Resumo: O presente artigo busca analisar a evolução histórica do mandado de segurança no direito brasileiro.
Palavras-chave: Mandado de segurança. Doutrina do habeas corpus. Garantias fundamentais. Acesso à Justiça.
Sumário: 1. Introdução 2. Breve notícia de história: a doutrina brasileira do habeas corpus e a evolução dogmática do mandado de segurança individual 3. Conclusão. 4 Referências.
1. Introdução
O mandado de segurança constitui garantia fundamental para o exercício de direitos, especialmente contra os atos estatais, sendo, por isso, uma ferramenta de controle de abusos e desvio de poder. Sendo assim, faz-se relevante a busca por seus contornos históricos, a fim de se compreender a relevância do referido remédio constitucional.
2. Breve notícia de história: a doutrina brasileira do habeas corpus e a evolução dogmática do mandado de segurança individual
As ações constitucionais, em geral, e o mandado de segurança, em particular, têm suas origens ligadas à história da tutela dos direitos fundamentais. É que tais instrumentos jurídicos surgem como meios para efetivar e proteger as garantias mínimas encartadas nos textos constitucionais. Na verdade, cuida-se de consectários do próprio Estado democrático de direito, constituído pela Carta Republicana de 1988, guarnecendo os jurisdicionados dos abusos perpetrados pelo Estado[1].
O mandado de segurança tem suas raízes no writ of habeas corpus, derivando do que se convencionou chamar de doutrina brasileira do habeas corpus[2]. Na realidade, sob a vigência da Constituição de 1891, o habeas corpus era utilizado para tutelar outros bens jurídicos além do status libertatis dos cidadãos, servindo também para pôr fim a outras arbitrariedades perpetradas pelo Poder Público.
Isso ocorria especialmente em razão da abertura interpretativa ocasionada pela redação do dispositivo constitucional que regrava o remédio heroico, pois, em seu artigo 72, § 22, a primeira Carta republicana dispunha que seria concedida a ordem em “habeas corpus , sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder”.
Como se depreende da leitura do texto, aquela ação constitucional possuía objeto mais amplo que o delineado pela atual Constituição, sendo possível, com base no § 22 do artigo 72 da Declaração de Direitos de 1891, o manejo do habeas corpus para impedir ilegalidades ou abusos de poder provenientes do Estado.
Pellegrini Grinover, Scarance Fernandes e Gomes Filho noticiam que, naquela quadra da história, o Poder Judiciário concedia ordem em sede do writ of habeas corpus ad subjiciendum para “anular ato administrativo que mandara cancelar matrícula de aluno em escola pública; para determinar a concessão de uma segunda época de exames a estudantes; para realização de comícios eleitorais; para garantir o exercício de profissão etc.”[3].
Com a finalidade de coibir essa vulgarização, a dogmática constitucional daquele tempo passou a redesenhar o cabimento da aludida impetração, de modo a resgatar o seu objeto historicamente estabelecido, vale dizer, voltá-lo à tutela apenas do status libertatis dos indivíduos.
Daí que, segundo Pellegrini Grinover, Scarance Fernades e Gomes Filho, surgiram três posições bem delimitadas sobre o tema em referência. A primeira, defendida por Rui Barbosa, sustentava que a garantia aplicava-se na totalidade dos casos nos quais um direito estivesse ameaçado, manietado, impossibilitado no seu exercício por abuso de poder ou ilegalidade. A segunda, por sua vez, afirmava que o writ of habeas corpus, à luz de sua natureza e origem histórica, voltava-se exclusivamente à proteção da liberdade de ir e vir. Finalmente, a terceira vertente, vencedora no âmbito do Supremo Tribunal Federal, aduzia a inclusão na proteção do habeas corpus não apenas as situações de restrição da liberdade de locomoção, mas também os casos em que a ofensa a essa liberdade fosse meio de ofender outro direito, como “exemplificava Pedro Lessa: quando se ofende a liberdade religiosa, obstando que alguém penetre no templo, tem cabimento habeas corpus, pois foi embaraçando a liberdade de locomoção que se feriu a liberdade religiosa; quando se ofende a liberdade religiosa, porque se arrasam as igrejas, ou se destroem os objetos do culto, não é possível requerer o remédio, porque aí não está em jogo a liberdade de locomoção das pessoas”[4].
Verifica-se, assim, que existiam três correntes sobre o tema, pairando, dessa forma, dúvidas acerca da natureza jurídica do remédio heroico. Por isso, em setembro de 1926, o constituinte derivado – imbuído, segundo Mártires Coelho, daquela “vontade reformista”[5] - deu diferentes contornos à ação constitucional em apreço, redigindo o § 22 do artigo 72 da Carta da República velha da seguinte maneira: “Dar-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção”.
Vê-se que, ao contrário da redação originária, o objeto do writ ficou jungido à coibição de violência de prisão ou constrangimento ilegal em relação ao status libertatis das pessoas, sagrando-se vencedora a tese formulada pelo Ministro Pedro Lessa, a qual restou acolhida pelo Supremo Tribunal Federal.
Em razão disso, a tutela de outras arbitrariedades perpetradas pelo Poder Público encontrava-se esvaziada, na medida em que o cabimento do habeas corpus não mais comportava o ataque às ilegalidades mencionadas.
Por isso, aventou-se a possibilidade de se propor ações possessórias com o objetivo de resguardar o jurisdicionado contra os abusos estatais, ao entendimento de que os direitos fundamentais eram possuídos pelos cidadãos, podendo estes manejarem interditos possessórios, por seu rito célere, contra o Estado, o que acabou não sendo acolhido pela doutrina nem pela jurisprudência à época. A respeito do tema em foco, confiram-se apontamentos de Boselli de Souza:
Alguns chegaram a defender a tese da posse dos direitos pessoais, ensejando a possibilidade de utilização dos interditos possessórios para sua defesa. Ruy Barbosa foi novamente um dos defensores de tal tese, que acabou não vingando[6].
Assim, a temática concernente ao cabimento do habeas corpus contra atos estatais para além daqueles violadores do direito de ir e vir padecia de um vácuo normativo. Nessa linha, aponta Ferreira Mendes que a crise da doutrina brasileira do habeas corpus tornou de rigor “a adoção de um instrumento processual-constitucional adequado para proteção judicial contra lesões a direitos subjetivos públicos não protegidos pelo habeas corpus”. [7]
De acordo com Mártires Coelho, essa situação só veio a mudar com a Revolução de 1930 e, por consequência, com a promulgação da Constituição de 1934, que trouxe, entre outras inovações, o remédio constitucional hoje conhecido como mandado de segurança[8].
Sem dúvida, conforme o artigo 113, 33, do texto de 1934, o writ of mandamus seria concedido para “defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade”. Em outras palavras, com essa redação, passou-se a ter guarida a tutela individual em face dos abusos de poder levados a cabo pelo Estado.
Desde então, todos os textos constitucionais subsequentes previram o mandado de segurança como remédio constitucional típico, à exceção da Constituição outorgada pelo ditador Getúlio Vargas em 1937.
Hoje, a Constituição da República delimita o cabimento do mandado de segurança no inciso LXIX de seu artigo 5º, segundo o qual o mandamus será concedido para “proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”.
Antigamente regida pela Lei 1.533, de 31 de dezembro de 1951, a disciplina legal da ação em tela está nos dias atuais estabelecida na Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009.
Não se pode negar que o Texto de 1988 deu ao instituto do writ of mandamus nova roupagem, uma vez que o espírito democrático de que se revestiu a Carta republicana conferiu ao cidadão um maior acesso aos remédios constitucionais e, por conseguinte, ao próprio Poder Judiciário[9].
Por fim, anote-se que, embora encontre institutos semelhantes no direito estrangeiro – ligando-se, em particular, ao juicio de amparo, previsto na Constituição mexicana de 1917 – o mandado de segurança revela-se como uma figura constitucional genuinamente brasileira, resultado que foi da doutrina brasileira do habeas corpus[10].
3 Conclusão
Em conclusão, verificaram-se os traços históricos e dogmáticos do mandado de segurança, fazendo-se uma breve digressão histórica sobre a referida ação constitucional, que tem suas raízes firmadas na doutrina brasileira do habeas corpus
4 Referências
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Jus PODIVM, 2008. p. 751
BOSELLI, Luiz Henrique. A doutrina brasileira do habeas corpus e a origem do mandado de segurança. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 45, n. 177, mar. 2008. p. 75-76.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de Segurança. 6ªed. rev. e. atua São Paulo: Malheiros editores, 2009. p. 123
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Recursos no Processo Penal. 6ª ed, 2ªTiragem. São Paulo: RT, 2009. p. 268/269. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ªed. rev. e. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. pág. 188
MENEZES, Carlos Alberto. Manual do mandado de segurança. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999
[1] Essa ideia inicial encontra suporte doutrinário. Com efeito, jurista checo Karel Vasak, conhecido por sua tese da geração de direitos dos homens, enfatizou que a condição essencial para realização efetiva dos direitos fundamentais era que os Estados nacionais cumprissem, ao menos, três requisitos, a saber: (i) que fossem estruturados sob o paradigma do Estado de Direito, ou seja, que estivessem todos os seus atos em conformidade com os ditames do direito posto; (ii) que, em seu interior, os Direitos Humanos estivessem pré-colocados em uma ordem jurídica; e (ii) que, finalmente, o exercício desses direitos fosse acompanhado de garantias precisas e, em especial, que fossem positivados mecanismos idôneos para assegurar e efetivar seu respeito. Em que pese essas premissas serem posteriores à positivação de boa parte dos instrumentos constitucionais voltados à defesa dos direitos fundamentais, elas possuem um poder explicativo do desenvolvimento da luta e defesa dessa pauta mínima de garantias que o cidadão tem em face da sanha estatal. Sobre o assunto, Cf. MENEZES, Carlos Alberto. Manual do mandado de segurança. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 3-4.
[2] BOSELLI, Luiz Henrique. A doutrina brasileira do habeas corpus e a origem do mandado de segurança. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 45, n. 177, mar. 2008. p. 75-76.
[3] GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Recursos no Processo Penal. 6ª ed, 2ªTiragem. São Paulo: RT, 2009. p. 268/269. Cfr, ainda, aresto lavrado pelo Supremo Tribunal Federal no HC 3563, disponível em http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=3536&classe=HC. Acesso em 18 de janeiro de 2018
[4] GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Recursos no Processo Penal. 6ª ed, 2ªTiragem. São Paulo: RT, 2009. p 269
[5] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ªed. rev. e. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. pág. 188
[6] BOSELLI, Luiz Henrique. A doutrina brasileira do habeas corpus e a origem do mandado de segurança. Revista de informação legislativa, v. 45, n. 177, mar. 2008. p. 81
[7] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ªed. rev. e. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 577/578
[8] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ªed. rev. e. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 189
[9] Assinala, a propósito do assunto em tela, Lúcia Valle Figueiredo que “A Constituição de 1988 foi a pedra de toque da evolução do mandado de segurança, porque tivemos Constituição democrática, saímos do período em que o Legislativo estava fraco, o Executivo bastante fortalecido e o Judiciário acanhado. A partir da anistia, a partir de 1979, verificou-se o aumento do número de feitos, e, sobretudo, de mandados de segurança. Enfim, aumento, e consideravelmente, a procura pela tutela judicial”. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de Segurança. 6ªed. rev. e. atua São Paulo: Malheiros editores, 2009. p. 123
[10] CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Jus PODIVM, 2008. p. 751
Promotor de Justiça do Estado do Amapá (PORTARIA N° 1609/2024 - GAB-PGJ/MP-AP, de 29 de agosto de 2024). Pós-graduado em Direito Público pela Escola da Magistratura do Distrito Federal (ESMA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KUHLMANN, Júlio Luiz de Medeiros Alves Lima. Breve notícia de história: a doutrina brasileira do habeas corpus e a evolução dogmática do mandado de segurança individual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 set 2022, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59305/breve-notcia-de-histria-a-doutrina-brasileira-do-habeas-corpus-e-a-evoluo-dogmtica-do-mandado-de-segurana-individual. Acesso em: 23 dez 2024.
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