WILLIANE DOS SANTOS FERREIRA [1]
(coautora)
RESUMO: Este artigo visa analisar através do método histórico crítico-reflexivo, com bases legais e dados históricos, o impacto da ditadura militar em relação aos povos indígenas no país, principalmente os pertencentes à etnia Waimiri-Atroari, bem como consequências ocorridas à essas comunidades e apresentar o que traz a Constituição Federal de 1988 a respeito do assunto, a fim de debater como os instrumentos do Direito positivo podem ajudar as populações indígenas a recuperarem seu espaço histórico-social e a garantirem seus direitos básicos. Analisar-se-á a historicidade dos fatos e acontecimentos durante os anos que antecedem o regime militar, bem como o período de 1964 a 1985 a respeito do genocídio indígena ocorrido durante o período citado e como a legislação vigente à época deu abertura ao desencadeamento dos fatos.
PALAVRAS-CHAVE: Ditadura militar, região amazônica, sociedades indígenas, direito positivo, Constituição Federal.
ABSTRACT: This article aims to analyze, through the critical-reflective historical method, with legal bases and historical data, the impact of the military dictatorship in relation to indigenous peoples in the country, especially those belonging to the Waimiri-Atroari ethnic group, as well as the consequences that occurred to these communities and present what the 1988 Federal Constitution brings on the subject, in order to discuss how the instruments of positive law can help indigenous populations to recover their historical-social space and guarantee their basic rights. The historicity of the facts and events during the years before the military regime will be analyzed, as well as the period from 1964 to 1985 regarding the indigenous genocide that occurred during the mentioned period and how the legislation in force at the time opened the way for the triggering of the facts.
KEYWORDS: Military dictatorship, Amazon region, indigenous societies, positive law, Federal Constitution.
1.INTRODUÇÃO:
Estima-se que até o final da década de 50 mais de 300.000 (trezentos mil) indígenas residiam em todo o território nacional. Em 1964 os militares assumiram o poder e após quatro anos do golpe de Estado o número de residentes indígenas brasileiros foi reduzido para 80.000 (oitenta mil), o que representou o desaparecimento de mais de 75% de vidas indígenas no país. A influência e o poder dos militares à época motivaram significativamente a ocorrência dessa tragédia, resultando em uma mortandade massiva, ceifando milhares de vidas, um verdadeiro genocídio contra as populações indígenas.
O golpe de 1964 trouxe para o Brasil, além de diversas particularidades de governança, um novo período econômico. Intensificou-se o número de construções grandiosas que logo se espalharam por todas as regiões do país e à frente aos espaços a serem preenchidos pelas respectivas edificações, inúmeros povos com suas terras ancestrais foram visados como empecilhos para o avanço da modernidade.
Tratados como obstáculos físicos para o “desenvolvimento” pretendido pelos governantes, as comunidades indígenas foram alvos definitivos, para que uma vez expulsos das terras, dessem espaço para o engrandecimento das regiões, principalmente no Norte do país, onde muito se almejava “preencher” o território não ocupado e explorar todos os tipos de riquezas naturais. Em recorte, a população Waimiri sofreu abruptamente e quase teve todo o seu povo dizimado.
Antes desse contexto de ameaça direta sofrida pelas comunidades indígenas, se percebeu a necessidade de garantir, mesmo que de forma ínfima, uma proteção especial aos povos extremamente vulneráveis, no entanto, os modelos de proteção criados durante o regime militar serviram como uma espécie de “passe livre” para legalizar a invasão das terras indígenas e a expulsão dos nativos de suas terras.
O primeiro modelo de proteção ao índio criado no Brasil, foi o SPI- Sistema de Proteção ao Índio, elaborado na primeira década do século XX, momento em que o país passava por uma grande necessidade de expansão territorial.
Com esse modelo, o Estado conseguiu investir em sua política expansionista e pregou ao mesmo tempo a “proteção ao indígena”, com o intuito de alcançar seus objetivos de crescimento econômico. Com o tempo ficou claro que a proteção visada pelo Estado era fatalmente concorrente com o seu interesse de ocupação territorial, o que tornou a ação do governo dúbia, pois o Estado que invadia o território indígena era o mesmo que pretendia a sua proteção.
O SPI enfrentou durante toda a sua existência problemas de carência de recursos e dificuldades de qualificação de seu pessoal. A atuação do órgão acabou por gerar resultados opostos a sua proposta. Eram frequentes as denúncias de casos de fome, doenças, assassinatos e escravização. No início da década de 1960, sob a acusação de genocídio, corrupção e ineficiência o SPI foi investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). O processo levou à demissão ou suspensão de mais de cem funcionários de todos os escalões. Em 1967, durante o regime militar, o SPI e o CNI foram extintos e substituídos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). (Alzira Alves de Abreu)
O segundo modelo de proteção ao índio criado no Brasil surgiu no governo dos militares, no início da década de 70. O governo de Emílio Garrastazu Médici promulgou a Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que ficou amplamente conhecida como o Estatuto do Índio.
Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.
Parágrafo único. Aos índios e às comunidades indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas nesta (Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973).
O intuito desse novo modelo não era mais de proteção, mas de integralização do índio à sociedade, modelo que apesar de defasado em relação aos dias atuais ainda é vigente e não há previsão de atualização ou elaboração de algum outro modelo que venha a reger as relações entre o Estado e o indígena, perpetuando uma lacuna no Direito Indigenista no Brasil. A integração desses povos deve buscar a preservação da memória, não há como integrá-los sem respeitar a ancestralidade e o seus direitos às terras.
A Constituição de 1988 por sua vez, possibilitou um certo rompimento com o modelo integracionista que dominava o período, apresentando condições do índio ser respeitado em sua cultura e integrado de forma respeitosa, possibilitando por exemplo o seu ingresso em instituições de ensino na sua própria língua materna, e assegurando uma maior participação nas decisões relacionadas às terras por eles ocupadas.
Foi mantida também pela Lei Maior a responsabilidade da União de proteger e fazer respeitar os direitos indígenas. Apesar de não trazer de maneira expressa no que tange a capacidade civil, ela trouxe em seu artigo 232[2] a capacidade processual, pois assegurou aos índios serem partes legítimas para entrar em juízo, inclusive contra o próprio Estado, seu suposto tutor.
Um Novo Estatuto do Índio é algo a ser objeto de análise por nossos representantes, certo de que se baseie na Carta Magna e nos Direitos Humanos, visando oferecer as condições necessárias para que os indígenas sejam cidadãos amparados e assistidos pelo Governo, sem deixar de lado o progresso que a modernidade oferece.
Desta forma, a importância deste trabalho justifica-se na permanente discussão do tema abordado, principalmente na região Norte e da característica ainda atual que é a violência discriminatória contra os indígenas, principalmente em decorrência dos fatos ocorridos no período de repressão, possuindo grande relevância para o meio acadêmico pois propõe uma análise crítico-reflexiva de fundamentos legais do Direito.
2. A DITADURA MILITAR E A AMAZÔNIA:
O que ocorreu na região Amazônica no período compreendido pelo regime de ditadura militar foi reflexo de uma conduta administrativa voraz, que almejou o domínio do patrimônio nacional cada vez maior, ultrapassou diversos limites e desrespeitou inúmeros direitos humanos, foi indubitavelmente um período de repressão e extermínio contra a população indígena brasileira.
Os militares articularam um programa econômico contemplado no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)[3] e criaram diretrizes de segurança interna desenvolvidas pela Escola Superior de Guerra (ESG)[4], ambos institutos com visões extremistas e com uma ideologia direitista com forte influência norte-americana.
Dessa forma, a integração completa do território nacional foi a grande meta do governo àquela época. Isso incluiu um programa ganancioso que deslocou quase um milhão de pessoas de todos os lugares do país, principalmente das regiões Sul e Nordeste, com o objetivo de ocupar estrategicamente a região amazônica, sem deixar despovoado nenhum espaço e vedando as áreas de fronteiras.
Os incentivos governamentais duraram anos, muitas estradas foram abertas para facilitar o desenvolvimento da região e consequentemente acarretaram no desmatamento intensivo e destruição de diversos biomas amazônidas. Nesse mesmo período, a política para a Amazônia ficou conhecida pelo lema "Integrar para não Entregar".
As populações indígenas estavam posicionadas entre os militares e a realização do maior projeto estratégico de ocupação do território brasileiro e que por este motivo, quase foram exterminadas por um projeto incapaz de visar um desenvolvimento que os acolhesse ou ao menos respeitasse suas vidas e terras.
A psicanalista Maria Rita Kehl[5], integrante da Comissão Nacional da Verdade, comissão criada pela Lei n.º 12.528 de 18 de novembro de 2011, que teve como objetivo apurar as graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988, descreveu a inocência dos povos indígenas diante da barbárie e da perversidade militarizada, a ponto de resistirem sem conhecer o motivo daquele afronte, lutavam puramente por suas existências e pela preservação de suas terras.
“Os indígenas não estavam resistindo no sentido político, já que não sabiam exatamente o que era a ditadura. A resistência deles era, de certa maneira, ingênua, no sentido de preservar sua terra. Mas o tratamento dado a eles era violentíssimo” (KEHL, Maria Rita, em 2011).
Muitas dores vividas durante esse tempo não foram reveladas, não há o conhecimento sobre a maioria dos crimes cometidos pela ditadura contra as populações indígenas. Nessa direção, o documento de denúncia mais importante sobre esses crimes foi o “Relatório Figueiredo”, produzido pelo próprio Estado e que desapareceu por mais de 45 anos. Foi encontrado somente em 2013 no Museu do Índio no Rio de Janeiro.
A investigação do referido relatório foi feita em 1967, a pedido do Ministro do Interior, Albuquerque Lima, sendo o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do recém extinto SPI e visitou mais de 130 postos indígenas.
O Relatório Figueiredo apurou o extermínio de comunidades inteiras, torturas e todo tipo de crueldade, crimes praticados principalmente por militares e ex-funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Entre denúncias, haviam relatos de perseguições promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado com veneno.
3. A ETNIA WAIMIRI-ATROARI, UM POVO DE RESISTÊNCIA
Em 1911, antes da tomada da democracia pelos militares, Alípio Bandeira, oficial do exército e representante do Serviço de Proteção ao Índio, percorreu a região onde se localiza o rio Jauaperi e teve contato com os denominados “Waimiris”. Em 1912 instalou o primeiro posto de atração aos índios e foi a partir dessa data que o SPI passou a coordenar os trabalhos e a política indigenista na região. Isso em tese, pois o órgão tinha pouca autonomia para impor as políticas indigenistas vigentes nessa época.
O governo estadual, nesse período, tinha sua economia baseada nos produtos extrativistas, logo a população indígena tornava-se um incômodo para os coletores das "drogas do sertão" o que acarretava em uma guerra injusta, um se defendia enquanto o outro atacava.
Com o passar dos anos, na década de 1960, nas proximidades da cidade de Manaus, o povo Waimiri resistia. Nessa região, sofreram com as expedições militares e com a constante ameaça e truculência de garimpeiros e seringueiros, em razão das fortes perseguições, fugiram dos seus territórios originários. Como defesa eles se isolaram e resistiram violentamente aos que adentravam sem permissão em seus territórios, ganhando fama de cruéis, imagem que foi explorada por seus inimigos.
Durante as construções das estradas e rodovias a área em que viviam foi isolada pelo exército e o acesso aos indígenas era controlado pelos militares, por essa razão os primeiros relatos dos massacres só apareceram a partir de 1985, no fim do regime militar, quando os indigenistas e missionários Egydio Schwade e Doroti Schwade[6] que já atuavam há anos na causa indigenista iniciaram um processo de alfabetização dos Waimiris em sua língua mãe, tornando aquele momento de aprendizagem e alfabetização em um acontecimento antropológico.
Os indigenistas se basearam em alguns métodos de Paulo Freire[7] para incentivar os índios a contarem suas histórias através de desenhos e didaticamente eles conseguiram relatar de forma mais direta os episódios de violência vivenciados durante as construções das estradas e a listar os seus familiares e amigos assassinados nas ações, além das aldeias que sumiram completamente.
Em um dos relatos, um waimiri contou que “um dos homens civilizados” jogou do avião em que estava um pó que queimou a garganta dos índios e estes logo em seguida morreram. Vários depoimentos foram coletados em seguida e muitos relataram com exatidão esse mesmo acontecimento.
A Comissão Nacional da Verdade por sua vez, instituída pelo próprio governo brasileiro em 2012, investiga há anos o desaparecimento de aproximadamente 2.000 índios da etnia Waimiri-Atroari durante a ditadura militar. O território desse povo se estendia de Manaus até o sul de Roraima. A comissão inclusive recebeu um relatório, elaborado pelo Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, que aponta para a existência de um massacre dos Waimiri-Atroari, operado pelo Exército, com a aplicação de táticas de guerra.
No início do século passado, antropólogos e estudiosos estimaram em 6.000 (seis mil) a população total de Waimiri-Atroari. Em 1972 a FUNAI informou que a população caiu em 50%, chegando a cerca de 3.000 (três mil) pessoas. Dois anos depois, em 1974 a FUNAI constatou que a etnia Waimiri foi reduzida a menos da metade.
Em 1982 um relatório também feito pela FUNAI contabilizou que ainda existiam 572 Waimiris, no ano seguinte um censo realizado pelo pesquisador Stephen Grant Baines[8] da Universidade de Brasília, contou apenas 332 indígenas. Ao longo das décadas o território dos Waimiris foi reduzido drasticamente, não só pela construção da BR-174, mas também por conta dos projetos de mineração, da invasão do garimpo ilegal e posteriormente pela hidrelétrica de Balbina.
Atualmente, conforme o Programa Waimiri-Atroari, que é um programa, representando a Funai em parceria com a Secretaria de Educação do Estado do Amazonas, o Instituto de Medicina Tropical de Manaus (IMTM), a Universidade do Amazonas e a Eletronorte, foi registrado em sua última contagem demográfica, em fevereiro de 2020, aproximadamente 2.000 indígenas alocados em 62 aldeias no Norte do país.
Diante da luta do povo Waimiri e da sua história de resistência, cada descendente representa esperança para as futuras gerações. Resta à toda sociedade apoiar a causa indigenista no país e ao Estado fomentar a preservação etnográfica desta gente e garantir a aplicação eficaz da legislação vigente em relação à preservação das comunidades indígenas.
4. MODELO INTEGRACIONISTA E A POLÍTICA INDIGENISTA:
O modelo integracionista foi elaborado logo que os militares chegaram ao poder, na visão deles a nação carecia de mão de obra e espaço ocupado, logo a conversão do índio à civilidade foi visto como uma boa opção para as necessidades do país. A terra que era até então destinada aos índios, serviria aos interesses de desenvolvimento do Estado, e aqueles que concordassem em se “civilizar”, serviriam como mão de obra e produtores de mercadorias.
Esse modelo implementado pelos militares passou a reger a política indigenista oficial, sendo possível visualizar sua atuação na Operação Amazonas - 1966, que junto com o Plano de Integração Nacional (PIN)[9], consistiu em um dos maiores planos para superar o subdesenvolvimento do país, com a expansão territorial, rumo às regiões menos populosas e povoadas.
A extinção do SPI e a criação da FUNAI em 1967, teve intensa participação da política internacional, onde o Brasil assumiu uma postura positiva quanto aos aparelhos do Estado, oriundo da importância do financiamento externo e das transformações que se queria implementar. A extinção do SPI representou na verdade um reordenamento dos aparelhos estatais.
O Estatuto do Índio, legalizou os interesses políticos acima do Direito Indigenista. A lei nº 6.001 de dezembro de 1973, revelou uma intenção clara de integrar os índios à sociedade brasileira, de maneira que estes não atrapalhassem o desenvolvimento do país e a exploração das riquezas naturais.
O objetivo da política integracionista é totalmente posto em dúvida, uma vez que, buscava “integrar” o índio à sociedade, desempossando-o do direito às suas terras. Quando determinada comunidade indígena se integrava à sociedade, não mais se distinguia da civilidade, o que quer dizer que não necessitava de direitos sobre as terras que ocupava, bem como qualquer tipo de assistência especial em relação às suas vulnerabilidades frente ao acesso à justiça.
6. CONSTITUIÇÃO DE 1988 E AS INOVAÇÕES PARA O DIREITO INDIGENISTA:
As constituições de 1824 e 1891 não se manifestaram em relação aos direitos dos índios no que tange às terras a eles ocupadas, pois havia a justificativa de que cada província poderia atuar e legislar para promover a “civilização” dos índios, revelando uma verdadeira insegurança e instabilidade jurídica aos povos nativos.
O instituto do Indigenato apenas foi acolhido pela constituição de 1934, em seu art. 129 e reconheceu a obrigatoriedade de respeito "à posse da terra por indígenas que nelas se achem permanentemente localizados".
Dessa forma, é possível afirmar que as constituições de 1937 (art. 154), 1946 (art. 216), a de 1967 (art. 186), 1969, (art.198) e 1988 (art. 231), garantiram o direito à posse das terras ocupadas permanentemente. Destaca-se que a constituição de 1967, assegurou o usufruto exclusivo dos recursos naturais e utilidades existentes nas terras indígenas, essa garantia foi mantida na constituição de 1988, (art. 231. § 2º CF).
CF - 1988. Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
Nessa toada, os indígenas foram verdadeiras vítimas do crescimento econômico vivenciado pelo país, tudo o que pregava sua devida proteção foi contaminado pelos interesses daqueles que visavam o crescimento proposto pelo Estado.
A constituição de 1988, na oportunidade, criou meios para garantir a educação nas próprias línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (art. 210, § 2º)[10], bem como proteção às suas manifestações culturais (art. 215, § 1º)[11], a própria legitimação das comunidades e organizações para ingressarem em juízo para a defesa de seus direitos e interesses, estabelecida pelo já comentado art. 232; o que revela a nítida ruptura com o sistema integracionista anterior.
Quanto à exploração mineral, a Carta Magna de 1988 não proibiu, mas condicionou à aprovação prévia do Congresso Nacional e à consulta às comunidades afetadas. O problema encontrado entre a passagem do Sistema integracionista para a Constituição, está no fato de o Estatuto do Índio ser incompatível com a postura adotada atualmente.
Por seu turno, os direitos individuais e coletivos são assegurados no artigo 5º da Constituição de 88 e merecem especial menção no que tange ao amparo e proteção à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, decorrendo destes todos os demais que estão salvaguardados dos incisos I a LXXVII.
Cumpre mencionar que dispositivo do art. 5º traz o direito de igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, não deixando de ter sentido especial essa primazia ao direito de igualdade, que, por isso, servirá de orientação ao intérprete, que necessitará ter sempre presente o princípio da igualdade na consideração dos direitos fundamentais assegurados aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País.
A igualdade que se busca estabelecer depois da Constituição de 1988 precisa com urgência ser transformada em legislação específica, tendo em vista que o Estatuto do índio que foi criado no sustentáculo do modelo integracionista ainda vigora nos dias atuais.
7. LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL
A Declaração sobre Direitos dos Povos Indígenas foi adotada em setembro de 2007, pela Assembleia Geral da ONU. O documento não estabeleceu novos direitos, mas reafirmou os direitos fundamentais já garantidos, constituindo um instrumento internacional importante de direitos humanos, contribuindo para a conscientização sobre a opressão histórica imposta aos indígenas, além de promover relações saudáveis entre estes, o Estado e a sociedade.
Os dias que correm carecem de novas abordagens sobre os problemas globais, tais como desenvolvimento, descentralização e democracia. Os Brasil e os demais países precisam adotar novas formas de interação com os povos indígenas, que requerem interações equitativas com suas lideranças e representações, o que não vem ocorrendo, a realidade é opositora, existe um distanciamento e apagamento dessas relações.
A Declaração diz que os povos indígenas têm direito de gozar plenamente de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos na Carta das Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no direito internacional humanitário, atento à unicidade pertinente às realidades dos povos indígenas, reafirmando direitos fundamentais e promovendo o combate de violações que vão desde o trabalho infantil à discriminação racial.
A Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção da Diversidade Biológica, dos quais o Brasil assina, reafirmam direitos indígenas fundamentais de caráter individual e coletivo para serem observados e respeitados por todos os países que os tenham aceitado.
Apesar de não ser um instrumento vinculativo juridicamente, a Declaração da ONU estabelece diretrizes para as políticas e legislações nacionais que dizem respeito aos povos indígenas. Além disso, a Declaração reconhece direitos importantes e reafirma alguns direitos já estipulados de forma vinculante por tratados internacionais de direitos humanos e pela prática de organismos internacionais como, por exemplo, o direito às terras tradicionalmente ocupadas e aos recursos naturais nelas existentes, e o direito à consulta prévia e informada.
A ONU afirma que os indígenas têm pleno direito “a todos os direitos humanos reconhecidos no direito internacional”, observado que “os povos indígenas possuem direitos coletivos que são indispensáveis para sua existência, bem-estar e desenvolvimento integral como povos”.
8. CONCLUSÃO:
Não há dúvidas que a legislação indigenista brasileira desde o primórdio de sua criação, ao lado do sistema protecionista vigente no país durante o período dos governos militares, foi elaborada com o intuito de promover os interesses econômicos e políticos do país, bem como de suas lideranças, e influentes à época.
O Sistema com a finalidade de “integrar” os índios e obter vantagens para o Estado com a posse dos seus territórios e a mão de obra que essa integração poderia favorecer, reflete nitidamente os interesses estatais. O comportamento violento do Estado, que deveria de fato tutelar e proteger os povoados indígenas, refletiu em um período obscuro, onde o avanço da modernidade foi edificado às custas do sangue de diversas vidas dos povos da floresta.
A Constituição de 1988 conseguiu trazer previsões legais melhores em relação às condições de usufruto das terras indígenas e a garantia de direitos como cidadãos, reconhecendo as diferenças culturais e temporais que os separam da sociedade em geral, para equipará-los legalmente sem violar suas condições étnicas e o ambiente em que vivem.
O Direito Internacional por sua vez, oferece através de suas convenções a base para que o novo Estatuto do Índio seja construído, respeitando as diferenças entre as comunidades indígenas e lhes proporcionando a chance de preservarem sua cultura sem abster-se dos avanços que a modernidade oferece.
É lamentável reconhecer a lacuna que há em nosso ordenamento jurídico quanto aqueles que são primordialmente o Brasil. Através do reconhecimento, é esperado que venha a incitação para a luta, para que os Direitos desses povos sejam reconhecidos e atualizados, e que assim o Direito e o acesso à justiça cheguem cada vez mais perto do que lhe é esperado.
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[1] Williane dos Santos Ferreira, graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
[2] CF - Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
[3]O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) foi fundado em 29 de novembro de 1961, financiados por empresário foi um núcleo da extrema direita no país.
[4] Entidade criada em 22 de outubro de 1948 pelo Decreto nº 25.705 e organizada de acordo com a Lei nº 785, de 20 de agosto de 1949. A Escola Superior de Guerra foi subordinada à Presidência da República através do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA). Tinha o propósito de se tornar uma agência socializadora das elites brasileiras, militares e civis em torno de questões referentes à segurança e desenvolvimento do país.
[5] Maria Rita Kehl foi editora do Jornal Movimento, um dos mais importantes veículos da imprensa alternativa durante a Ditadura, e participou do grupo que criou o jornal Em Tempo, em 1978.
[6] Casal de indigenistas e ativistas que se dedicaram incansavelmente no combate aos grandes projetos econômicos que estavam decretando a morte do povo Waimiri-Atroari durante o regime militar.
[7] Paulo Freire foi um educador e filósofo brasileiro. É considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. É também o Patrono da Educação Brasileira.
[8] O antropólogo Stephen Grant Baines é Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, pesquisador de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e coordenador do Laboratório e Grupo de Estudos de Relações Interétnicas (LAGERI/UnB).
[9] Programa governamental instituído pelo Decreto-Lei nº 1.106, de 16 de junho de 1970, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici. Tinha por objetivo implementar obras de infraestrutura econômica e social no Norte e no Nordeste do país.
[10] CF-88. Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
[11] Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Lara Ariel Souza de. A violência contra os povos indígenas da etnia Waimiri-Atroari durante a ditadura militar brasileira, uma análise à luz do direito positivo. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2022, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58944/a-violncia-contra-os-povos-indgenas-da-etnia-waimiri-atroari-durante-a-ditadura-militar-brasileira-uma-anlise-luz-do-direito-positivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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