RESUMO: O presente trabalho, feito por intermédio de revisão bibliográfica, analisou o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do foro por prerrogativa de função após a imposição de limites em sua interpretação pelo próprio Tribunal Constitucional por meio do fenômeno jurídico denominado mutação constitucional.
Palavras-chaves: Foro por prerrogativa de função; mutação constitucional; teses constitucionais; Supremo Tribunal Federal.
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, o foro por prerrogativa de função, como o próprio nome informa, não se trata de um privilégio, mas a proteção e prerrogativa concedida a alguns cargos, considerados pela Constituição Federal de 1988 como imprescindíveis ao exercício dos poderes da República Federativa do Brasil, a fim de que, em seu pleno exercício, não sofram quaisquer ingerências ou arbitrariedades externas, ou seja, advindas de outros poderes/funções.
Importante pontuar que, na atualidade, o foro por prerrogativa de função existe tão somente na área penal e processual penal, ou seja, não há que se falar nesse instituto ou sua aplicação em demandas de natureza civil.
Assim, por exemplo, se um Deputado Federal ou Senador for processado penalmente terá, conforme a Magna Carta, foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal.
Isso quer dizer que Deputados Federais e Senadores têm investigação, processo e julgamento em matéria penal e processual penal realizados por órgão judicial anteriormente estabelecido, mas num formato diferente daquele para as pessoas comuns da sociedade, que têm o início do processo penal na vara comum e não diretamente num tribunal.
A Carta de 1988 determinou de forma expressa ou referenciada quais cargos merecem a mencionada proteção. Dessa forma, nenhum outro diploma legal tem o poder de ultrapassar os limites impostos pela Lei Maior.
As Constituições Estaduais não podem inovar as hipóteses de foro por prerrogativa de função para cargos não correspondentes àqueles já fixados pela Constituição Cidadã. Por isso mesmo, foram declaradas inconstitucionais as normas das Constituições Estaduais que fixam foro por prerrogativa de função a Procuradores do Estado, Delegados de Polícia e Defensores Públicos.
2 MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
O fenômeno da mutação constitucional ocorre quando há uma alteração do sentido e alcance da norma constitucional, por método interpretativo, em razão de alterações da realidade fática, social, econômica e política ocorridas na sociedade dinâmica e sempre em evolução, sem que haja, necessariamente, a alteração do próprio texto da Constituição.
Em resumo, a mutação constitucional é método de alteração informal do texto constitucional, uma vez que não há alteração gramatical ou textual, mas modificação de entendimento e do sentido interpretativo de determinado dispositivo constitucional, ou seja, a partir de sua ocorrência começa a ser adotado o sentido que seja compatível com a CF de 1988 e a realidade da sociedade.
3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A RESTRIÇÃO AO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
No ano de 2018, a Suprema Corte entendeu por restringir o alcance do art. 53, § 1º e o art. 102, I, “b” da CF 1988, que dizem exatamente o seguinte:
“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente: (...)
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; (...)”.
A tese fixada pelo plenário da Suprema Corte, no julgamento da AP 937, em 03/05/2018, foi esta:
“O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”.
Isso quer dizer que Deputados Federais e Senadores serão julgados pelo STF tão somente quando e se o crime for praticado durante o exercício do mandato desses parlamentares e/ou se o mesmo crime estiver relacionado com as suas funções.
4 EXTENSÃO DOS EFEITOS RESTRITIVOS DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Não bastasse a restrição acima mencionada, a Suprema Corte também decidiu, no julgamento do Inquérito 4703 QO/DF que o entendimento restritivo do foro por prerrogativa de função também se aplica a outros cargos e não somente para Deputados Federais e Senadores.
Neste sentido, o STF afirmou que a tese aprovada também se aplica para os crimes envolvendo Ministros de Estado.
Além disso, o Superior Tribunal de Justiça - STJ seguiu o mesmo entendimento do STF e afirmou que a tese alcança ainda Governadores de Estado e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais, nos termos do artigo 105, I, “a”, da CF/88:
“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais; (...)”.
Neste sentido, o entendimento da Corte Especial na APn 857/DF e APn 866/DF:
“O foro por prerrogativa de função no caso de Governadores e Conselheiros de Tribunais de Contas dos Estados deve ficar restrito aos fatos ocorridos durante o exercício do cargo e em razão deste.
Assim, o STJ é competente para julgar os crimes praticados pelos Governadores e pelos Conselheiros de Tribunais de Contas somente se estes delitos tiverem sido praticados durante o exercício do cargo e em razão deste”.
Também em 2018, o STJ ainda decidiu que: “As hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ restringem-se àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função. STJ. Corte Especial. AgRg na APn 866-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018 (Info 630)”.
5 NÃO APLICAÇÃO DOS EFEITOS RESTRITIVOS DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO AOS DESEMBARGADORES
No caso dos desembargadores, ainda que o crime não tenha relação com as funções desempenhadas, estes devem ser processados e julgados pelo Superior Tribunal de Justiça. Caso contrário, teria a demanda de ir diretamente a um juiz de primeira instância, vinculado ao tribunal em que integra o desembargador que é réu, haveria sério risco à imparcialidade da atuação jurisdicional.
Dessa forma, a manutenção do processo e julgamento do desembargador no STJ funciona como uma exceção aos efeitos restritivos adotados tanto pelo STF como pela Corte Especial para o foro por prerrogativa de função.
Este é o entendimento da própria Corte Especial:
“O Superior Tribunal de Justiça é o tribunal competente para o julgamento nas hipóteses em que, não fosse a prerrogativa de foro (art. 105, I, da Constituição Federal), o desembargador acusado houvesse de responder à ação penal perante juiz de primeiro grau vinculado ao mesmo tribunal.
Assim, mesmo que o crime cometido pelo Desembargador não esteja relacionado com as suas funções, ele será julgado pelo STJ se a remessa para a 1ª instância significar que o réu seria julgado por um juiz de primeiro grau vinculado ao mesmo tribunal que o Desembargador.
A manutenção do julgamento no STJ tem por objetivo preservar a isenção (imparcialidade e independência) do órgão julgador.
STJ. Corte Especial. QO na APn 878-DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21/11/2018 (Info 639)”.
6 TESES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Após a mutação constitucional dos art. 53, § 1º e o art. 102, I, “a” da CF/88, o Supremo Tribunal Federal fixou inúmeras teses sobre a aplicação ou não aplicação do mencionado instituto.
Seguem abaixo, 5 (cinco) importantes teses constitucionais sobre o assunto:
1) “O Supremo Tribunal Federal é competente para julgar crime eleitoral praticado por Deputado Federal durante a sua campanha à reeleição caso ele tenha sido reeleito. STF. Plenário. Inq 4435 AgR-quarto/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 13 e 14/3/2019 (Info 933)”;
2) “A prorrogação do foro por prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se aplicando em caso de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem ocupar função pública. STF. 1ª Turma. RE 1185838/SP, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 14/5/2019 (Info 940)”;
3) “É inconstitucional dispositivo da Constituição Estadual que confere foro por prerrogativa de função, no Tribunal de Justiça, para Procuradores do Estado, Procuradores da ALE, Defensores Públicos e Delegados de Polícia. A CF/88, apenas excepcionalmente, conferiu prerrogativa de foro para as autoridades federais, estaduais e municipais. Assim, não se pode permitir que os Estados possam, livremente, criar novas hipóteses de foro por prerrogativa de função. STF. Plenário. ADI 2553/MA, Rel. Min. Gilmar Mendes, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 15/5/2019 (Info 940)”;
4) “É inconstitucional norma de constituição estadual que estende o foro por prerrogativa de função a autoridades não contempladas pela Constituição Federal de forma expressa ou por simetria. STF. Plenário. ADI 6501/PA, ADI 6508/RO, ADI 6515/AM e ADI 6516/AL, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 20/8/2021 (Info 1026)”;
5) “A competência penal originária do STF para processar e julgar parlamentares alcança os congressistas federais no exercício de mandato em casa parlamentar diversa daquela em que consumada a hipotética conduta delitiva, desde que não haja solução de continuidade. STF. Plenário. Inq. 4342 QO/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 1º/4/2022 (Info 1049)”.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por conseguinte, resta claro que a aplicação dos efeitos restritivos à interpretação e aplicação do foro por prerrogativa de função deu-se em razão de alguns motivos, dentre eles, a não banalização do processo e julgamento de demandas envolvendo titulares de cargos que necessitam de independência funcional e liberdade para exercerem suas funções no Estado Democrático de Direito de forma livre e desembaraçada, bem como o não abarrotamento de processos às instâncias mais elevadas do Poder Judiciário, deixando para as varas comuns processos que não exigem um atuar de tribunal de instância mais graduada, exatamente porque não relativos às funções fundamentais da República Federativa do Brasil.
Frisa-se, por fim, que o próprio Supremo Tribunal Federal trouxe hipóteses em que, mesmo que o crime não seja praticado pelo titular do cargo protegido durante o exercício de seu mandato e nem tenha relação com as funções que exerce, ainda assim, haverá o que a doutrina denomina de prorrogação da competência do tribunal originário.
8 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <https://www.planato.gov.br> Acesso em 01 de setembro de 2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. STF é competente para julgar crime eleitoral praticado por Deputado Federal durante a sua campanha à reeleição caso ele tenha sido reeleito. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/84c578f202616448a2f80e6f56d5f16d>. Acesso em: 12/09/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A prorrogação do foro por prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se aplicando em caso de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem ocupar função pública. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/aa8fdbb7d8159b3048daca36fe5c06d2>. Acesso em: 12/09/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É inconstitucional foro por prerrogativa de função para Procuradores do Estado, Procuradores da ALE, Defensores Públicos e Delegados de Polícia. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em:<https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/def130d0b67eb38b7a8f4e7121ed432c>. Acesso em: 12/09/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. As constituições estaduais não podem instituir novas hipóteses de foro por prerrogativa de função além daquelas previstas na Constituição Federal. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/234e5dc39dc52740524f9d863bec963c>. Acesso em: 12/09/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Compete aos tribunais de justiça estaduais processar e julgar os delitos comuns, não relacionados com o cargo, em tese praticados por Promotores de Justiça. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/4f52c16c93e61c9e1c25f529932b0071>. Acesso em: 12/09/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Se um Senador, que responde ação penal no STF, foi eleito Deputado Federal, sem solução de continuidade, o STF permanece sendo competente para a causa (mantém-se a competência do STF nos casos de mandatos cruzados de parlamentar federal). Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/a2ce8f1706e52936dfad516c23904e3e>. Acesso em: 12/09/2022.
Servidora Pública da Justiça Federal (SJTO)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROSO, LUDNE NABILA DE OLIVEIRA. O foro por prerrogativa de função e as teses do Supremo Tribunal Federal sobre esta temática Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 set 2022, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59168/o-foro-por-prerrogativa-de-funo-e-as-teses-do-supremo-tribunal-federal-sobre-esta-temtica. Acesso em: 23 dez 2024.
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