RESUMO: O presente artigo se propõe a investigar a compatibilidade do sistema do livre convencimento motivado com a concepção democrática de processo penal, bem como apresentar as críticas formuladas por STRECK ao chamado solipsismo judicial. Metodologicamente, o exame pretendido advirá de estudo descritivo e exploratório. No primeiro capítulo, analisamos os três paradigmas filosóficos, além do chamado solipsmismo judicial. O segundo capítulo objetiva examinar os sistemas de apreciação de provas no processo penal. O capítulo derradeiro questiona a legitimidade democrática do sistema do livre convencimento motivado, uma vez que se apoia, como demonstrado por STRECK, em um paradigma filosófico que historicamente confia na discricionariedade judicial. Conclui-se pela incompatibilidade do sistema do livre convencimento motivado com a concepção democrática de processo penal, dado que ele não somente prescinde de contornos suficientemente rigorosos para evitar discricionariedades, como, em certa medida, aposta nelas para a solução de casos.
Palavras chave: livre convencimento motivado; solipsismo judicial.
Introdução.
O objetivo central do trabalho a ser desenvolvido é investigar a compatibilidade do sistema do livre convencimento motivado com a concepção democrática de processo penal.
Entre os objetivos secundários deste escrito estão (i) a apresentação das críticas formuladas por STRECK ao chamado solipsismo judicial, denunciando o descompasso do direito em relação à filosofia, em razão de o primeiro não ter conseguido, até hoje, superar o paradigma subjetivista (esquema sujeito-objeto), e (ii) o exame dos sistemas de apreciação de provas no processo penal, sobretudo do sistema do livre convencimento motivado adotado pelo Código de Processo Penal brasileiro.
A problemática a respeito da apreciação da prova para fundamentar e motivar a decisão judicial é milenar. De que forma pode o juiz, diante das provas produzidas no processo, decidir? Haveria algum tipo de peso pré-estabelecido para cada tipo de prova? Existiriam provas mais relevantes que as outras? Teriam, então, as provas, o mesmo peso? Poderia o juiz deixar de considerar uma das provas produzidas no processo no momento de decidir? As questões colocadas são meramente ilustrativas, postas a fim de escancarar a imensa gama de crises oriundas do tema.
A despeito das aludidas provocações, é inquestionável que a doutrina nacional e estrangeira já alcançou certos consensos. Os sistemas da íntima convicção (certeza moral do juiz) e da prova legal (prova tarifada, certeza moral do legislador), por exemplo, foram, conforme a doutrina processualista penal dominante no Brasil, superados, tendo sido acolhido o sistema o livre convencimento motivado.
Não apenas a doutrina, mas o Código de Processo Penal adota expressamente o sistema do livre convencimento motivado conforme o artigo 155, cuja redação estabelece que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
A indagação motriz do presente escrito decorre da expressa adoção do sistema do livre convencimento motivado: seria ele compatível com a necessária noção democrática do processo penal?
STRECK, na obra “O que é isto – Decido conforme minha consciência?” (2013), demonstra o descompasso do direito com a filosofia, apontando que, enquanto esta superou, há muito, o paradigma subjetivista da modernidade, o mesmo não pode ser dito sobre o direito, o que traz gravíssimos efeitos práticos e, em última análise, fulmina a democracia. O juiz solpisista não é uma simples metáfora: é uma realidade a ser combatida.
Destarte, o primeiro capítulo se dedicará a trazer, ainda que de forma sucinta, a crise oriunda do solipsismo judicial denunciado por STRECK, apontando, também, o déficit paradigmático em que se encontra o direito.
O segundo capítulo, por sua vez, apresentará os sistemas de apreciação das provas, iniciando pelos sistemas da íntima convicção e da prova legal, para, após, descrever o que seria o sistema do livre convencimento motivado.
O derradeiro capítulo tem a pretensão de confrontar o sistema do livre convencimento motivado com a crítica de STRECK para responder, conforme o objetivo central traçado, se tal sistema é, ou não, compatível com a necessária concepção democrática de processo penal.
Metodologicamente, portanto, o exame pretendido advirá de estudo descritivo e exploratório.
Será descritivo na medida em que tomaremos por base extensa bibliografia acerca dos sistemas de apreciação das provas, bem como analisaremos, conforme STRECK, o conceito de solipsismo judicial e a consequente crise da decisão conforme a consciência. Outrossim, será exploratório porque se pretende investigar a compatibilidade do sistema do livre convencimento motivado com a perspectiva democrática de processo penal consagrada pela Constituição Federal.
O presente escrito se justificaria única e exclusivamente pela proposta de investigar a compatibilidade da atuação do magistrado na esfera penal com a democracia. Mas não é só. O dogma da decisão conforme a consciência ou da sentença como ato derivado do “sentir” precisa ser superado, pois sua ampla aceitação na doutrina e nos tribunais torna inócua qualquer modificação legislativa que objetive extirpar possíveis arbítrios nas decisões judiciais.
1.Aportes acerca do solipsismo judicial, conforme STRECK.
Na lição de LOPES JUNIOR, citar alguma passagem pontual da obra de STRECK implicaria em inevitável reducionismo, “pois não daria a real dimensão do seu pensamento” (2020, p. 955).
Destarte, cumpre destacar que no presente capítulo buscaremos trazer as questões e controvérsias que julgamos determinantes para a análise pontual que se pretende. Utilizaremos, assim, as obras “O que é isto – decido conforme minha consciência?” (2013) e “Hermenêutica, jurisdição e decisão: diálogos com Lenio Streck” (2020), bem como artigos publicados pelo próprio autor e pelo grupo de estudos hermêuticos DASEIN, do qual é coordenador.
1.1 Paradigmas filosóficos.
Ensina STRECK que a evolução da filosofia ao longo da história pode ser resumida em três fases.
Em um primeiro momento, a filosofia se ocupou da essência. Segundo a metafísica clássica, o sentido está na coisas. De forma direta: “as coisas têm sentido porque há nelas uma essência” (STRECK, 2013, p. 13). É ARISTÓTELES quem entende e projeta a metafísica como ciência, descrevendo-a como a doutrina que tem como objeto de estudo os caracteres fundamentais do ser (STRECK, 2013, p. 13).
A superação do paradigma objetivista (aristotélico-tomista) se dá na modernidade, que marca o nascimento da subjetividade (paradigma subjetivista ou filosofia da consciência). Conforme STRECK, a máxima cogito ergo sum, de DESCARTES, e o desenvolvimento do eu transcendental de KANT são fundamentais para a compreensão dessa virada paradigmática (2013, p. 13). O homem da modernidade não mais se sujeita às coisas: ele as sujeita. Não mais as coisas têm uma essência a ser descoberta, mas, sim, um significado a ser derminado pelo sujeito (esquema sujeito-objeto).
Na modernidade, portanto, é a razão que explica o mundo, ou, mais precisamente, o sujeito dotado de razão domina os significados e os determina, e é nesse contexto que surge a corrente solipsista. Segundo a lição de STRECK, o solipsismo é “uma corrente filosófica que determina que exista apenas um Eu que comanda o mundo, ou seja, o mundo é controlado conscientemente ou inconscientemente pelo Sujeito” (2013, p. 61). A máxima de DESCARTES anteriormente citada é condição de existência do solipsismo, portanto, já que o pensamento, para essa corrente, é a única certeza da existência, sendo o solipsismo, de alguma forma, “resultado da própria modernidade” (STRECK, 2020, p. 109). Ainda segundo STRECK, para o solipsismo “o mundo ao redor é apenas um esboço virtual do que o Sujeito imagina, quer e decide o que é” (2013, p. 61).
A superação da filosófica da consciência se dá no século XX a partir do que se convencionou denominar giro linguístico (linguistic turn). A ruptura paradigmática não se apoia apenas na invasão da linguagem na filosofia, assevera STRECK, mas também no abandono da antiga cisão entre teoria e prática (2013, p. 14).
Explicamos. ARISTÓTELES dividiu, na metafísica clássica, a filosofia teórica da filosofia prática. Enquanto a primeira teria como objetivo a observação de determinada realidade, a segunda questionaria as ações concretas. A problemática entre teoria e prática persistiu na filosofia moderna, quando KANT não somente cindiu sua “Crítica da Razão Pura” da “Crítica da Razão Prática”, como também acresceu o problema do solipsismo do sujeito transcendental (STRECK, 2013, p. 63).
O giro ontológico promovido por HEIDEGGER (e, mais tarde, WITTGENSTEIN, além de GADAMER) possibilita, de forma inédita na tradição filosófica, uma “reconciliação entre teoria e prática” ao mesmo tempo em que “ocorre um deslocamento do solipsismo subjetivista para um contexto intersubjetivo de fundamentação” (STRECK, 2013, p. 63).
É na linguagem, conforme STRECK, que se dá a ação; é na linguagem que o mundo se descortina; e é a linguagem que dá o sentido: “o sujeito surge na linguagem e pela linguagem, a partir do que se pode dizer que o que morre é a subjetividade ‘assujeitadora’, e não o sujeito da relação de objetos” (2013, pp. 14-15). Em substituição ao sujeito na condição de lugar último e fundamento da verdade (filosofia da consciência), HEIDDEGER insere o “mundo”, que, na filosofia hermenêutica, pode ser compreendido como “instância e espaço onde o significado é encontrado e produzido no contexto de um a priori compartilhado” (STRECK, 2013, pp. 18-19).
Desta forma, o objeto de conhecimento não pode ser pensado de modo diferente do que aparece, não sendo mais cabível, diante do giro ontológico-linguístico, aceitar que o sujeito determine e imponha os significados. É por esse motivo que STRECK exaustivamente sustenta a impossibilidade de se falar em “grau zero de sentido” (2013, p. 108), apoiando-se, inclusive, na metáfora de DWORKIN sobre o romance em cadeia (DWORKIN, 2003, p. 276). A linguagem é, portanto, condição de possibilidade para acessarmos o mundo, sendo certo que este é um “ambiente de significância, um espaço no interior do qual o sentido – definitivamente – não está a nossa disposição” (STRECK, 2013, pp. 61-62).
Feita a breve explanação acerca do paradigma objetivista, subjetivista e, por fim, da intersubjetividade (linguagem), analisaremos, no subcapítulo seguinte, o solipsismo judicial, conceito fundamental para que possamos alcançar o objetivo principal deste escrito.
1.2 Solipsismo judicial.
O solipsismo judicial é uma decorrência direta da filiação, por parte dos tribunais e de considerável setor doutrinário, ao paradigma da subjetividade, que perfectibiliza a metodologia da decisão conforme a consciência (STRECK, 2013, p. 33). Não se olvida, igualmente, de teses que promovem inadequada mixagem, confundindo o paradigma aristotélico-tomista com o da filosofia da consciência, resultando em conceitos absolutamente sincréticos e autocontraditórios (STRECK, 2013, pp. 33-34), como as apostas em súmulas vinculantes (STRECK, 2013, p. 59) e a deformação da teoria de ALEXY envolvendo ponderação e proporcionalidade (STRECK, 2013, p. 53).
De todo modo, é possível afirmar que a raiz do solipsismo judicial está na filiação, consicente ou não, à filosofia da consciência. Em sua obra “O que é isto – decido conforme minha consciência?” (2013), STRECK disseca um sem número de decisões, demonstrando por meio de diversas passagens que, de forma mais ou menos explícita, a concepção do juiz enquanto senhor dos sentidos é amplamente difundida, sendo comum a afirmação no sentido de que “a interpretação (ou a sentença) ‘é um ato de vontade’” (2013, p. 34), entre outras expressões da mesma ideia. Acreditamos ser ilustrativo o voto proferido por um ministro do Superior Tribunal de Justiça em 2001:
Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. (...) Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém (BRASIL, 2001 apud STRECK, 2013, pp. 24/25).
O dogma da decisão judicial enquanto ato de vontade deve ser prontamente repelido, pois aceita-lo seria admitir que o juiz fabrica seu objeto de conhecimento (direito) e molda-o conforme sua vontade. É a convicção de que o direito é o que o intérprete quer que ele seja.
WITTGENSTEIN já demonstrou a impossibilidade de existência da linguagem privada (STRECK, 2020, p. 160). Sendo certo que o sentido do direito se dá antes do conhecimento do juiz, jamais partiremos, conforme anteriormente destacado, de um grau zero de sentido, de modo que a decisão judicial também está impossibilitada de fazê-lo, sob pena de converter-se em arbítrio.
O arbítrio, sobretudo aquele que é oriundo do juiz, deve ser repelido, por ser inevitavelmente antidemocrático. Contudo, na prática, seu afastamento costuma ser utilizado como “argumento e álibi teórico para a justificação da discricionariedade” (STRECK, 2013, p. 69) judicial[1], característica comum dos positivismos (STRECK, 2013, p. 57).
O positivismo aposta na discricionariedade judicial diante da incapacidade da filosofia da consciência – paradigma filosófico em que o positivismo se apoia – de oferecer soluções para a “aporia decorrente da dicotomia “razão teórica/razão prática” (STRECK, 2013, p. 67), de modo que o estudo da prática é desprezado em relação ao estudo da teoria.
A crise de toda e qualquer corrente que aposta na discricionariedade para resolver o problema da decisão judicial, segundo STRECK, é que, em maior ou menor escala, subsistirá, ali, uma aposta no sujeito solipsista. Em apertada síntese, o sujeito solipsista seria “essa consciência encapsulada que não sai de si no momento de decidir” (STRECK, 2013, p. 61), e que é, sem dúvida, anacrônico, já que após o giro ontológico-lingístico:
(...) não é mais possível pensar que a realidade passa a ser uma construção de representações de um sujeito isolado (solipsista). O giro ontológico-linguístico já nos mostrou que somos, desde sempre, seres-no-mundo, o que implica dizer que, originariamente, já estamos “fora” de nós mesmos nos relacionando com as coisas e com o mundo (STRECK, 2013, p. 61).
Se, conforme STRECK, entre a arbitrariedade e a discricionariedade não há uma fronteira clara (2013, p. 68), o risco democrático em confiar na discricionariedade judicial é evidente. Legitimar a discricionariedade judicial equivale a autorizar o juiz a dispor dos sentidos, como se fosse proprietário deles e dos seus meios de produção (2013, p. 69). É, em outras palavras, hipertrofiar o papel do indivíduo e expandir a subjetividade ao seu limite, isolando o juiz do restante do mundo e possibilitando decisões e interpretações próprias, sem compromisso com nada além da consciência do intérprete, ainda que supostamente amparada pela lei ou Constituição.
Assim, podemos definir, de forma sucinta, o solipsismo judicial como uma acepção filiada ao paradigma da subjetividade que se encontra impregnada na doutrina e prática jurídicas, sacralizando a atividade judicante, obscurecendo a atividade de julgar e tornando-a inacessível à crítica (MADEIRA, 2020, p. 194). Ainda, acreditar no solipsismo judicial equivale a crer que o juiz possuiria características próprias e específicas que tornariam-no “capaz de dizer o que é bom, justo, certo e verdadeiro para o restante da sociedade, em especial, para aqueles que sofrerão os efeitos de suas decisões, notadamente, as partes” (MADEIRA, 2020, p. 194).
2.Sistemas de apreciação de provas.
Analisaremos os três sistemas consagrados de valoração das provas, apontando suas principais características, com destaque para o sistema do livre convencimento motivado adotado pelo Brasil, para que possamos atingir o objetivo central deste escrito.
2.1. Sistema da prova legal e sistema da íntima convicção.
Conforme DEZEM, o sistema da prova legal é típico do sistema inquisitivo (em contraponto à concepção moderna de processual penal acusatório), e tem por base a ideia de que certos meios de prova possuem um valor, ou peso, pré-fixado, inalterável pelo magistrado (2020, p. 623). Ressalta BADARÓ que a fase rudimentar do sistema da prova legal tinha como característica a prevalência de ordálias ou Juízos de Deus, sendo presentes também os duelos (2015, p. 423). O juiz permanecia vinculado à revelação divina sobre a prova, devendo tão somente segui-la. Somente após o sistema da prova legal evolui para o sistema da prova tarifada, cuja característica fundante é a expressa previsão legal acerca dos “meios de prova aptos a provar cada fato e qual o valor de cada meio de prova” (BADARÓ, 2015, p. 423), conforme apontado por DEZEM.
Não há que se falar, quanto a esse sistema, em liberdade do magistrado, estando restrita, ao máximo, sua possibilidade de atuação[2]. LOPES JUNIOR traz a síntese de BACILA, para quem, foi “o medo da falha humana que fez com que este sistema falhasse como um todo” (2002, p. 100 apud 2020, p. 419).
O sistema da íntima convicção, por sua vez, “surge como uma superação do modelo de prova tarifada” (LOPES JUNIOR, 2020, p. 420). É o extremo oposto do sistema da prova legal, na medida em que não há qualquer limite imposto ao julgador para valorar a prova, sequer se falando em dever de fundamentação das decisões.
A reação ao sistema anterior (oriundo do positivismo exegético) é evidentemente desproporcional e antidemocrática, mas ainda encontra eco no Código de Processo Penal pátrio. A decisão dos jurados, como apontam DEZEM (2020, pp. 622/623), LOPES JUNIOR (2020, p. 420) e BADARÓ (2015, p. 415), é tomada com absoluta liberdade, sem necessidade de fundamentação ou motivação: basta que indiquem “sim” ou “não” ao responderem os quesitos formulados[3].
2.2. Sistema do livre convencimento motivado.
O sistema do livre convencimento motivado, expressamente adotado pelo Brasil conforme o artigo 155 do Código de Processo Penal, confere, segundo DEZEM, ampla liberdade para o juiz “quanto ao contexto probatório havido nos autos” (2020, p. 624). O risco de decisões arbitrárias presente no sistema da íntima convicção seria combatido pela dever, por parte do magistrado, de fundamentar e motivar amplamente suas decisões, apesar do livre convencimento.
LOPES JUNIOR, todavia, ressalva que, mesmo diante do suposto freio ao arbítrio consubstanciado no dever constitucional de fundamentar as decisões judiciais, há que se perquirir com mais afinco o alcance da liberdade do magistrado na formação da convicção.
Assim, a liberdade do magistrado não permite que ele substitua a prova por conjeturas, ou, “por mais honesta que seja, sua opinião” (LEONE, 1963, p. 157 apud LOPES JUNIOR, 2020, p. 421). Também não pode o juiz avalizar uma decisão que reflita sua opinião pessoal, idependentemente de o magistrado não estar vinculado à vontade da maioria, ou, ainda, suprimir “a dinâmica da dialeticidade do processo, cabendo a ele respeitar o tempo da acusação, da defesa, da prova e da própria maturação do ato decisório” (LEONE, 1963, pp. 158/159 apud LOPES JUNIOR, 2020, p. 421).
Destarte, concordando com STRECK, LOPES JUNIOR afirma que, por se tratar de um poder, é premente a necessidade de impor rígidos controles ao livre convencimento (que é muito mais limitado, como vimos, do que livre), evitando, assim, que o “juiz julgue ‘conforme a sua consciência’, dizendo ‘qualquer coisa sobre qualquer coisa’” (2020, p. 422).
3.Da necessária supressão do termo “livre”, instaurando-se o sistema do convencimento motivado.
Conquanto se afirme que o sistema do livre convencimento motivado seja um aprimoramento em relação aos sistemas da íntima convicção e da prova legal, constituindo-se em uma espécie de modelo ideal entre os dois, é preciso reconhecer que ele ainda se encontra atado ao paradigma subjetivista.
A filosofia da consciência que marca a modernidade, conforme apontado por STRECK em capítulo anterior deste escrito, foi, há muito, superada. Hoje, a filosofia parte do intersubjetividade, de modo que o livre convencimento motivado só seria aceitável se o direito estivesse separado da filosofia (STRECK, 2016, p. 4).
Não negamos, por óbvio, o progresso que o sistema do livre convencimento motivado representa em relação aos seus antecessores. A pretensão de conter o arbítrio judicial por meio do dever de fundamentar detidamente as decisões judiciais é coerente com a perspectiva democrática de processo penal instituída pela Constituição Federal brasileira.
O equívoco, todavia, está em aceitar que a decisão possa ser, em menor ou maior escala, “o produto de um conjunto de imperscrutáveis valorações subjetivas, subtraídas de qualquer critério reconhecível ou controle intersubjetivo” (STRECK, 2013, p. 50). É que, independentemente dos freios que se pretenda inserir, qualquer teoria que pretenda confiar na vontade do intérprete, conforme STRECK, possibilita arbitrariedades (2013, p. 50), o que é facilmente identificável ao analisar a jurisprudência pátria, como o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
Em face do princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, o Magistrado, no exercício de sua função judicante, não está adstrito a qualquer critério de apreciação das provas carreadas aos autos, podendo valorá-las como sua consciência indicar, uma vez que é soberano dos elementos probatórios apresentados (BRASIL, 2008 apud STRECK, 2013, p. 26).
Nos termos que expusemos anteriormente, o arbítrio ou discricionariedade judicial que buscamos extirpar do processo penal pátrio é fruto da aposta no solipsismo judicial. A filosofia da consciência, não conseguindo resolver a aporia oriunda da dicotomia entre razão teórica e razão prática, abandonou as questões relativas à segunda do seu campo de investigações. Por conseguinte, insistir em um sistema que segue pautado no paradigma subjetivista – na medida em que confere ao juiz o “livre” convencimento motivado –, equivale a plantar uma árvore em solo sabidamente infértil. É somente incorporando o direito no paradigma da intersubjetividade que alcançaremos resultados concretos, sendo necessário assumir que “o direito não é uma mera racionalidade instrumental” (STRECK, 2013, p. 90).
A partir da hermenêutica, assevera STRECK, “não há mais espaço para qualquer tipo de raciocínios que levam à discricionariedade judicial, justamente pelo fato de ter superado o problema filosófico que aí se instaura, o solipsismo” (2020, p. 112). A filosofia hermenêutica (HEIDEGGER e WITTGENSTEIN, por todos) e a hermenêutica filosófica de GADAMER têm sua utilização fundada a partir da introdução do mundo prático na filosofia, algo que nem o paradigma essencialista-objetivista ou a filosofia da consciência foram capazes de fazer (STRECK, 2013, p. 62). Outorgando os devidos créditos, ainda, à teoria integrativa de DWORKIN, que é compatível com essa compreensão, é evidente pretensão dos autores citados de controlar o voluntarismo e a subjetividade solipsista “a partir da força da tradição, do círculo hermenêutico e da incindibilidade entre interpretação e aplicação[4]” (STRECK, 2020, p. 112).
Se, no paradigma da intersubjetividade, o outro se faz necessário para que eu possa compreender o mundo, então é seguro afirmar que indivíduo não se basta. Por conseguinte, não há que se falar em livre convencimento motivado, pois fazê-lo seria insistir que o intérprete, suficiente em si, pudesse proceder à valoração da prova conforme sua consciência (ainda que limitada pela necessidade de motivação conforme exigido pelo artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal[5]).
Deste modo, o que se pretende com o abandono do paradigma da subjetividade é a renúncia da aposta na discricionariedade judicial, e não a sua mitigação ou limitação. Sempre haverá uma resposta adequada à todo caso concreto, a qual não depende da consciência do intérprete. Ainda que o livre convencimento motivado tenha sido importante em determinado contexto e quadra histórica, é preciso superá-lo, tomando do intérprete algo que nunca foi verdadeiramente dele: a autoridade sobre os sentidos.
Não são os valores pessoais limitados pela necessidade de motivar – se é que isso é verdadeiramente possível[6] – que incorporarão a decisão judicial, mas os princípios do direito e o próprio texto constitucional. É nesse sentido que o grupo de estudos hermenêuticos coordenado por STRECK, o DASEIN, afirma categoricamente em breve artigo: “a autoridade é do direito, não daquilo que o julgador diz ser o direito. A decisão sobre provas e elementos e ‘questões práticas’ se dá por princípio. E princípios, sempre lembra STRECK, não são valores” (2020).
Sendo assim, é evidente que a provocação a respeito da necessidade de suprimir o termo “livre”, instaurando o sistema do “convencimento motivado” não seria suficiente para a ruptura paradigmática que pretende STRECK, mas é irrefutável que quanto menos elementos o ordenamento jurídico fornecer para os arbítrios, melhor será a perspectiva de adotarmos um sistema de valoração de provas que ofereça contornos verdadeiramente democráticos. É preciso desistir, de uma vez por todas, das apostas que fizemos na incontrolável discricionariedade judicial.
Conclusão.
O presente escrito cumpriu seu objetivo principal, tendo concluído que o sistema do livre convencimento motivado não se compatibiliza com a noção democrática de processo penal, uma vez que se trata de um sistema preso no paradigma subjetivista e, portanto, arraigado no esquema sujeito-objeto, como se o indivíduo pudesse ser senhor dos sentidos, determinando-os independente de pré-compreensões e ignorando que somos seres no mundo. A negação do chamado “a priori compartilhado” redunda na noção individualista marcante da modernidade, que, conquanto tenha sido superada pela filosofia da intersubjetividade, ainda é encampada pelo direito, conforme expusemos no primeiro capítulo. De igual maneira, ainda que o sistema do livre convencimento motivado tenha representado notável avanço em relação aos demais sistemas de valoração de provas, é preciso reconhecer que ele ainda é insuficiente para solucionar o déficit interpretativo de que padecem os tribunais brasileiros, fulminando a segurança jurídica e, em última análise, a própria democracia.
Referências.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
DASEIN, Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Livre convencimento, as críticas de Streck e as críticas às críticas. Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-07/diario-classe-livre-convencimento-criticas-streck-criticas-criticas. Acesso em 19 jun. 2021.
DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
DWORKIN, Ronald. Império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MADEIRA, Dhenis Cruz. O que é solipsismo judicial? Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 22, n. 126, fev./mai. 2020, p. 191-210. Disponível em: https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/1916. Acesso em: 19 jun. 2021.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Forianópolis: EMais, 2020.
STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
STRECK, Lenio. Livre convencimento no novo CPP: mas, já não apanha(ra)m o suficiente? Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mai-05/senso-incomum-livre-convencimento-ncpp-nao-apanharam-suficiente. Acesso em 19 jun. 2021.
STRECK, Lenio. Hermenêutica, jurisdição e decisão: diálogos com Lenio Streck. 2. ed. ampl. e rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.
[1] Aqui, tratamos somente da discricionariedade judicial, não da discricionariedade administrativa.
[2] Importa dizer, também, que é desse sistema que decorre a ideia de que a confissão é a rainha das provas (DEZEM, 2020, p. 623).
[3] Necessário apontar que a incompatibilidade da íntima convicção dos jurados com o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal é apontada pela doutrina (DEZEM, 2020, pp. 622/623), sendo também relevante a crítica de LOPES JUNIOR, para quem a íntima convicção dos jurados permitiria um retrocesso, inclusive, ao nefasto direito penal do autor, sem olvidar a possibilidade de decisão contrária à prova dos autos (2020, p. 420).
[4] A cisão entre interpretação/compreensão e aplicação é afastada pela hermenêutica: “Compreender é primeiro um modo de ser e um modo de acontecer. Por isso (...), compreender, e, portanto, interpretar (compreender é interpretar, pois interpretar é explicitar o que se compreendeu), não depende de um método. Existe um processo de compreensão prévio (pré-compreensão) que antecipa qualquer processo de interpretação e que é fundamental” (STRECK, 2013, p. 79). É por isso que GADAMER diz que não se interpreta por etapas (STRECK, 2013, p. 91).
[5] Cumpre destacar que, se de fato o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal fosse suficiente para limitar a discricionariedade e o arbítrio por parte de juízes, desembargadores e ministros, não haveria qualquer necessidade de inserir, no caso do Código de Processo Penal, o artigo 315, que replica o texto do Código de Processo Civil e dispõe parâmetros objetivos para que uma decisão judicial seja considerada motivada e fundamentada.
[6] O ministro MARCO AURÉLIO MELLO afirmou em entrevista ao CONJUR: “Idealizo para o caso concreto a solução mais justa e posteriormente vou ao arcabouço normativo, vou à dogmática buscar o apoio” (2010).
Advogado criminalista. Mestrando em Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenador adjunto do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do IBCCRIM/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, RODRIGO DE AZEVEDO. Da necessária superação do livre convencimento motivado no processo penal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jul 2022, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58900/da-necessria-superao-do-livre-convencimento-motivado-no-processo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
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