Resumo: A justiça negociada no Brasil vem em um movimento de constante crescimento. Têm-se identificado cada vez mais propostas e alternativas à persecução penal. Desde a Lei dos Juizados Especiais, a negociação tem se mostrado positiva à medida em que acelera a resolução do procedimento penal e fornece uma sanção, ainda que na forma de medidas alternativas diversas da prisão. O instituto negocial mais recente é o acordo de não persecução penal e no mesmo projeto que o inseriu no código de processo penal, existia um projeto de acordo inspirado no modelo norte-americano. Atualmente, tramitam os projetos do Novo Código Penal e do Novo Código de Processo Penal, ambos com possibilidades negociais. Este trabalho busca elucidar os principais pontos dos institutos negociais existentes no país hoje, realizando críticas no âmbito da política criminal e respondendo ao questionamento acerca da possibilidade da ampliação dos espaços negociais no país.
Palavras-chave: Acordos penais. Acordo de não persecução. Justiça Negociada.
Abstract: The negotiated criminal justice system in Brazil is constantly growing. There are a huge number of proposals and alternatives to criminal prosecution nowadays. Since the Special Courts Law in Brazil, negotiation has been positive insofar as it accelerates the resolution of criminal proceedings and provides a sanction, albeit in the form of alternative penalties other than imprisonment. The most recent negotiating institute is the non-prosecution agreement, and in the same project that inserted it into the criminal procedure code, there was an agreement proposal inspired by the American plea agreements. Currently, the drafts of the New Penal Code and the New Code of Criminal Procedure are being processed, both with negotiation possibilities. This paper seeks to elucidate the main points of the negotiation institutes existing in Brazil today, making criticisms in the scope of criminal policy and answering the question about the possibility of expanding negotiation spaces in Brazil.
Keywords: Criminal agreements. Negotiated criminal justice. Non-prosecution agreement.
Sumário: Introdução. 1. Conceitos sobre justiça negocial no Brasil. 1.1. Institutos negociais em vigência. 2. A tendência expansionista dos espaços de negociação no ordenamento jurídico brasileiro. 2.1. Inspiração em sistemas estrangeiros. Conclusão. Referências.
Introdução
O surgimento da justiça negociada ou justiça consensual se deu, entre tantos motivos, em virtude da necessidade de mudanças no sistema processual penal brasileiro, especialmente em razão do desafogamento do sistema de justiça. Frischeisen (2017, p.3) justificou a necessidade da ampliação dos espaços negociais no Brasil com a inserção do acordo de não persecução penal a partir de quatro pilares principais: (I) a superação da impunidade, “característico da obrigatoriedade da ação penal”; (2) que o modelo de justiça atual é economicamente inviável; (III) que o modelo atual inviabiliza ideais de justiça e eficiência na persecução penal; (IV) a necessidade de harmonizar com a orientação de intervenção mínima do sistema penal; e (V) em razão do princípio da oportunidade que rege a persecução penal.
Este documento visa percorrer os institutos negociais brasileiros, analisando as suas características gerais.Ademais, analisam-se atribuições quanto às funções de processar e fiscalizar o cumprimento dos acordos homologados. São, ainda, pontuadas questões a respeito da prescrição da pretensão punitiva, da construção do caderno probatório do acordo a partir dos elementos informativos, do dispêndio de recursos judiciários, e sobre a redução da demanda de trabalho dos entes estatais.
Por fim, são feitas ponderações a respeito da transição gradual da justiça codificada para um modelo de direito consuetudinário inspirado em normas de outros países, bem como os atuais projetos de inserção de novos mecanismos negociais. Tudo isso em vistas de responder a uma pergunta: no cenário atual, é possível ampliar os espaços negociais no Brasil?
1. Conceitos sobre justiça negocial no Brasil
Távora (2017, p. 59) aponta que a única forma de o réu submeter-se de forma voluntária às pretensões acusatórias é através da justiça negociada, ressaltando que a confissão do crime em si não é suficiente para a resolução processual de forma precipitada, necessitando do exaurimento do manancial probatório.
A justiça negociada é realizada através de acordos celebrados entre as partes no processo penal. Desse modo, para chegar-se ao consenso é necessário que coexistam requisitos mínimos de validade, como preceituam Fabretti e Silva (2018, p. 284): “(I) voluntariedade do acusado na negociação; (II) informação suficiente para tomada de uma decisão racional; (III) adequação da proposta à denúncia apresentada”. Os requisitos mencionados referem-se às condições necessárias para que o acordo seja válido, isento de vícios de consentimento e de vícios de vontade, para que se tenha um verdadeiro consenso em que ambas as partes manifestam ciência e concordância.
Por esse motivo os acordos passam por homologação do Magistrado, responsável por realizar o controle de legalidade das negociações, garantindo que o acusado utilizou-se da sua livre vontade não-viciada e compreendeu na integralidade os termos presentes na proposta, comprometendo-se a cumpri-la. Em razão disso, o Juiz atua como um “árbitro do equilíbrio” no processo penal (BRANDALISE, 2016, p. 183), garantindo a voluntariedade do acusado no aceite do acordo.
Na prática, são realizadas diversas formas de justiça negocial. Para exemplificar, existe a possibilidade de reconciliação entre querelante e querelado através de audiência específica prevista pelo Código de Processo Penal nos artigos 521 e 522; a conciliação com a composição dos danos, implicando na renúncia do direito de representação ou de queixa por parte do querelante, nos termos dos artigos 72 a 74 da Lei dos Juizados Especiais; o instituto da transação penal para os delitos cuja pena máxima cominada é de dois anos, conforme artigo 76 do mesmo diploma legal; a delação premiada, podendo chegar até à extinção da punibilidade, com previsão na Lei 8.072/1990, no §4º do art. 159 do Código Penal, no §2º do art. 25 da Lei 7.492/1986, § 5º do art. 1º da Lei 9.613/1998, e, por fim, nos arts. 4º a 7º, ambos da Lei 12.850/2013 (SUXBERGER e GOMES FILHO, 2016). Atualmente, há, também, o acordo de não persecução penal, introduzido no artigo 28-A do Código de Processo Penal em razão da Lei 13.964/2019.
Contudo, algumas questões permeiam a atmosfera jurídica no que diz respeito às implicações trazidas pela expansão dos espaços negociais, especialmente no tangente à relação entre celeridade processual, redução da demanda judicial e o possível crescimento do encarceramento, que pode levar ao encarceramento em massa, embora os institutos existentes prevejam a aplicação de penas mais brandas, que não necessitam diretamente da estrutura carcerária, mas tão somente da fiscalização do Judiciário e das polícias penais.
Em razão, principalmente, do advento da Lei dos Juizados Especiais, aumentou no processo penal a incidência das penas alternativas para a resolução dos conflitos, de modo que o processo penal passou a ser encarado com duas vertentes: o processo penal clássico e o processo penal de consenso. A segunda hipótese se baseia, justamente, no consenso entre as partes e abrange as infrações penais de menor potencial ofensivo (CAPEZ, 2016).
Contudo, inclusive a nomenclatura no tangente à justiça “consensual” ou justiça “negociada” é objeto de debate no âmbito jurídico. Isso porque o consenso implica no aceite, de forma “expressa ou tácita”, a uma proposta de acordo efetuada pelo Ministério Público (ZILLI, 2022, p. 30). Nesse sentido, trata-se da concordância de ambas as partes que consensualmente decidem por pactuar alguma coisa em que, na teoria, ambas sairiam igualmente beneficiadas ou prejudicadas. Enquanto isso, a negociação denota uma forma mais realista, uma vez que parece demonstrar que existe um conflito a ser resolvido entre as partes do processo (DE-LORENZI, 2020a, p. 54), especialmente porque o réu é o único a sofrer consequências jurídicas desse negócio jurídico penal.
1.1. Institutos negociais em vigência
A Lei 9.099/95, que disciplina sobre o funcionamento dos Juizados Especiais, dispõe, nos artigos 69 e 77, §1º, sobre a possibilidade de substituição do tradicional inquérito policial, existente no procedimento ordinário, pelo boletim de ocorrência circunstanciado, ou termo circunstanciado, elaborado pela autoridade policial. Esse documento sintetiza os fatos e indica a autoria e as testemunhas, com limitação de até três testemunhas, conjuntamente com elementos informativos que comprovem a materialidade delitiva.
Na sequência, após lavratura, o termo será remetido ao Juizado competente, consistente no Juizado de Pequenas Causas Criminais, responsável, segundo o artigo 2º, §único da Lei 10.259/2011 e o artigo 61 da Lei 9.099/95, pela atribuição para processar e julgar as contravenções penais e os crimes apenados com pena máxima de dois anos de reclusão.
Essa Lei, objetivando mitigar o princípio da obrigatoriedade da persecução penal pelo Estado (MIRABETE, 2000, p. 42), possibilitou através do artigo 76 a oferta ao acusado de um procedimento cuja sanção consiste em medidas alternativas em substituição à pena privativa de liberdade, com a consequente não iniciação do processo criminal (TÁVORA, 2017, p. 80). O procedimento em tela é denominado Transação Penal.
Sendo assim, o procedimento que tramita nos juizados especiais é reduzido e interrompe o curso da ação penal, tornando-se um procedimento “sumário”, a partir do momento em que uma negociação é feita antes, sequer, do oferecimento de denúncia pelo membro do Ministério Público. Nesse sentido, é procedido, então, um acordo entre o representante do Ministério Público e do acusado com a finalidade de colocar fim ao processo, resultando na assunção de penas restritivas de direitos acumuladas ou não com uma pena de multa. Nesse sentido, o acordo realizado entre as partes passará pela verificação do Juiz, que homologará ou não a transação penal realizada.
A suspensão condicional do processo, por outro lado, é uma forma de negociação anterior ao oferecimento da denúncia, que é viável em vistas de realizar um desafogamento do sistema de justiça criminal. Isso ocorre porque após oferecida a denúncia, caso se enquadre nos requisitos previstos na Lei 9.099/95, através da seguinte redação do artigo 77 do Código Penal:
“Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena”
Veja-se que este instituto não se confunde com a suspensão condicional da pena, em que já existe uma sentença transitada em julgado. Do mesmo modo como a aplicabilidade da suspensão condicional do processo se dá aos crimes praticados não somente no âmbito dos Juizados Especiais.
Contudo, é vedado nos delitos praticados em concurso material, por força da súmula 243 do STJ e nos crimes continuados, “se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano”, nos termos da súmula 723 do STF (LOPES JR, 2019, p. 931-934). Esse benefício, após concedido, não é imutável: ele pode ser revogado na eventual possibilidade de o beneficiário ser processado por outro delito (AVENA, 2017 p. 50).
A colaboração premiada, codificada atualmente pela Lei 12.850/2013, a nova Lei de Organizações Criminosas, trata-se de um benefício concedido nas ocasiões em que o acusado auxilia na resolução do processo. Ao Ministério Público é facultado deixar de oferecer a denúncia se o colaborador não for o líder da organização e criminosa e, ao mesmo tempo, for o primeiro a prestar uma colaboração eficiente no procedimento.
Nesse sentido, o acusado pode auxiliar na identificação (I) dos demais coautores e partícipes; (II) das demais infrações praticadas por eles; (III) na revelação da estrutura hierárquica da organização criminosa; (IV) na revelação da divisão de tarefas da organização criminosa; (V) na prevenção de outras infrações decorrentes das atividades da organização criminosa; e (VI) da recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações praticadas pelos membros da organização criminosa; ou (VII) a localização de eventual vítima, desde que ela esteja com sua integridade física preservada (LIMA, 2016).
Na colaboração anterior à sentença condenatória, os benefícios podem chegar a até dois terços do montante total da pena privativa de liberdade, ou pode ser substituída por pena privativa de direitos, conforme artigo 4º da Lei 12.850/2013. Na colaboração realizada após a sentença condenatória, os benefícios concedidos são de redução da pena até à metade ou da progressão de regime de cumprimento, mesmo que não tenha sido adimplido o requisito objetivo-temporal para a sua concessão, nos termos do artigo 4º, parágrafo 5º, do mesmo diploma repressivo. Segundo Pacelli (2017, p. 368):
“É prevista no art. 159 do CP, com a redação dada pela Lei nº 8.072/90 (art. 7º); na Lei nº 12.850/13 (art. 4º e seguintes); na Lei nº 9.080/95, que alterou o art. 25 da Lei nº 7.492/86 e art. 16 da Lei nº 8.137/90; na Lei nº 9.613/98 (art. 1º, § 5º), que cuida dos crimes de lavagem de bens, dinheiro e valores; na Lei nº 9.807/99, que trata do Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas (arts. 13 e 14); e na Lei nº 11.343/06 (art. 41), em relação aos crimes de tráfico de drogas. E, nem sempre, a modalidade de colaboração premiada é a mesma”.
Esse instituto jurídico sofre instabilidade na seara doutrinária quanto à sua nomenclatura - se o termo mais adequado é delação ou colaboração -, mas também quanto à violação de princípios constitucionais (FARACO NETO et al., 2019). A exemplo disso, até os dias atuais não se tem uma decisão em instância superior sobre os limites aos benefícios concedidos aos beneficiários quando da sua colaboração para a resolução da demanda do processo, de modo que os benefícios podem extrapolar alguns limites legais não previstos em lei, como ocorreu na Operação Lava-jato. Trata-se da sanção premial diferenciada, que é vedada atualmente e deve passar pelo crivo do magistrado (DE-LORENZI, 2020b, p. 179).
O acordo de leniência se aproxima da colaboração premiada, uma vez que igualmente se caracteriza por uma troca de benefícios, regulado pelas Leis 12.529/2011 e 12.846/2013. O acordo de não persecução penal, por outro lado, foi inserido no ordenamento jurídico a partir da Lei 13.964/2019, embora já estivesse previsto pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) através da resolução 181/2017, alterada pela Resolução 183/2018, em redação bastante similar com a atual, trazida pelo Código de Processo Penal. Nessa modalidade de acordo, o artigo 28-A do Código de Processo Penal prevê aplicação do ANPP mediante confissão formal, nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa e quando a pena mínima cominada for inferior a quatro anos.
Nesse caso, segundo o artigo 28-A que dispõe sobre o tema, as sanções penais podem ser uma das seguintes, ou cumulativas: (I) reparação do dano ou restituição à vítima; (II) renúncia a bens ou proveito do crime; (III) prestação de serviço à comunidade; (IV) o pagamento de prestação pecuniária; ou (V) o cumprimento de outra condição estabelecida pelo membro do Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração imputada.
A proposta do acordo parte do membro do Ministério Público ou pela defesa, e pode ser feita, em linhas gerais, até o recebimento da denúncia pelo magistrado. Não obstante, o ANPP é vedado nas hipóteses em que (I) for cabível transação penal; (II) o beneficiário for reincidente ou possuir conduta criminosa habitual; (III) tiver sido beneficiado, nos cinco anos anteriores, a acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e (IV) houver sido praticado no âmbito da violência doméstica ou, em qualquer gênero, contra a mulher em razão do gênero feminino.
De modo amplo e genérico, restam conceituados os institutos negociais que vigem hoje no país. Veja-se que nenhum deles versa sobre penas corporais diretamente, excetuada a colaboração premiada, cujo benefício pode consistir em redução do montante de pena. A transação penal, a suspensão condicional do processo e o acordo de não persecução penal, por exemplo, todos implicam na extinção da punibilidade após o cumprimento, haja vista o não reconhecimento formal de culpabilidade. A maioria negocia medidas alternativas diversas da prisão que, quando cumpridas, implicam na extinção do feito com o seu arquivamento, sem constar condenação criminal e, portanto, não gerando reincidência.
2. A tendência expansionista dos espaços de negociação no ordenamento jurídico brasileiro
O processo penal escrito da civil law tem a tendência a ser mais moroso, e no Brasil isso não seria diferente. É inegável que a negociação confere celeridade ao processo, uma vez que a máquina judiciária atua na solução mais rápida, sem o transcurso de longos meses e inclusive anos de produção de provas, oitiva de testemunhas, realização de perícias, cumprimento de audiências e conferências de prazos - inclusive, em dobro à Defensoria Pública - para os atos processuais, até que se obtenha uma sentença.
No caso dos crimes apenados com penas mais brandas, por outro lado, a morosidade para o processamento e julgamento leva à prescrição da pretensão punitiva estatal - que, veja-se, ocorre, em suma, em razão da alta demanda e da limitada capacidade humana de suprir a alta quantidade de processos judiciais. A Lei 9.099/95 inaugurou a estratégia do sistema de justiça em resolver as demandas processuais mais simples de uma fórmula mais célere, inclusive a partir de um procedimento abreviado.
O Relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Justiça em Números, de 2021, levantou dados a respeito do tempo médio que os processos levam nas diferentes Justiças do Brasil, a partir de três indicadores: “o tempo médio entre a data do início do processo até a sentença, o tempo médio entre a data do início do processo até o primeiro movimento de baixa e a duração média dos processos que ainda estavam pendentes em 31/12/2020” (CNJ, 2021, p. 199).
Após levantamento de dados foi constatado que “as Justiças Estadual e Federal apresentam acervo com tempo de tramitação médio de, respectivamente, 5 anos e 4 meses e 5 anos e 8 meses, o tempo médio de acervo na Justiça Estadual se manteve no mesmo patamar de 2019” (CNJ, 2021, p. 203). Veja-se que esse dado foi colhido tendo em vista o tempo que o processo leva até ser recolhido ao acervo. A sentença de primeiro grau é proferida dentro de prazo mais brando, em média, inferior a três anos.
Diante da incapacidade do Estado de suprir com toda a crescente demanda de processar e julgar uma ação penal dentro de um prazo razoável, resta a necessidade de desafogar o sistema de justiça através da ampliação dos espaços negociais. Essa justificativa é compreensível quando vista por esta perspectiva.
Por outro lado, muito embora a celeridade processual trazida pela inserção dos espaços negociais no ordenamento jurídico brasileiro, há muitas diferenças entre os sistemas de justiça penal alienígenas, que inspiram alterações legislativas no Brasil, e o sistema de justiça penal brasileiro.
Nesse sentido, a celeridade buscada no processo penal e o desafogamento do sistema de justiça não podem se sobrepor aos princípios basilares do processo penal, como é o caso da presunção de inocência, que é voluntariamente renunciada pelo acusado quando escolhe realizar um ANPP e efetuar uma declaração de culpa. Veja-se que este princípio no ordenamento jurídico brasileiro não possui somente força de princípio, mas também de norma codificada na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XVII.
Desse modo, ao importar e inserir no direito brasileiro institutos que não correspondem em sua integralidade ao modelo aqui adotado, pode-se estar diante de uma mitigação do próprio sistema acusatório de justiça, inclusive abrandando o modelo civil e aproximando o ordenamento jurídico dos ditames da common law. É isso que será analisado e respondido no capítulo seguinte.
2.1. Inspiração em ordenamentos jurídicos estrangeiros
A respeito da confissão como meio de prova no ordenamento jurídico norte-americano, tem-se, a partir dela, uma prova concreta, formada através da assunção de culpa do acusado. Essa informação consta expressamente nas Federal Rules of Criminal Procedure, que disciplinam as normas do processo penal norte-americano. Nesse sentido, independentemente da realização de acordo ou da escolha pelo julgamento, uma vez confesso, a única alternativa é a condenação.
No Brasil não funciona dessa maneira: a confissão tem o mesmo peso probante que as demais provas, necessitando apoiar-se em demais evidências do caderno probatório, sendo insuficiente, sozinha, para ensejar uma condenação. O sistema norte-americano, nesse ponto, é gritantemente diferente do que acontece no Brasil.
Nesta senda, o acordo de não persecução penal, recentemente inserido no ordenamento jurídico pátrio, traz consigo a necessidade da confissão, mediante gravação, para que seja procedida a negociação entre o representante do Ministério Público e o acusado. A partir dessa análise, traz-se à baila o artigo intitulado “barganha” constante no Anteprojeto do Código Penal que tramita no Congresso Nacional, que igualmente exige a confissão para celebração do acordo.
Parte da doutrina entende que a confissão viola o direito de não autoincriminação, definido no artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal, no tangente à não produção de provas contra si mesmo: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (BRASIL, 1988). Assim como violaria, em tese, o artigo 186 do Código de Processo Penal Brasileiro, que dispõe que “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa” (BRASIL, 1941), tratando a respeito do brocardo latino nemo tenetur se detegere.
Ademais, Este instituto jurídico está firmado no âmbito internacional através dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário, o que reforça a importância desse princípio no Brasil, conforme dispõe o artigo 5º, §3º da CF que refere que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos adotados pelo país “serão equivalentes às emendas constitucionais”.
É o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992 através do Decreto 678, que prevê, pelo artigo 8º, §2º, alínea “g”, que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência”, tendo a garantia mínima, no transcurso do processo penal, do “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.
Corroborado a isso, o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 1992 através do Decreto 592, prevê, no artigo 14, §3º, alínea “g”, o direito de “não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.
Contudo, Vasconcellos (2022, p. 93) aponta que: “a necessidade de confissão cumpre com uma função importante de contribuir para a verificação da base fático-probatória para a legitimidade da imposição de uma sanção criminal. Com o cabimento de acordos em fatos de maior gravidade e a autorização de imposição de consequências mais gravosas, é importante ampliar a profundidade da verificação dos fatos mesmo em âmbito negocial”. Conclui dizendo que a finalidade do uso da confissão no ANPP deve ser limitada, evitando o seu uso de modo abrangente, bem como no eventual fracasso da negociação, deve-se desentranhar a confissão dos autos.
Há que se destacar que o Código de Processo Penal brasileiro foi publicado através de um Decreto-Lei em 1941, de modo que está pelo menos quatro décadas atrasado com relação à Constituição Federal e, portanto, evidentemente não passou pelo filtro hermenêutico-Constitucional antes da sua publicação. Por outro lado, as reformas jurídicas trazidas através da inserção de novas leis ordinárias e da edição de normas não são suficientes para atualizar o referido código para o fim de torná-lo condizente com os princípios previstos pela Constituição Federal.
Em razão disso, o projeto de novo Código Penal e Código de Processo Penal tramitam atualmente no Congresso Nacional e consistem em alternativas a fim de atualizar esse sistema, tornando-o coerente não só com a atual Constituição, mas também com os ditames sociais desta época, haja vista que muitos fatos antes tipificados, hoje deixaram de ser socialmente reprováveis e, portanto, não há necessidade de penalizá-los. Enquanto os códigos atuais possuem revogações e diversas alterações, o novo projeto surgiu como um respiro das novas mudanças.
Por outro lado, a negociação no processo penal, independentemente de sua natureza, pode carregar injustiças com relação à vítima, mas também com relação ao acusado, uma vez que, aos olhos da vítima, a negociação pode ter sido deveras branda, enquanto, pela perspectiva do acusado, ele poderia obter, através do curso tradicional do processo comum ordinário, benefícios como a arguição de nulidade processual, a absolvição pela insuficiência de provas ou, até mesmo, o acarretamento dos institutos da decadência, da prescrição e da preclusão, o que não ocorre quando procedida uma negociação entre o acusado e o Promotor de Justiça.
As pautas internacionais surgem de forma interessante nesse sentido. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, os acordos são realizados mediante declaração de culpa. Nesse sentido, parece já ter sido superado o debate quanto à mitigação da presunção de inocência, uma vez que, ao menos no Brasil e em termos de ANPP, a declaração de culpa é um pressuposto de validade para o negócio jurídico criminal.
Contudo, ainda cabem discussões quanto à utilização dos elementos informativos do inquérito policial para a formação do caderno probatório que compõem a proposta de ANPP. Esses elementos informativos geralmente são evidências suficientes para uma eventual denúncia pelo MP, que em algumas situações requer diligências adicionais para a formação dos elementos da ação.
Igualmente, se não houvesse um acordo, havendo suficientes indícios de autoria e materialidade, haveria uma denúncia e, no insucesso da negociação, a confissão seria desentranhada e não poderia ser utilizada em benefício do órgão acusador. Do contrário, essa confissão tem o mesmo peso dos demais elementos da fase policial, comparada a uma confissão em delegacia de polícia, por exemplo, que é insuficiente para condenar em seara judicial. Os elementos informativos, então, passariam pelo contraditório judicial, formando provas judicializadas a partir dos pressupostos do devido processo legal.
Ainda, a proposta de ANPP formulada pelo Ministério Público não obriga o acusado e a defesa, de modo que, identificando que as evidências apresentadas são fracas e insuficientes para uma condenação judicial, pode-se optar pela recusa ao acordo e seguimento do processo tradicional, esperando por um arquivamento ou rejeição da denúncia fulcro no artigo 395 do Código de Processo Penal. Logo, a fraca base probatória não é uma justificativa plausível para a deslegitimação do acordo, uma vez que a rejeição à proposta sempre será uma opção.
Desse modo, o acusado passa direto da fase inquisitiva do inquérito policial para a fase executória do processo, e deixa de usufruir de direitos e garantias inerentes ao processo penal acusatório, como a arguição de nulidades processuais, a produção de provas em seu favor e, até mesmo, da ocorrência do instituto da prescrição, que é um benefício seu, obtido em razão da morosidade estatal em processá-lo e julgá-lo pelo crime que, em tese, cometeu, dentro de um prazo razoável.
Ocorre que com o instituto do acordo de não persecução penal, o Estado resolveu dois problemas de uma só vez: acelerou os novos processos judiciais - sob a justificativa do aumento do tempo hábil para que os órgãos se dediquem a processos mais graves - e reduziu a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva estatal, com a possibilidade de, não cumprido o acordo, iniciar um processo criminal, com a remoção da confissão do caderno probatório a fim de não contaminar os autos.
A evolução do formato dos acordos no processo penal nacional evidencia a preocupação por oferecer uma justiça criminal mais célere e eficiente. A exemplo do ANPP, é importante que seja averiguado o que funcionou e o que ainda precisa ser adaptado, para o fim de evoluir as novas propostas negociais nos projetos dos novos códigos criminais, em vistas de evitar o seu insucesso e aprimorar as práticas negociais no Brasil.
Conclusão
Embora o acordo de não persecução penal seja mais recente, antes dele já se debatia no Congresso Nacional, em relação às reformas integrais dos Códigos Penal e de Processo Penal, a ampliação dos espaços negociais, com o procedimento sumário e a barganha. A justiça criminal brasileira parece estar se encaminhando para a concepção de que a negociação no processo penal é benéfica para as partes envolvidas, para o sistema de justiça e para a sociedade como um todo.
De fato, é possível ampliar os mecanismos negociais no Brasil em vistas de aprimorar o sistema de justiça criminal. Contudo, é necessário que exista ponderação, especialmente em se tratando da importação de institutos, para que seja procedida a devida adaptação ao modelo processual penal nacional, especialmente em se tratando de poderes discricionários dos entes estatais na persecução penal.
Considerando que os projetos mencionados tramitam há dez anos, parece estar sendo levado a sério a ideia de empurrar, cada vez mais, a norma codificada para uma ideia que se aproxima do direito consuetudinário, aumentando espaços de consenso e reduzindo a incidência de processos criminais em trâmite. Permitir soluções consensuais e negociais nos espaços criminais cria uma atmosfera de celeridade e de solução. Embora o apenamento, nesses casos, possa ser mais brando, a justiça que “tarda mas não falha”, passará a nem mesmo tardar.
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Advogada (OAB 127.216-RS). Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HEINZMANN, Anna Carollina Tisatto. Análise dos espaços negociais no Brasil sob uma perspectiva expansionista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 out 2022, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59430/anlise-dos-espaos-negociais-no-brasil-sob-uma-perspectiva-expansionista. Acesso em: 23 dez 2024.
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