constitucionalidade das emendas constitucionais está restrita àquelas normas constitucionais que fixam os limites ao poder reformador. Na Constituição de 1988, tais normas estão no art. 60. (Ibidem, p. 319)
Destarte, acerca da possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de Emenda Constitucional lastreada em reação legislativa (“Efeito Backlash”), como é o caso da Emenda Constitucional nº 96/2017, Márcio André Lopes Cavalcante leciona que, nessa hipótese, apenas será possível a declaração de inconstitucionalidade da norma caso haja violação a conteúdo de cláusula pétrea ou a processo legislativo específico para criação de emendas constitucionais. Veja-se:
No caso de reversão jurisprudencial (reação legislativa) proposta por meio de emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá nas restritas hipóteses de violação aos limites previstos no art. 60, e seus §§, da CF/88. Em suma, se o Congresso editar uma emenda constitucional buscando alterar a interpretação dada pelo STF para determinado tema, essa emenda somente poderá ser declarada inconstitucional se ofender uma cláusula pétrea ou o processo legislativo para edição de emendas. (CAVALCANTE, 2017)
Evidencia-se, assim, a viabilidade jurídica de o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 69/2017 por vício material consubstanciado em violação à cláusula pétrea protegida como núcleo material irretocável da Constituição Federal de 1988, mediante julgamento procedente das ações diretas de inconstitucionalidade nº 5728/DF e 5772/DF, uma vez que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual garante a proteção da fauna e a vedação de se submeter animais a práticas cruéis, é considerado um direito transindividual (individual e social) e, consequentemente, é protegido como cláusula pétrea nos termos do art. 60, §4º, inciso IV da CRFB/88, não admitindo, assim, restrições em seu conteúdo.
4. Considerações Finais
Ante o exposto, conclui-se pela viabilidade jurídica de reconhecimento da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, que acresceu o § 7º ao art. 225 da CRFB/88, segundo o qual não se consideram atividades cruéis as práticas desportivas que sejam manifestações culturais registradas como bem imaterial, desde que regulamentadas por lei específica que supostamente assegure o bem-estar dos animais na prática.
Nesse sentir, evidencia-se vício de inconstitucionalidade material da Emenda Constitucional nº 96/2017 por violação à cláusula pétrea (art. 60º, § 4º, VI, CRFB/88), especificamente no que se refere à tutela dos direitos e garantias individuais protegidos pela normativa constitucional, dentre os quais se inclui o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Somente com a declaração da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, será possível conferir aos animais a proteção constitucional que lhe foi garantida pelo poder constituinte originário, em respeito à sua condição de seres sencientes, que possuem a capacidade de perceber ou entender situações por meio dos sentidos (SENCIÊNCIA, 2018).
5. Referências Bibliográficas
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Advogada. Pós-graduada em Direito Constitucional, Direito Civil e Direito Processual Civil pelo Instituto Elpídio Donizetti. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Vanessa Matos Cortes. A viabilidade jurídica de reconhecimento da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017 em sede de controle abstrato de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jun 2022, 04:11. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58730/a-viabilidade-jurdica-de-reconhecimento-da-inconstitucionalidade-da-emenda-constitucional-n-96-2017-em-sede-de-controle-abstrato-de-constitucionalidade-pelo-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 24 dez 2024.
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