RESUMO: O presente artigo almeja fazer uma análise acerca do formato atual do princípio da insignificância na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, levando em consideração seus critérios gerais de aplicação. Considerando a estrutura jurídica de crime, formulada pela moderna teoria do delito, admite a doutrina largamente majoritária que o princípio da insignificância conduz à atipicidade material da conduta. Partindo dessa premissa, seria inadmissível a aferição de critérios subjetivos para sua aplicação, que somente poderiam ser apreciados no âmbito da culpabilidade do agente. Todavia, a análise mais recente da jurisprudência mostra a grande oscilação dos julgados quanto aos critérios práticos para se viabilizar a aplicação desse princípio, sendo possível observar uma crescente expansão da corrente que defende a necessária consideração das circunstâncias pessoais do réu para sua correta incidência.
Palavras-chave: Direito penal Mínimo; Princípio da insignificância; Critérios de aplicabilidade; Circunstâncias pessoais do réu.
1.INTRODUÇÃO
Nos dias atuais, já não se tem dúvida sobre a admissibilidade do princípio da insignificância. Apesar de uma ou outra hesitação, a jurisprudência brasileira vem aceitando amplamente o referido princípio.
Isto porque, tratando-se de um conceito normativo, que exige complemento valorativo do julgador, o princípio da insignificância tem estreita relação com a moderna posição do juiz, que já não está bitolado pelos parâmetros abstratos da lei, senão pelos interesses envolvidos em cada situação concreta.
Assim, a maior controvérsia, hoje, relacionada ao citado princípio já não é pertinente à sua admissão, há tempos superada, mas sim à sua real extensão e aos seus critérios orientadores.
Analisando os acórdãos recentemente proferidos pelos Tribunais pátrios que comportam a discussão da insignificância, percebe-se que os limites à sua aplicabilidade ainda se apresentam incertos quando a apreciação do caso envolve condições de ordem subjetiva, isto é, circunstâncias de caráter puramente pessoal em relação ao agente.
Faz-se necessário agora, justamente sobre este aspecto celeumático do princípio da insignificância, uma análise mais detida da jurisprudência atual, especificamente a do Supremo Tribunal Federal, a fim de se extrair qual o posicionamento que vem sendo predominantemente adotado e os argumentos utilizados para a sua defesa.
2.DESENVOLVIMENTO
O primeiro caso em que o princípio se viu reconhecido pela Suprema Corte foi o contido no RHC 66.869/PR, relatado pelo Ministro Aldir Passarinho, em 06.12.1988. O Supremo Tribunal Federal considerou que a lesão inexpressiva decorrente de acidente de trânsito impedia a instauração de ação penal, levando em conta exclusivamente o critério do desvalor do resultado.
Já no segundo caso, também referente a um acidente de trânsito, julgado no HC 70.747/RS, em 07.12.1993, relatado pelo Ministro Francisco Rezek, o Colendo STF deixou de acatar o princípio da insignificância, embora o desvalor do resultado fosse mínimo, porque o acusado não reunia condições pessoais para isso. O réu era reincidente, já condenado antes por desacato e desobediência a policiais.
Da mesma forma, as primeiras decisões do STJ oscilavam entre a relevância ou não dos requisitos subjetivos do réu para o reconhecimento do princípio da insignificância. Veja-se:
No julgamento do RHC 4.311-3/RJ (95.0002448-9), relatado em 13.3.1995 pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, com voto vencedor, unânime, o STJ concedeu, de ofício, habeas corpus em favor do paciente que objetivava apelas em liberdade do acórdão do Tribunal de Alçada Criminal do Estado do Rio de Janeiro que o condenara pelo furto de uma caixa de chocolates no valor de R$ 8,08. Particularidade do acórdão é a indagação da natureza jurídica do princípio da insignificância: se excludente da tipicidade ou da culpabilidade, tendo a decisão, sem enfrentamento do tema, optado pela primeira.
Contudo, em caso de furto tentado de diminuto valor a Corte deixou de reconhecer tratar-se de crime de bagatela em face dos péssimos antecedentes do acusado. Entendeu o relator, Ministro José Arnaldo, unanimente acompanhado, que o Princípio da insignificância deve ser sempre prestigiado, por questão de ordem de política criminal, porém não se ajusta ao infrator que apresenta extenso rol de práticas infracionais (Resp. 159.995/RS, julgado em 8.9.1998).[1]
Após vários julgados, o Ministro Celso de Mello, no julgamento do HC nº 84.412/SP, em 18/10/2004, definiu os requisitos objetivos válidos para se aplicar o princípio da insignificância, que vem sendo seguidos até hoje pelos Tribunais. Veja-se:
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL- O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR. (HC 84412, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/10/2004). (grifo nosso)
Pode-se observar que os quatros critérios estabelecidos pelo Ministro Celso de Mello para melhor nortear o julgador no reconhecimento do princípio da insignificância em um caso concreto referem-se somente ao desvalor da conduta e desvalor do resultado, não abarcando o desvalor da culpabilidade, que comporta considerações de ordem subjetiva acerca da pessoa do réu.
As decisões que se seguiram tenderam a considerar apenas esses critérios objetivos do ato praticado, de modo que, no final do ano de 2008, o STJ praticamente havia uniformizado seu entendimento nesse sentido.
Para ilustrar, vale citar algumas das principais decisões do STF e do STJ que refutaram a apreciação de dados subjetivos do agente do fato para aplicar a insignificância:
EMENTA: (...)III. Descaminho considerado como "crime de bagatela": aplicação do "princípio da insignificância". Para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada, assim a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica causada (HC 84.412, 2ª T., Celso de Mello, DJ 19.11.04). A caracterização da infração penal como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva: ou o ato apontado como delituoso é insignificante, ou não é. E sendo, torna-se atípico, impondo-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa (HC 77.003, 2ª T., Marco Aurélio, RTJ 178/310). IV. Concessão de habeas corpus de ofício, para restabelecer a rejeição da denúncia. (Supremo Tribunal Federal. AI-QO 559904/RS, Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07.06.2005, DJ 26.08.2005) (grifo nosso).
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - TRIBUTO. Rege o princípio da insignificância critério objetivo considerada a imputação penal, descabendo levar em conta atos diversos do agente - precedente: Agravo de Instrumento nº 559.904-1/RS, relator, ministro Sepúlveda Pertence, publicado no Diário da Justiça de 26 de agosto de 2005. (Supremo Tribunal Federal. HC 88771/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19.02.2008, DJ 28.03.2008). (grifo nosso)
Em princípio, somente se poderia cogitar da análise de circunstâncias de caráter pessoal na hipótese de elas constituírem elementar do tipo, pois, caso contrário, a configuração do crime não se daria em razão dos fatos, mas, sim, da pessoa que o tivesse praticado. A dizer, uma mesma conduta poderia ser, ou não, crime, dependendo das circunstâncias pessoais – condição econômica, ausência de antecedentes criminais, entre outras – tidas pela lei penal como irrelevantes para a configuração do tipo penal. (Supremo Tribunal Federal. HC 92740/PR, Rel. Ministra CÁRMEN LÚCIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19.02.2008, DJ 28.03.2008). (grifo nosso)
O fato de já ter antecedente, considerado anterior processo, não serve para desqualificar o princípio da insignificância, presentes as circunstâncias dos autos. Não se trata aqui de questionar se inquéritos e processos pendentes, ainda não transitados em julgado, podem ser considerados para configurar maus antecedentes penais. Ainda que seja possível considerar a mencionada denúncia em desfavor do réu, sem se cogitar de ofensa ao princípio da presunção de inocência, parece de todo desarrazoado afirmar-se, com base em apenas dois episódios, que o réu faça da prática do descaminho o seu modo de vida. Especialmente quando se considera que em um desses o prejuízo causado ao Fisco foi de pouco mais de mil reais. (Supremo Tribunal Federal. RE 550761/RS, Rel. Ministro MENEZES DIREITO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27.11.2008, DJ 31.01.2008). (grifo nosso)
CRIMINAL. HC. FURTO. TENTATIVA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. POSSIBILIDADE. RES FURTIVA DE VALOR ÍNFIMO. BEM DEVOLVIDO À VÍTIMA. CONDIÇÕES PESSOAIS DO RÉU QUE NÃO IMPEDEM A APLICAÇÃO DO INSTITUTO. POSSIBILIDADE DE HAVER MAIORES VALORES NO INTERIOR DO BEM SUBTRAÍDO. CIRCUNSTÂNCIA ABSTRATA. ORDEM CONCEDIDA. (...) 3- As circunstâncias de caráter pessoal, tais como reincidência e maus antecedentes, não devem impedir a aplicação do princípio da insignificância, pois este está diretamente ligado ao bem jurídico tutelado, que na espécie, devido ao seu pequeno valor econômico, está excluído do campo de incidência do direito penal. (...). (Superior Tribunal de Justiça. HC 82833/RJ, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), QUINTA TURMA, julgado em 04.10.2007, DJ 22.10.2007). (grifo nosso)
De início, ressalte-se que ao contrário do aduzido pelo Recorrente, as circunstâncias de caráter eminentemente pessoal não interferem no reconhecimento do delito de bagatela, uma vez que este está relacionado com o bem jurídico tutelado e com o tipo de injusto, e não com a pessoa do acusado, que não pode ser considerada para a aplicação do princípio da insignificância, sob pena de incorrer no inaceitável direito penal do autor, incompatível com o sistema democrático. Nesse contexto, a jurisprudência desta Quinta Turma tem se inclinado no sentido de que o fato do réu possuir antecedentes não impede a aplicação do princípio da insignificância. (Superior Tribunal de Justiça. REsp 835553/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 20.03.2007, DJ 14.05.2007). (grifo nosso)
Todavia, a questão não restou pacificada. Nos últimos anos, tem-se notado uma certa oscilação na jurisprudência destas Cortes num ou noutro sentido, tornando-se imprescindível sua abordagem a fim de verificar qual entendimento tem prevalecido ou tende a prevalecer no tocante ao tema.
Assim, segue abaixo os últimos julgados do Supremo Tribunal Federal acerca da consideração dos critérios objetivos e subjetivos do crime para se aplicar o princípio da insignificância:
E M E N T A HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REGISTROS CRIMINAIS PRETÉRITOS. 1. A pertinência do princípio da insignificância deve ser avaliada, em casos de pequenos furtos, considerando não só o valor do bem subtraído, mas igualmente outros aspectos relevantes da conduta imputada. 2. A existência de registros criminais pretéritos contra o paciente obsta, por si só, a aplicação do princípio da insignificância. Precedentes. Ressalva de entendimento pessoal da Ministra Relatora. 3. Ordem denegada. (STF - HC: 122743 MG , Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 07/10/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-214 DIVULG 30-10-2014 PUBLIC 31-10-2014)
Agravo regimental em habeas corpus. 2. Descaminho. 3. Princípio da insignificância. Incidência da Portaria n. 75/2012. Impossibilidade de aplicação. Reiteração delitiva. 4. Precedentes no sentido de afastar o princípio da insignificância a reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada. 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. (HC 133736 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 03/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 17-05-2016 PUBLIC 18-05-2016)
Agravo regimental em habeas corpus. 2. Furto (artigo 155, caput, do Código Penal Brasileiro). 3. Princípio da insignificância. Afastamento de aplicação. Reincidência delitiva específica. 4. Precedentes no sentido de afastar o princípio da insignificância a reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada. 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. (HC 147215 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 29/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-153 DIVULG 31-07-2018 PUBLIC 01-08-2018)
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FURTO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ATIPICIDADE MATERIAL. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Não se mostra possível acatar a tese de atipicidade material da conduta praticada pelo agravante, pois não há como afastar o elevado nível de reprovabilidade assentado pelas instâncias antecedentes, ainda mais considerando os registros do Tribunal local, dando conta de que o agravante é contumaz na prática delituosa, haja vista que é multirreincidente em crimes contra o patrimônio, o que desautoriza a aplicação do princípio da insignificância, na linha da jurisprudência desta CORTE. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (RHC 147040 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 24/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 05-09-2018 PUBLIC 06-09-2018)
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. DECISÃO MONOCRÁTICA. CRIME DE RECEPTAÇÃO. MAUS ANTECEDENTES. REPROVABILIDADE DA CONDUTA. RECEPTAÇÃO. CRIME PLURIOFENSIVO. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INEXISTÊNCIA DE ARGUMENTAÇÃO APTA A MODIFICAR A DECISÃO RECORRIDA. MANUTENÇÃO DA NEGATIVA DE SEGUIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A habitualidade delitiva constitui motivação idônea a afastar a aplicação do princípio da insignificância, desde que, sopesada com juízo conglobante à luz dos elementos do caso concreto, resulte em maior reprovabilidade da conduta. Precedentes. 2. A consolidada jurisprudência desta Corte entende que o crime de receptação não comporta a aplicação do princípio da insignificância, por se tratar de delito pluriofensivo que tutela, além do patrimônio, a própria administração justiça, pois a ação do receptador embaraça a persecutio criminis. 3. A inexistência de argumentação apta a infirmar o julgamento monocrático conduz à manutenção da decisão recorrida. 4. Agravo regimental desprovido. (HC 159435 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 28/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-167 DIVULG 31-07-2019 PUBLIC 01-08-2019)
EMENTA HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITO PENAL. SUBSTITUTIVO DE RECURSO CONSTITUCIONAL. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. TENTATIVA DE FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. HABITUALIDADE DELITIVA. REPROVABILIDADE DA CONDUTA. 1. Contra a denegação de habeas corpus por Tribunal Superior prevê a Constituição Federal remédio jurídico expresso, o recurso ordinário. Diante da dicção do art. 102, II, a, da Constituição da República, a impetração de novo habeas corpus em caráter substitutivo escamoteia o instituto recursal próprio, em manifesta burla ao preceito constitucional. 2. A pertinência do princípio da insignificância deve ser avaliada considerando os aspectos relevantes da conduta imputada. 3. A habitualidade delitiva revela reprovabilidade suficiente a afastar a aplicação do princípio da insignificância (ressalva de entendimento da Relatora). Precedentes. 4. Habeas corpus não conhecido. (HC 106292, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 18/10/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-024 DIVULG 07-02-2017 PUBLIC 08-02-2017)
EMENTA AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO. CONCURSO DE PESSOAS. VULNERABILIDADE DA VÍTIMA. PACIENTE MULTIRREINCIDENTE. CARACTERIZADA A REPROVABILIDADE DO COMPORTAMENTO. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INVIABILIDADE DO PLEITO ABSOLUTÓRIO. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS DESPROVIDO. 1. É aplicável o princípio da insignificância no sistema penal brasileiro desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: “a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada” (HC 84.412, ministro Celso de Mello). 2. Na presença desses quatro vetores, o princípio da insignificância incidirá para afastar, no plano material, a própria tipicidade da conduta diante da ausência de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. 3. A insignificância, princípio que afasta a tipicidade da conduta, especialmente nos crimes patrimoniais, não deve ser tida como regra geral, a se observar unicamente o valor da coisa objeto do delito. Deve ser aplicada, segundo penso, apenas quando estiver demonstrado nos autos a presença cumulativa dos quatro vetores objetivos que venho de referir. 4. A contumácia ou reiteração delitiva, a multirreincidência, a reincidência específica são exemplos de elementos aptos a indicar a reprovabilidade do comportamento, fator hábil a afastar a aplicação do princípio da insignificância. 5. Para o acolhimento da tese defensiva – caracterização do reduzidíssimo grau de reprovabilidade da conduta –, seria indispensável o reexame de todo o conjunto fático-probatório que levou as instâncias ordinárias, especialmente ao ressaltarem que “os réus cometeram o crime se valendo do maior número de agentes, podendo assim monitorar o local sem que pudessem ser vistos” e “que o crime ocorreu quando a vítima cega estava sozinha em casa”, a concluir pela “maior reprovabilidade da conduta”, fato inviável na via estreita do habeas corpus, que não admite dilação probatória. 6. As circunstâncias do delito (o concurso de agentes e a vulnerabilidade da vítima, no caso) e a multirreincidência específica do agravante têm o condão de afastar a caracterização do reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, o que impede o pretendido reconhecimento da atipicidade da conduta, a aplicação do princípio da insignificância e, em consequência, o pleito absolutório. 7. Consideradas a quantidade da pena privativa de liberdade aplicada, não superior a 4 anos, a reincidência do agravante e a existência de circunstâncias judiciais desfavoráveis (maus antecedentes, no caso), é adequada a fixação do regime fechado, nos termos do art. 33, § 2º, “c”, e § 3º, do Código Penal. 8. Agravo regimental desprovido.(RHC 198550 AgR, Relator(a): NUNES MARQUES, Segunda Turma, julgado em 04/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-238 DIVULG 01-12-2021 PUBLIC 02-12-2021)
O hodierno panorama jurisprudencial exposto sinaliza uma mudança de entendimento na Suprema Corte acerca dos elementos conceituais do princípio da insignificância e seus reflexos na teoria geral do delito.
É possível perceber, a partir das ementas anteriormente colacionadas, que, embora a doutrina largamente majoritária entenda que para a aplicação do princípio da insignificância devam ser observados apenas os aspectos objetivos do crime, vez que restringe-se a uma análise da tipicidade do fato, a jurisprudência do STF vem decidindo em sentido oposto.
No Pretório Excelso, observa-se que os julgados passaram a negar aplicação ao princípio da insignificância para agentes reincidentes e portadores de maus antecedentes, concluindo-se que a presença de tais elementos constitui um óbice para o reconhecimento do referido princípio.
Em crítica a esse posicionamento, há muito já discorria Vinícius de Toledo Piza Peluso:
A consideração pelo juiz dos elementos do desvalor da culpabilidade do agente, tais como a culpabilidade, primariedade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos do crime, conseqüências, circunstâncias, etc., nos termos do art. 59 do CP, no momento da análise da aplicação do princípio da insignificância, nada mais é do que a subversão da “ordenação sistemática” e do “caráter seqüencial” da teoria geral do delito, eis que o conteúdo da culpabilidade está sendo valorado em momento e local inadequados, qual seja, a tipicidade. Portanto, pergunta-se: como analisar o conteúdo da culpabilidade do agente, se a conduta sequer foi considerada típica?
(...)
O princípio da insignificância tem a natureza meramente objetiva, sendo erro procedimental grave a análise de elementos subjetivos, pertencentes à culpabilidade do agente - especificamente a primariedade -, no momento da valoração do referido princípio. Portanto, determinado que o fato é penalmente irrelevante (atípico), pouco importa, para o deslinde da questão, a personalidade do réu, inclusive porque, no momento da tipicidade, o Direito Penal é um direito do fato e não do autor, sendo, assim, indevida qualquer análise da personalidade do acusado.[2]
No mesmo sentido, escreveu Luiz Luisi:
Uma lesão insignificante a um bem jurídico, mesmo que seja de autoria de um celerado, reincidente na prática dos mais graves delitos, não faz com que ao mesmo se possa atribuir a prática de crime. A vida pregressa, os antecedentes, por mais “hediondos” que sejam, não podem levar a tipificação penal de uma conduta que, por ter causado insignificante dano a um bem jurídico tutelado, não lhe causou uma lesão relevante. Somente após se entender tipificado o fato, é que se podem considerar as circunstâncias que o cercaram e a vida pregressa de seu autor, para efeito de se aferir sua culpabilidade, e a conseqüente dosagem da pena.[3]
Contudo, para evitar essa “subversão da “ordenação sistemática” e do “caráter seqüencial” da teoria geral do delito” denunciada por Vinícius de Toledo Piza Peluso e Luiz Luisi, é que a corrente jurisprudencial atacada tem afirmado, a despeito do desvalor da conduta e do resultado, a tipicidade material da conduta praticada pelo agente reincidente ou com maus antecedentes que lesiona infimamente o bem jurídico.
É o que se depreende das ementas retro colacionadas, podendo-se destacar, dentre outros, o trecho do HC 113023/RS: “O criminoso contumaz, mesmo que pratique crimes de pequena monta, não pode ser tratado pelo sistema penal como se tivesse praticado condutas irrelevantes, pois crimes considerados ínfimos, quando analisados isoladamente, mas relevantes quando em conjunto, seriam transformados pelo infrator em verdadeiro meio de vida. 3. O princípio da insignificância não pode ser acolhido para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de conduta ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido à sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal. 4. Ordem denegada.” (grifo nosso)
Em síntese, verifica-se que para se aplicar o princípio da insignificância boa parte dos julgados passou a ressaltar a necessidade de se analisar não só o desvalor da conduta e o desvalor do resultado, mas também o desvalor da culpabilidade do agente da ação.
Negam a aplicação do princípio da insignificância aos que apresentam vida pregressa desfavorável sob a alegação de que faltaria, neste casos, o “reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento” e a “ausência de periculosidade social da ação”.
Pode-se perceber que houve aí uma subjetivização dos vetores que, inicialmente, eram concebidos no seu aspecto puramente objetivo. Quando foram originalmente delineados pelo Ministro Celso de Mello, no julgamento do HC nº 84.412/SP, e posteriormente adotados por inúmeros Tribunais, sugeriam uma análise objetiva da infração praticada numa determinada situação concreta.
Assim, o “reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento” e a “ausência de periculosidade social da ação” diziam respeito somente à conduta do acusado naquele fato concreto. Ou seja, o “comportamento” a que se referiam não era o comportamento do acusado durante toda a sua vida, mas naquele episódio específico que se analisava. Da mesma forma, não é à periculosidade do agente que se fazia referência, e sim à periculosidade social da ação sub examine.
O resultado dessa subjetivização, na verdade, acaba refletindo no conceito de tipicidade material. Pois, de acordo com a argumentação utilizada pelos Ministros do STF, é possível extrair desse entendimento que uma conduta de mínima ofensividade, não perigosa socialmente, de reduzido grau de reprovabilidade e que lesione de forma inexpressiva o bem jurídico atingido, somente será materialmente atípica e irrelevante para o direito penal se as condições pessoais do réu forem favoráveis.
Ou seja, deslocou-se da teoria da pena para a tipicidade os elementos subjetivos pertencentes à culpabilidade do agente. Ao invés de serem aferidos somente na fase de aplicação da pena, para definir e graduar a sanção a ser imposta, foram antecipados para a teoria do crime, como elemento constitutivo da tipicidade material.
Para Luiz Flávio Gomes, os operadores do direito acabam muitas vezes confundindo o princípio da insignificância com o da irrelevância penal do fato e, por isso, adverte:
A confusão está aqui: os critérios que orientam o princípio da insignificância são somente os do desvalor do resultado e do desvalor da conduta (e nada mais). Não se pode mesclar os critérios fundantes de cada princípio, sob pena de se incorrer em grave confusão (que não se coaduna com a boa técnica). O injusto penal é constituído do desvalor do resultado e desvalor da ação. A insignificância correlaciona-se indubitavelmente com o âmbito do injusto penal. Logo, não entram aqui critérios subjetivos típicos da reprovação da conduta (ou da necessidade da pena). (...)Toda referência que é feita (na esfera do princípio da insignificância) ao desvalor da culpabilidade (réu com bons antecedentes, motivação do crime, personalidade do agente etc.) está confundindo o injusto penal com sua reprovação, leia-se, está confundindo a teoria do delito com a teoria da pena (ou, na linguagem de Graf Zu Dohna, o objeto de valoração com a valoração do objeto). Não se pode utilizar um critério típico do princípio da irrelevância penal do fato (teoria da pena) dentro do princípio da insignificância (que reside na teoria do delito). Essa é a confusão que precisa ser desfeita o mais pronto possível, para que o Direito penal não seja aplicado incorretamente (ou mesmo arbitrariamente).[4]
Partindo-se dessa premissa, Luiz Flávio Gomes faz algumas considerações a respeito dos tipos de reincidência, a fim de diferenciar certas situações que merecem tratamento distinto quanto ao reconhecimento da insignificância penal. Seus ensinamentos permitem ponderar que:
a) Na multirreincidência ou reiteração cumulativa - o sujeito pratica reiteradas condutas de pequena monta contra a mesma vítima, sendo que a somatória dos eventos provoca lesão bastante expressiva ao bem jurídico. Nestes casos, em que deve se considerar o todo como fato único, deve ser afastado o princípio da insinificância,
b) Na multirreincidência ou reiteração não cumulativa – o sujeito pratica vários fatos insignificantes, não cumulativos, sem liame temporal e contra vítimas diversas. Levando em conta apenas os requisitos objetivos, não há impedimento para a aplicação do princípio da insignificância;
c) Fato único cometido por agente reincidente – Cuidando-se de fato único, avaliados somente os critérios objetivos, o simples fato do réu ser reincidente não pode ser obstáculo para a aplicação da bagatela
Entretanto, a diferenciação ora proposta não é alvo de convicção da maioria dos integrantes do STF. Conforme entendimento explicitado em diversos julgados, basta que o réu não seja primário para restar inaplicável o princípio da insignificância, pouco importando a espécie e as circunstâncias dos outros crimes praticados.
Por fim, vale ressaltar, que em dezembro de 2014 a Primeira Turma, visando uniformizar o entendimento do Tribunal sobre a matéria, decidiu, por unanimidade, afetar ao Pleno um Habeas Corpus (HC 123.108) impetrado por um homem acusado de furto de um par de chinelos avaliado em R$ 16,00 (dezesseis reais).
A discussão sobre a insignificância iniciou-se na segunda instância em Minas Gerais. Em Habeas Corpus ao Tribunal de Justiça de MG, a Defensoria Pública alegava que o valor irrisório dos chinelos e o fato de eles terem sido devolvidos forçam o Judiciário a aplicar o princípio da insignificância. No entanto, o TJ-MG negou o pedido afirmando que o réu já tem uma condenação criminal transitada em julgado.
O remédio constitucional foi levado ao Superior Tribunal de Justiça, mas foi negado monocraticamente pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, da 6ª Turma, com fundamento na Súmula 7.
No Pretório Excelso, o pedido de aplicação da bagatela foi reiterado. Em seu voto no pedido de trancamento liminar do caso, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, faz uma importante reflexão sobre a aplicação do princípio da insignificância à luz da doutrina, da jurisprudência do STF e do sistema carcerário brasileiro.
No seu voto, o ministro reconhece que, embora a jurisprudência do STF fale em condicionantes para a aplicação da bagatela, especialmente quanto à reincidência e outros aspectos subjetivos da vida pregressa do agente, não há um enunciado claro e consistente para as instâncias precedentes a respeito daquilo que a Corte considera suficiente para afastar a aplicação da norma penal. Por isso, não são incomuns que situações relativamente idênticas sejam julgadas de forma diametralmente oposta, apesar da invocação dos mesmos parâmetros.
Barroso alertou que a ausência de critérios claros quanto ao princípio da insignificância gera o risco de casuísmos, prejudica a uniformização da jurisprudência e agrava ainda mais o já dramático quadro de crise do sistema prisional, já superlotado e em condições degradantes.
O Ministro albergou o entendimento que nem a reincidência, nem a modalidade qualificada do furto devem impedir a aplicação do princípio da insignificância, vez que o direito penal não se destina a punir meras condutas indesejáveis, “personalidades”, “meios” ou “modos de vida”, e sim crimes, isto é, condutas significativamente perigosas ou lesivas a bens jurídicos, sob pena de se configurar um direito penal do autor, e não do fato.
Segundo ele, o afastamento deve ser objeto de motivação específica, como o número de reincidências ou a especial reprovabilidade decorrente de qualificadoras. Ademais, defendeu que para a caracterização da reincidência múltipla, além do trânsito em julgado, as condenações anteriores devem tratar de crimes da mesma espécie.
O relator propôs também que, mesmo quando a insignificância for afastada, o encarceramento deve ser fixado em regime inicial aberto domiciliar, substituindo-se, como regra, a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, mesmo em caso de réu reincidente, admitida a regressão em caso de inobservância das condições impostas. Para o ministro, a utilização da pena de reclusão como regra representa sanção desproporcional, excessiva e geradora de malefícios superiores aos benefícios.
Vale a pena transcrever alguns trechos do Voto do Ministro Relator Roberto Barroso:
(...) Isto é: a tipicidade de uma conduta não pode depender de saber se o agente é vadio, mendigo, processado, condenado ou reincidente. 53. Esta Corte, no entanto, faz exatamente isto ao afastar o princípio da insignificância a agentes em situação de reiteração delitiva, (tecnicamente reincidentes ou não). Uma mesma conduta – e.g., a subtração de uma caixa de fósforos, de quatro galinhas, de um desodorante, de barras de chocolate etc. – tem a sua tipicidade dependente de uma investigação sobre os antecedentes criminais do agente. 54. Essa construção tem obrigado o Tribunal a atenuar sua jurisprudência em alguns casos, em prejuízo a um desejável ideal de coerência. Por exemplo: no HC 117.903, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, o paciente era processado pela tentativa de furto de “25 kg de milho em espiga”, avaliados em R$ 6,00 (seis reais). Embora se tratasse de pessoa que respondia a outros processos penais por posse de entorpecentes, com condenação por tráfico de drogas e por crime contra o patrimônio (dano qualificado), aplicou-se o princípio da insignificância, afirmando-se a necessidade de se analisar os registros do paciente cum grano salis.
(...)
Resta analisar os argumentos dogmáticos usados, e.g., no HC 114.877. Data maxima venia, penso que a citação a Zaffaroni feita em casos da espécie não reflete o real pensamento do penalista. Isto porque a 30 CópiaHC 123108 / MG tipicidade conglobante (v. supra, nota 17) tem uma função redutora, e não ampliadora do juízo de tipicidade penal.
(...)
Todo esse levantamento mostra que o Tribunal necessita de critérios mais firmes para aplicação do princípio da insignificância, sob pena de cometer injustiças e não cumprir o papel de formar uma jurisprudência coerente, a ser observada pelas demais instâncias.
(...)
A reconfiguração jurisprudencial da insignificância, como proposta neste voto, constitui mecanismo realista e pragmático de lidar com a realidade presente, até que ela possa ser modificada.[5]
Desse modo, o ministro votou pela concessão da ordem para reconhecer a atipicidade material da conduta, aplicando o princípio da insignificância.
3.CONCLUSÃO
A breve análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em conjunto com as considerações feitas ao longo deste trabalho, permite concluir que a adoção de critérios subjetivos para se aplicar o princípio da insignificância traz reflexos relevantes na moderna teoria do delito e, consequentemente, no seu campo conceitual.
A maioria inconteste da doutrina, orientada por um Direito Penal Mínimo e levando em consideração os conceitos assentados até então pela teoria geral do delito, afirma o caráter objetivo da aplicação desse princípio, que resulta na atipicidade material do fato. Considerar as condições pessoais do autor, como causa impeditiva para o seu reconhecimento, seria adotar um direito penal do autor.
Do outro lado, se observa que a jurisprudência mais recente, em um número crescente de julgados, tem criado óbices para a aplicação da insignificância nos casos em que, embora a lesão ao bem jurídico seja ínfima, as circunstâncias judiciais sobre a pessoa do réu são desfavoráveis (maus antecedentes, a reincidência, etc).
Ou seja, a questão não mais se restringiria à uma análise de tipicidade, mas, principalmente, da culpabilidade do agente, que se deslocaria da teoria da pena para a teoria do crime, passando a integrar o âmbito daquele primeiro elemento.
Sustentam que a aplicação do referido instituto poderia significar um verdadeiro estímulo à prática destes pequenos furtos, já bastante comuns nos dias atuais, o que contribuiria para aumentar, ainda mais, o clima de insegurança hoje vivido pela coletividade.
É nítida a resistência dessa jurisprudência em adotar, no plano fático, de forma plena, a tese do minimalismo penal. Mesmo diante da ampla e indiscutível aceitação que hoje conta o princípio da insignificância no meio jurídico, percebe-se que ainda há um receio em provocar o descrédito do Judiciário perante a população que sofre com o aumento da criminalidade e por isso clama sempre pela punição penal dos infratores.
Todavia, a retomada de uma ideologia punitivista por boa parte dos julgadores da Suprema Corte, bem como uma política criminal moderna que orienta-se no sentido da desjudicialização e descriminialização, termina por provocar um preocupante clima de instabilidade no que se refere à aplicabilidade do princípio da insignificância.
A falta de critérios legais claros e definitivos sobre o assunto ocasiona patentes desigualdades na aplicação do direito pelos Tribunais, pois permite, muitas vezes, que os juízes se valham de um grande poder de discricionariedade e, através de decisões oscilantes e contraditórias, terminem por abalar a segurança jurídica que se faz imprescindível num Estado Democrático de Direito, que prima, antes de tudo, pela garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Assim, como uma forma de solucionar a questão, faz-se imperiosa a necessidade de uma legislação futura que discipline o assunto, com a urgência que o caso requer, a fim de evitar que um princípio de sobrelevada importância para a concretização de uma nova e equilibrada forma de pensar do Direito Penal seja desconceituado, sendo alvo de entendimentos equivocados ou divergentes.
É preciso que, além de cuidar do tema de forma específica, fixando conceitos, critérios e pacificando pontos controversos, a legislação preveja uma punição alternativa para os infratores de pequenos delitos que, apesar de serem insignificantes para o direito penal, são condutas ilícitas que merecem ser sancionadas por outros ramos do sistema jurídico e social. Somente dessa forma restaria privilegiada a boa técnica jurídica e o respeito social diante da correta aplicação do direito.
4.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] REBÊLO, José Henrique Guaracy. Princípio da insignificância: interpretação jurisprudencial. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 52
[2] PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. A objetividade do Princípio da Insignificância. In Boletim IBCCRIM, ano 9, n. 109, dez. 2001, p. 11.
[3] LUISI, Luiz. O princípio da insignificância e o Pretório Excelso. In Boletim IBCCRIM, ano 6, fev. 1998, p. 227.
[4] GOMES, Luiz Flávio. Delito de Bagatela: Princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato. Revista Diálogo Jurídico, Ano I, Vol. I, nº 1. Salvador, Abr. 2001.
[5] Voto do Ministro Relator Roberto Barroso no HC 123.108/MG. Disponível em <www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC_123108_MLRB.pdf>. Acesso em 20 dez. 2014.
Graduada pelo Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduada pelo Curso de Direito Penal da Faculdade Signorelli. Atualmente Servidora Pública Federal no Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ABREU, Amanda Vieira. Análise dos critérios gerais de aplicação do princípio da insignificância na atual jurisprudência do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2022, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60704/anlise-dos-critrios-gerais-de-aplicao-do-princpio-da-insignificncia-na-atual-jurisprudncia-do-stf. Acesso em: 27 dez 2024.
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