RODRIGO ANTÔNIO CORREIA
(orientador)
ReSUMO: O presente artigo objetiva demonstrar como a política repressiva da guerra às drogas em vigor na atualidade é um sistema fracassado. Sob o pretexto de diminuir o tráfico e consumo acaba na realidade por intensificar problemas de saúde pública escondendo suas verdadeiras motivações, sejam econômicas ou de exclusão social. Para isso, se faz necessário entender como se desenvolveu esse modelo na história, e as dificuldades de se aderir a políticas alternativas, apesar do seu fracasso. Através da revisão bibliográfica da legislação, doutrina, artigos e notícias, analisaremos a Lei 11.343/2006, especificamente no tocante à diferenciação do usuário e do traficante nos artigos 28 e 33, para entender seus problemas e incongruências, que vão da esfera judiciária passando pela carcerária até a de saúde pública. Por fim, demonstrar a necessidade de mudança da norma, que aliada a campanhas de prevenção sem a intervenção do Direito Penal, tem a oportunidade de obter resultados significativos no tratamento do problema.
Palavras chave: Drogas; Direito Penal; Guerra às Drogas; Lei de Drogas 11.343/2006; Diferenciação entre usuário e traficante.
ABSTRACT: This article aims to demonstrate how the repressive “drug war” policy ruling in the world its a failed system. Under the guise of decreasing drug trafficking and consumption, ends up in fact intensifying public health problems hiding its true motivations, whether be economic or social excludent. To do so, it is necessary to understand how this model was constructed historically, and the difficulty of implementing alternative policys, despite their failure. Through literature review of law doctrine, articles and news, we are going to analyse the 11.343/2006 Law, specifically in the matter of differentiate the drug user and drug dealer, analyzing the law articles 28 and 33, in order to understand its problems and inconsistencies, that goes from the judiciary scope, passing through the prisional to the public health. Finally demonstrate the need to change the law, that combined with prevention campaings, without Criminal Law interventions, has the opportunity of obtain significant results on this matter.
Key words: Drugs; Criminal Law; Drug War; Drug Law 11.343/06; Differentiation betwen user and dealer.
1- introdução
O tema central do artigo, objeto de estudo desse trabalho, é a política de drogas, mais especificamente no Brasil. Esse sistema apresenta problemas fundamentais em sua essência, já que foi construído de maneira equivocada, levando em consideração interesses diversos aos que deveriam ter sido analisados.
Essa política, influenciada pela norte americana da repressão, tem como objetivo combater o tráfico, diminuir o consumo e a demanda, utilizando de todas as ferramentas disponíveis, incluindo e principalmente a de controle penal.
O sistema se válida na ideia de proteção à saúde pública, mas, na realidade, o que realmente nos proporciona é a violência generalizada (parcial quanto à raça e gênero), e superpopulação carcerária, com aumento exponencial dos danos causados aos usuários.
O direito penal nesse aspecto não soluciona questões de saúde pública, apenas dificulta estratégias de redução de danos e campanhas de educação e conhecimento sobre o assunto, além de ter um custo de manutenção altamente elevado.
Nesse viés vamos discutir brevemente o desenvolvimento e difusão das “drogas” e da ideologia proibicionista da “Guerra às drogas”, e como funciona de fato no nosso país, esclarecendo a Lei 11.343/2006 no sentido da diferenciação de usuário e traficante, trazendo à tona seus problemas e incongruências deixando clara a necessidade de um critério mais objetivo que diferencie esses dois tipos penais.
Por fim debater sobre a necessidade da prevenção que, comprovadamente, conforme exemplos de outros países que adotaram a medida, é muito mais efetiva no tratamento da problemática das drogas.
2- DEFINIÇÃO DE DROGA
A definição mais abrangente de “droga” fornecida por farmacologistas a conceitua como qualquer substância capaz de alterar o funcionamento normal de um organismo. Utilizando essa definição temos como drogas a maconha, cocaína, heroína, assim como, aspirinas, anabolizantes e até chá de camomila.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu Glossário de Álcool e Drogas, as define como substâncias “que afetam a mente e os processos mentais” (ARAÚJO, 2012, p. 14). Utilizando dessa definição temos como drogas o álcool, o tabaco e a cafeína, algumas das substâncias mais consumidas no mundo todo.
As drogas ainda permitem a classificação entre ilícitas e lícitas as quais podem ser ou não controladas. Essa é a classificação jurídica, tendo como ilícitas aquelas positivadas em lei que tem seu uso proibido pelo Estado e por organizações internacionais. Lícitas são as que são permitidas em lei, e que podem ser controladas: como o caso do álcool e da nicotina; ou não, como é o caso do café (cafeína).
O artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006, conceitua as drogas como “substâncias ou produtos capazes de causar dependências, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. ” Dessa maneira conclui-se que as substâncias não são originárias de nosso organismo e que tem como resultado alterações no funcionamento deste e dependência, sendo assim definidas como drogas. (BRASIL, 2006)
Apesar de serem as substâncias mais consumidas do mundo e ainda terem a capacidade de alterar comportamento e/ou percepção, tendo impactos na saúde, o álcool, o tabaco e a cafeína, se aplicados os pressupostos dos critérios explicitados acima para caracterizar uma substância como droga, não seriam definidas como legais por suas propriedades em si. As circunstâncias que norteiam essa classificação são completamente desligadas de conceitos relacionados à saúde pública. Esses parâmetros que definem a ilegalidade de seletas substâncias são de cunho histórico, social, político ou geográfico e as leis que positivam os critérios de classificação são vagas e inconsistentes. Neste artigo serão discutidas as drogas ilegais.
3 - A DROGA NA HISTÓRIA
Profissionais antropólogos e arqueólogos, baseados em dados relativos à arte, como pinturas em cavernas, datadas do período Paleolítico superior, que seria entre 10 mil e 40 mil anos atrás, estimam que a primeira substância psicoativa utilizada pelo homem teria sido oriunda de certos cogumelos alucinógenos.
No Egito Antigo, substâncias como mel, alho e inclusive ópio eram utilizados como medicamentos, além da cerveja egípcia que era utilizada para o lazer em festividades.
Existem relatos da Grécia antiga, onde drogas eram consumidas em rituais, em que era possível “ver os deuses”, indicativo do uso de substâncias alucinógenas.
Com a propagação do cristianismo, onde as ideias de preservação do corpo e da mente são pilares a serem seguidos, o uso de “drogas” passou a ser condenado e, por volta do século IV, com os imperadores cristãos, as primeiras leis antidrogas foram criadas com uma certa parcialidade, pois elas nessa época eram bastante utilizadas por religiões pagãs em seus rituais, que sofriam bastante preconceito por parte dos adeptos ao cristianismo que era a religião dominante.
Felício (2018, p.11), em sua obra “O fracasso do proibicionismo e da política de Guerra às Drogas”, faz um paralelo importante entre os atos dos cristãos com a conhecida Guerra. Segundo ela “[...] os cristãos foram os pioneiros na realização de uma espécie de guerra às drogas, já que os monges destruíam, profanavam e invadiam templos dessas religiões que utilizavam de substâncias psicoativas [...]”, porém nem a força nem influência da Igreja católica conseguiram parar o avanço do uso dessas substâncias.
Mesmo com o grande poder que o cristianismo exercia nesse momento histórico, o consumo de drogas perdurou e começou a se difundir. E isso ocorre pelo sentimento do impacto sofrido na economia global pelas drogas locais, deixando o viés moral de lado.
Com as grandes navegações a Europa expandiu suas relações com grande parte do mundo, levando e trazendo novas drogas para sua população e para as populações ao alcance de seus navios, como o ópio vindo da China e da Companhia das Índias Orientais e o tabaco vindo das Américas.
Ao longo do desenvolvimento do que nós conhecemos hoje como civilização há ainda vários relatos sobre o uso de substâncias que podem ser consideradas “drogas” sendo utilizadas para inúmeros fins, mas principalmente medicinal, religioso ou recreativo.
Com a expansão do uso dessas substâncias começam a surgir também as ideias da proibição e repressão. Além do cunho xenofóbico do cristianismo, pioneiro na ideologia, outras motivações que não deveriam ser consideradas, foram disfarçadas de preocupações para justificar a intolerância, como interesses pessoais, econômicos, geográficos e em sua grande maioria preconceituosos.
Como foi o caso dos Estado Unidos, onde a “Guerra às Drogas” teve seu agravamento nas mãos de um homem chamado Harry Anslinger, movido por motivos pessoais e pelo viés econômico.
Anslinger, que trabalhava no escritório encarregado de aplicar a proibição do álcool, depois que o álcool foi liberado nos EUA em 1933, conseguiu uma transferência para a FBN – Escritório Federal de Narcóticos. Ao contrário de seu antigo escritório, a FBN era menor e tinha menos recursos, já que o problema das drogas não era grande como o do álcool na época para os americanos. Assim, Anslinger em busca de aumentar seu orçamento e pessoal introduziu uma nova droga até então pouco conhecida no país, a maconha.
A partir de reportagens sensacionalistas demonizando a droga e os usuários, arquitetadas por ele, e vencendo o voto uno, do único médico participante da discussão no Congresso Nacional, conseguiu a proibição da maconha, somente 4 anos após a liberação do álcool e também que seu orçamento fosse aumentado e a maconha fosse reconhecida como uma nova ameaça e uma droga muito pior e mais destrutiva que o ópio e a heroína.
Importante destacar o pensamento de Valois (2017, p. 34), em seu livro “O direito Penal da Guerra às Drogas”: “Os dados científicos são manipuláveis e manipulados livremente para formar o discurso moral mais interessante para o objetivo almejado, por pessoas que muitas vezes não tem qualquer preparo ou conhecimento acerca daquele estudo científico.”. Que se encaixa perfeitamente na situação em foco.
Em sua monografia ‘O fracasso do proibicionismo e da política de “guerra às drogas”’, Gabriela Felício nos elucida outra verdade, que impulsionou a ajuda popular, por trás da criminalização na época:
o viés xenofóbico da criminalização da maconha está no fato de que a maconha era a droga de grande popularidade entre os mexicanos, que a partir da quebra da bolsa de valores norte-americana, passou a ser mão de obra competitiva, não desejada em razão da crise econômica. [...] (2018, p. 21)
Seguindo os ideais americanos recheados de preconceito disfarçado, no ano de 1961, foi assinada a “Convenção única sobre drogas narcóticas”, nos termos de Anslinger, onde o mundo inteiro se propôs a combater o tráfico.
De modo geral, o mundo não aparenta estar disposto a afastar-se do consumo de drogas. A maconha, nos últimos 50 anos, se estabeleceu como a droga ilegal mais consumida, tornando-se popular por onde passava. O álcool mantém seu crescimento atrelado mais a economia do que algum modismo ou mudanças na lei. O tabaco mesmo mantendo-se legal, continua sendo regulamentado com cada vez mais afinco, isso dá-se pela consciência do mal causado por ele, porém seu uso ainda cresce. Novas substâncias continuam surgindo a cada ano e se difundindo na sociedade.
4 - PROIBICIONISMO NO BRASIL
Atualmente vários países estão buscando modelos alternativos de combate às drogas. Até mesmo os Estados Unidos, o idealizador do modelo proibicionista, vem procurando meios diferentes de lidar com o problema. Na contramão do cenário internacional está o Brasil, que apesar de modestas evoluções, com a sua Lei de Drogas atual 11.343/06, revogadora das Leis 6.386/76 e 10.409/02, permanece na mesma ideologia de ação, propagando o medo e lotando as penitenciárias principalmente de negros e pobres.
A lei tem como objetivo aumentar a opressão à produção em grande escala e ao tráfico, reprimindo assim a disseminação das drogas. Tem também como objetivo proporcionar a assistência ao usuário e dependente químico, impulsionando a sua reintegração social. Objetivos dignos, tendo em vista o manifesto perecimento da metodologia que utiliza o direito penal. Porém pela falta de um parâmetro claro que diferencie o usuário do traficante, o que se alcançou foi o aumento do encarceramento em massa.
Observando as determinações iniciais da lei, pode-se perceber seu atributo generalista e pouco objetivo. Os artigos 1º e 2º estabelecem da seguinte forma:
Art. 1º Esta Lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes. Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.
Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso. Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas. (BRASIL, 2006, grifo nosso).
Pode se perceber também o uso da norma penal em branco, onde utilizam-se listas controladas pelo estado que podem ser modificadas de tempos em tempos, mantendo o rol sempre atualizado. A portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998 regula a lista de substâncias ilegais. Entre as drogas ilegais, podemos destacar: maconha, cocaína, haxixe, crack, ecstasy e heroína. As mais populares em nosso país são a maconha e a cocaína. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1998)
A lei de drogas de 2006 também instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), e em seus artigos 3º ao 17 estipula o funcionamento deste e o papel dos órgãos estatais na questão, porém a entidade não funciona como deveria, e antes de a lei entrar em vigor, vários artigos que regulavam o sistema tiveram de ser vetados, pois contrariavam a Constituição ao criarem obrigações aos entes federados.
Entretanto nosso foco nesse estudo serão os artigos 28 e 33, que tratam do consumo pessoal e do tráfico respectivamente.
Enquanto o artigo 28 traz a possibilidade de penas brandas, com medidas educativas, o artigo 33 prevê penas de reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias multa, sendo excessivamente mais rigoroso, além de o delito do tráfico ter sido equiparado a crime hediondo (art. 5º, XLIII), não sendo permitida a liberdade provisória com fiança e também a graça, indulto, e a conversão das penas privativas de liberdade em restritivas de direito, deixando o abismo entre as sanções ainda maior. O problema é que a decisão de enquadrar um indivíduo nesses tipos penais acaba ficando na mão dos agentes do estado, por não existir um critério claro de diferenciação, fazendo com que condutas muito similares — algumas vezes praticamente iguais — sejam caracterizadas uma em cada desses tipos penais.
4.2 - SISTEMA CARCERÁRIO LOTADO E ART 28
O artigo 28 da Lei de Drogas versa sobre o usuário ou dependente, que pratica os verbos descritos na norma com finalidade de consumo pessoal, e altera a previsão anterior que instituía detenção ou multa para uma sanção mais branda com penas educativas, vejamos:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. [...] (BRASIL, 2006)
Porém o maior problema está na controvérsia trazida pelo parágrafo 2º deste artigo, a medida em que deixa ao poder do magistrado o entendimento sobre a natureza e o destino da droga além das circunstancias sociais e pessoais.
Em outras palavras, são inúteis as penas brandas do artigo 28, se o parâmetro para caracterização de consumo pessoal está nas mãos de um juiz que, em grande parte, não sabe distinguir se a quantidade de uma droga específica é razoável para o uso ou não, ou carrega uma visão estereotipada, sendo preconceituoso ao considerar as “circunstâncias sociais e pessoais”, restando apenas ouvir o policial que atendeu à ocorrência, para no fim decidir sobre a pessoa apreendida. Sobre o tema destaca Guilherme Nucci:
“Outro fator curioso, para não dizer desastroso, é a abissal diferença de visões entre magistrados: para uns, carregar 2 gramas de maconha é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para outros, por óbvio, é consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância, logo, atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca vencedora na avaliação judicial.” (NUCCI, 2016).
Nesse sentido, os policiais que realizam o primeiro nível de controle, exercem em grande parte, o poder de julgadores, determinando as atitudes que se encaixam ou não no tipo penal do artigo 28. E levando em consideração que os agentes da polícia, como a maioria da população, são formados pelo preconceito tradicionalista e estereotipado, acabam por realizar certa discriminação dos suspeitos.
As consequências da subjetividade discricionária atribuída aos agentes públicos são relatadas por Araújo, em sua obra Almanaque das drogas:
O tráfico de drogas já é a segunda maior causa de prisão no Brasil, sendo que 55% dos condenados nas varas criminais e federais de Brasília e do Rio de Janeiro são réus primários, e 50% deles foram pegos com menos de 100 gramas de maconha. Ou seja, eram os chamados “peixes pequenos” (ARAÚJO, 2012, p. 236)
O resultado da falha normativa destacada é, de forma crítica, penosa ao sistema carcerário e judiciário como um todo.
Nesse sentido podemos analisar o julgado a seguir auferindo que a quantidade necessária pra tipificação no crime do tráfico é mínima, e de apenas 4,13 gramas de maconha na situação em foco.
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. HABEAS CORPUS. TRÁFICO. 4,13 GRAMAS DE MACONHA E 8,41 GRAMAS DE CRACK. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE COM FUNDAMENTO EM AÇÃO PENAL EM CURSO. FLAGRANTE ILEGALIDADE. SÚMULA 444/STJ. ÍNFIMA QUANTIDADE DE DROGAS QUE NÃO JUSTIFICA AFASTAR O ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. Não há como abrigar agravo regimental que não logra desconstituir o fundamento da decisão atacada. 2. Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg no HC: 609516 PE 2020/0222380-8, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 23/02/2021, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/03/2021) (grifo nosso)
O Relator admite a ínfima quantidade de drogas, mas não afasta a conduta do crime de tráfico tipificado no artigo 33 do Código Penal. E como esse, temos muitos outros exemplos onde a quantidade de drogas e as circunstâncias são deixadas de lado por não haver um parâmetro acessível de distinção das condutas.
Desse modo o que atingimos não é uma diminuição do tráfico e dos problemas causados por ele, mas sim um novo desafio, nefasto e preocupante, que é a lotação das cadeias com condenados no Art. 33 da Lei 11.343/2006, de homens e mulheres que em sua grande maioria poderiam ser poupados caso houvesse uma mudança na norma, trazendo uma nova maneira de diferenciar os tipos.
De acordo com um estudo realizado em 2014 pelo Departamento Penitenciário Nacional, quando a Lei 11.343 entrou em vigor, em 2006, o número de presos por tráfico em nossos presídios era de 31.520. Em 2013, esse número teve um aumento de 339%, passando para 138.366. Apenas um crime teve um aumento maior nesse período: o tráfico internacional de entorpecentes, com incríveis 446,3% de aumento. (INFOPEN, 2014)
Embora o tratamento dado ao usuário esteja caminhando para uma abordagem menos combativa e mais preventiva, o aumento elevado do número de presos tipificados no tráfico nos faz questionar a real efetividade da Lei no que tange a essa proteção.
Hoje no Brasil um único preso custa ao estado a quantia de R$ 1.800,00 (um mil e oitocentos reais) por mês. Valor este que representa uma média ponderada considerando a população carcerária de todo o estado, havendo diferenças gritantes entre estes, tendo que o custo em Pernambuco é de apenas R$ 955,00 por presidiário enquanto em Tocantins o valor chega a R$ 4.200. (G1, 2021)
Assim sendo, o elevado número de indivíduos tipificados no crime de tráfico faz com que os estados tenham que gastar uma parcela muito maior de seu orçamento com o sistema prisional, o que poderia ser resolvido com um critério objetivo de diferenciação entre as condutas de consumo pessoal e tráfico, o qual diminuiria a quantidade de encarcerados.
Além disso fez com que houvesse um aumento do número de processos nas varas criminais, prejudicando o andamento e intensificando a morosidade que já é um fator extremamente preocupante no judiciário, cerceando nesse sistema o direito de muitos indivíduos, conforme aduz Guilherme Nucci:
o volume de processos criminais gerados, que se acumulam nos escaninhos forenses de qualquer vara ou tribunal do país, é impressionante. Em algumas varas criminais e turmas do tribunal os processos envolvendo tráfico ilícito de drogas já constituem mais de 50% do volume de trabalho. (NUCCI, 2016).
Mais da metade do volume de trabalho das varas criminais é composta por processos envolvendo o tipo penal do tráfico, sendo muitos desses autos formados por condutas que, se fossem embasadas numa norma que trouxesse uma diferenciação clara entre os tipos, não estariam sobrecarregando o poder judiciário.
5 - PREVENÇÃO
O problema da droga não está somente no crime do tráfico, uso, ou produção, na realidade, há inúmeras outras condutas tipificadas em nosso Código Penal que apresentam como coadjuvantes as drogas. Como exemplos temos a violência doméstica, onde em grande parte dos casos, o agressor fez o uso de entorpecentes, ou também os crimes de furto e roubo que em uma parcela são praticados com o objetivo de obter lucro instantâneo para bancar o vício
Ao ser entrevistado pelo MP Debate, Eduardo Cambi, promotor de justiça, nos trouxe dados sobre uma pesquisa feita com colaboradores do Ministério Público. O estudo objetivava entender o mecanismo organizacional no tocante as drogas. A maioria dos promotores que foram submetidos ao estudo, cerca de 75%, informou que uma grande parcela dos processos de suas comarcas, de algum modo, estava associada às drogas. (MPPR, 2018)
Dessa forma, pode-se entender que as drogas estão ligadas, de forma direta e indireta, a inúmeras situações sociais que causam um efeito negativo na sociedade. Sendo assim, medidas educacionais e preventivas são muito importantes, tendo que muitos crimes analisados pelo judiciário, seja furto, agressão doméstica ou homicídio, têm como agente uma pessoa sob a influência de drogas. A prevenção se faz essencial, por ser a melhor forma de impedir que crimes como os descritos aconteçam.
Nesse viés, temos três níveis de prevenção que podem ser trabalhadas. A prevenção primária opera no sentido de evitar que o contato inicial da pessoa com a droga ocorra. Caso já exista uma relação com alguma substância, será preciso aplicar a prevenção secundária, que tem o objetivo de não deixar que o uso se transforme em vício, voltada para os usuários iniciantes. Por fim quando o caso já evoluiu para dependência química, temos a prevenção terciária, que atua no sentido de recuperar a pessoa dependente/viciada. (PMGO, 2017)
A definição de um critério específico que diferencie o usuário do traficante precisa estar aliada à criação de campanhas de informação e prevenção do uso de drogas. Precisamos conscientizar e informar a população sobre os malefícios e consequências decorrentes do uso dessas substâncias, tanto para a sociedade, quanto para a saúde pública e dos indivíduos.
Conclui-se, portanto, que é imprescindível realizar a prevenção, tendo em vista a sua manifesta relação com todas as etapas do consumo de drogas, sendo considerada infinitamente mais benéfica na resolução do problema que a repressão e o medo.
6 – CONCLUSÃO
Desde meados do século XX a política repressiva de guerra às drogas em vigor no mundo todo vem gerando impactos negativos na sociedade, e com o objetivo de combater a violência acabou se tornando na prática um enorme incentivador dela.
Ao criminalizar várias substâncias, consumidas em larga escala por todos os tipos de pessoas, a política proibicionista acabou por criar uma economia altamente rentável em cima do mercado ilícito, que estando à margem de regulamentações gera apenas consequências nefastas, sem alcançar nem em parte a diminuição do consumo.
Nesse sentido, podemos considerar que a Lei 11.343/2006 representou um pequeno avanço em comparação às Leis anteriores. Ainda assim, não apresentou mudanças significativas, além de não resolver o problema anexo da criminalização do tráfico e consumo de drogas no Brasil, isto é, diferenciar na prática as duas condutas.
Da mesma forma, os parâmetros fixados pela jurisprudência se mostram insuficientes, já que, os magistrados e servidores do judiciário os receptam da maneira que for mais conveniente, dependendo assim, na grande maioria dos casos, mais de suas crenças pessoais, do que da análise da situação em foco.
Destarte, a ausência de norma que defina um parâmetro a ser seguido, demonstra-se bastante perigosa, deixando a classificação de conduta dos casos em que há dúvida quanto ao tipo nas mãos da Vara, Turma ou Câmara onde o processo está alocado, dependendo assim do posicionamento liberal ou conservador do julgador.
Concluindo, temos que a prevenção aliada à mudança da norma, estabelecendo um parâmetro claro de distinção entre a figura do usuário e do traficante, certamente tem o poder de aliviar o problema de drogas no Brasil, seja na esfera judiciária, carcerária ou na esfera da saúde pública.
7 - REFERÊNCIAS
ARAUJO, Tarso. Almanaque das drogas. 2ªed. São Paulo: Leya, 2015.
BRASIL. Lei Nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm> Acesso em: 03 abr. 2022.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 28 nov. 2021.
FELICIO, Carolina Lavatori. O fracasso do proibicionismo e da política de “guerra às drogas”. 2018. 85 f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
A HISTÓRIA DAS DROGAS. Direção: Adam Barton. Produção: Bill Johnston; Ron Lillie. Roteiro: Bryan Carmel. [S.l.]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mY_C1Z93GUo. Acesso em: 11 mar. 2022
VALOIS, Luís Carlos. O Direito penal da Guerra às drogas. 3ª ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.
BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, Portaria nº 344, de 12 de Maio de 1998, Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html. Acesso em: 12 abr. 2022
NACIONAL, Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Disponível em: <https://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias>. Acesso em: 12 abr. 2022
CONJUR. Para Guilherme Nucci, não há nada a comemorar nos 10 anos da Lei de drogas. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-04/nucci-nao-nada-comemorar-10-anos-lei-drogas. Acesso em: 15 jun. 2022
Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Habeas Corpus: 609516 PE 2020/0222380-8, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 23/02/2021, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/03/2021
MPPR, Ministério Público do Paraná. Prevenção às Drogas: metodologias para atuação estratégica. Disponível em: https://escolasuperior.mppr.mp.br/2018/05/604/MP-Debate-Prevencao-asdrogas-metodologias-para-atuacao-estrategica-.html. Acesso em: 17 jun. 2022
PMGO, Polícia Militar do Estado de Goiás. Apostila de Prevenção e Repressão às Drogas e Entorpecentes. Disponível em: https://acervodigital.ssp.go.gov.br/pmgo/bitstream/123456789/414/10/Apostila%20% 20Preven%C3%A7%C3%A3o%20e%20Repress%C3%A3o%20%C3%A0s%20Drogas%20e%20a%20Viol%C3%AAncia.pdf. Acesso em: 17 jun. 2022
Graduando em Direito, Centro Universitário de Santa Fé do Sul – SP, UNIFUNEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FAZZIO, Caio Sanches. Lei nº 11.343/2006: a necessidade de uma diferenciação objetiva entre o uso e o tráfico de drogas frente aos malefícios da subjetividade da norma Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 ago 2022, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59092/lei-n-11-343-2006-a-necessidade-de-uma-diferenciao-objetiva-entre-o-uso-e-o-trfico-de-drogas-frente-aos-malefcios-da-subjetividade-da-norma. Acesso em: 24 dez 2024.
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