ALEX APPOLONI
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a efetividade do provimento do direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro. A análise será executada na temática do direito à saúde, referido no artigo 196 da Constituição Federal do Brasil. A pesquisa será exercida quanto à judicialização do direito à saúde em contrapartida à aplicação do princípio da reserva do possível, instituto contestado pela doutrina e pela jurisprudência, como elemento restritivo ao exercício do direito à saúde. A responsabilidade de legitimação desses direitos é da Administração Pública, e quando ultrajado necessita de intervenção do Poder Judiciário, sendo admitida exclusivamente em episódios de inércia do Poder Executivo. Assim sendo, considera-se que efetivação do direito à saúde na Constituição Federal implica na obrigação de agir do Estado para sua concretização. No que tange a forma metodológica será realizada uma pesquisa exploratória, buscando entender a questionável aplicabilidade do direito à saúde e o princípio da reserva do possível.
Palavras-chave: Direito à Saúde. Reserva do possível. Judicialização.
ABSTRACT: The present study aims to analyze the effectiveness of the provision of the right to health in the Brazilian legal system. The analysis will be carried out on the theme of the right to health, referred to in Article 196 of the Federal Constitution of Brazil. The research will be carried out as regards the judicialization of the right to health in return for the application of the principle of the reservation of the possible, an institute challenged by legal literature and case-law, as a factor restricting the exercise of the right to health. The responsibility for legitimizing these rights lies with the Public Administration, and when outraged it needs the intervention of the Judiciary, being admitted exclusively in episodes of inertia of the Executive Power. Thus, it is considered that the implementation of the right to health in the Federal Constitution implies the obligation of the State to act to implement it. Regarding the methodological form, exploratory research will be carried out, seeking to understand the questionable applicability of the right to health and the principle of reserving the possible.
Keywords: Right to Health. Reservation of the possible. Judicialization.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO . 1 O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL. 2 DIREITO COMPARADO. 2.1 Estados Unidos da América do Norte (EUA). 2.2 Canadá. 2.3 França. 2.4 Inglaterra. 3. A INTERVENÇAO DO JUDICIÁRIO - JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE. 4. O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
O direito fundamental à saúde se torna determinante à medida que esteja disponível para todos. O ordenamento jurídico deve instituir procedimentos suficientes para possibilitar que todo cidadão tenha seu direito assegurado.
Assim, compreende-se que é de suma relevância a efetividade do direito à saúde, posto que as políticas públicas para a saúde são indispensáveis à coletividade. Consequentemente, a saúde deve obter custódia integral por parte do Estado, com assistência que assegure a efetividade do direito.
A judicialização do direito à saúde é consequência da inércia do Estado em prover a garantia efetiva deste direito, dado que demonstrou ser uma técnica muito utilizada para a conservação do direito prejudicado.
O desfecho para o problema da impermanência do direito à saúde provém de forma efetiva mediante autorização do Judiciário, contudo essa deliberação pode acarretar um comprometimento orçamentário, considerando que ao despender uma concessão de alto valor a um único cidadão, outros pacientes deixariam de serem atendidos, pois os recursos restariam prejudicados, inviabilizando a concretização da universalidade do SUS.
No Brasil, a demanda da precariedade do SUS é roteiro constante de questões de caráter político, econômico e social, mas a análise referente ao tema ocasionalmente é explorada, razão pela qual o presente estudo busca oferecer uma breve discussão sobre a matéria da judicialização como evidência da ineficácia e inércia do Poder Público no oportuno acolhimento às demandas da saúde pública.
Este trabalho objetiva analisar a eficácia da prestação do direito à saúde, garantia assegurada pela Constituição Federal de 1988 em contrapartida com a aplicação do princípio da reserva do possível e demostrar se o Estado está garantindo de modo pleno o direito fundamental social à saúde e analisar a disponibilidade desse direito considerando a omissão de políticas públicas por parte dos entes federados frente à judicialização da saúde no Brasil.
A escolha do tema justifica-se pela inquietude com a ineficácia do direito fundamental à saúde, ainda que a Constituição Federal tenha determinado a obrigação de disciplinar políticas públicas para que o direito seja alcançado pelos brasileiros.
Em termos metodológicos será utilizada a técnica de pesquisa exploratória, de fontes secundárias, de resultados qualitativos no intuito de realizar análise do tema, além da pesquisa documental. Será realizada uma pesquisa exploratória, procurando entender a problemática do direito à saúde e o princípio da reserva do possível.
A Constituição Federal de 1988 teve atuação precursora na organização e delimitação da saúde pública no Brasil, evidenciando normas estabelecedoras dos direitos fundamentais e assegurando sua imediata aplicação. Incluiu em seu escopo os preceitos de: universalidade, descentralização, hierarquização, regionalização e participação popular, sendo estes os princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde - SUS.
Segundo Flávia Piovesan (2003, p. 350):
As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais tem aplicabilidade imediata, cabendo aos poderes públicos conferir eficácia máxima imediata a todo e qualquer preceito constitucional definido de direito e garantia fundamental.
Assim, o SUS foi criado no âmbito dos artigos 196 a 200 da CF de 1988 para proporcionar e diferenciar a gestão do Sistema Único de Saúde.
Por estar entre os direitos sociais, exclusivamente no caput do art. 6º da Constituição Federal de 1988, o direito à saúde se caracteriza como um direito indisponível. Posto isto, a observação deve ser imperiosa quanto a sua prestação pelo Poder Público.
Nessa perspectiva, pondera Humberto Ávila (2007, p. 146):
Portanto, o direito fundamental, por estarem em uma posição de destaque dentro da Constituição Federal de 1988, torna-se um tema bastante relevante para ser debatido, em especial, o direito à saúde, por ser um direito de cunho prestacional e social e pressuposto para a qualidade de vida e dignidade humana de qualquer pessoa.
Para implementar a ordem constitucional exigida pelo artigo 196 da Constituição de 1988, o Estado aprovou diversas leis que visam garantir o acesso universal e igualitário à saúde no Brasil.
Evidencia-se:
A Lei no 8.080/90, conhecida como a Lei do SUS, sancionada em 19 de setembro de 1990: “Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.” (BRASIL 1990)
A Lei 8.142/90 de 28 de dezembro de 1990 que: “Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.” (BRASIL 1990)
Portaria n° 3.916, de 30 de outubro de 1998 que aprova:
A Política Nacional de Medicamentos como parte essencial da Política Nacional de Saúde e constitui um dos elementos fundamentais para a efetiva implementação de ações capazes de promover a melhoria das condições da assistência à saúde da população. (BRASIL 1998)
Norma Operacional da Assistência à Saúde, no 01/2002 (NOAS-SUS 01/02), aprovada por meio da Portaria/GM/MS 373 de 27 de fevereiro de 2002 que:
Amplia as responsabilidades dos municípios na Atenção Básica; estabelece o processo de regionalização como estratégia de hierarquização dos serviços de saúde e de busca de maior eqüidade; cria mecanismos para o fortalecimento da capacidade de gestão do Sistema Único de Saúde e procede à atualização dos critérios de habilitação de estados e municípios.
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado para que os serviços efetivamente garantam o direito à saúde, todavia, não obstante os avanços, as desproporções em saúde subsistem no Brasil, refletindo a profunda desigualdade social e econômica no Brasil e a privação do fortalecimento do SUS.
A Organização das Nações Unidas (ONU) definiu que saúde vai além da ausência de doenças e só é presumível ter saúde quando há pleno bem-estar, mental, físico e social.
Para José Cretella Júnior, na obra “Comentários à Constituição de 1988”, vol. III, (1988, p. 4331) assevera que:
Nenhum bem da vida apresenta tão claramente unidos o interesse individual e o interesse social, como o da saúde, ou seja, do bem-estar físico que provém da perfeita harmonia de todos os elementos que constituem o seu organismo e de seu perfeito funcionamento. Para o indivíduo saúde é pressuposto e condição indispensável de toda atividade econômica e especulativa, de todo prazer material ou intelectual. O estado de doença não só constitui a negação de todos estes bens, como também representa perigo, mais ou menos próximo, para a própria existência do indivíduo e, nos casos mais graves, a causa determinante da morte. Para o corpo social a saúde de seus componentes é condição indispensável de sua conservação, da defesa interna e externa, do bem-estar geral, de todo progresso material, moral e político.
Motivados pela Declaração de Alma-Ata, que especificou os cuidados primários e a assistência universal na saúde, alguns países decretaram, nas respectivas constituições, que a saúde é dever do Estado e direito de todos.
A seguir uma breve análise sobre o funcionamento dos serviços de saúde nos Estados Unidos da América, Canadá, França e Inglaterra.
2.1 Estados Unidos da América do Norte (EUA)
O acesso à saúde é feito principalmente via sistema de seguro-saúde, existindo três sistemas estatais secundários: o Medicare, o Medicaid e o Sistema de Veteranos.
O seguro-saúde funciona de acordo com as leis do mercado e é organizado pela Health Maintenance Organization e Preferred Provider Organization.
O programa Medicare é para empregados com baixa renda e Medicaid para aposentados que comprovarem situação de pobreza.
Ademais, “além dos serviços governamentais e do seguro privado há inúmeras instituições não - governamentais para grupos específicos: câncer, doenças cardíacas, drogas, saúde mental, crianças, etc.” (CONILL, 2008)
Department of health and human services é principal agência do Governo para proteger a saúde dos americanos e dispor serviços essenciais. Corresponde ao Ministério da Saúde no Brasil.
Enquanto nos EUA, é necessário comprovar necessidade para receber o auxílio limitado do governo, no Brasil é o contrário, o sistema de saúde é gratuito, e a população pode aderir a planos de saúde privados.
O Canadá tem um sistema de assistência médica principalmente financiado pelo setor público, conhecido como Medicare.
Diferente do sistema americano, o Medicare canadense fornece acesso a uma cobertura universal e abrangente de serviços médico-hospitalares, é um seguro nacional, financiado pelo poder público.
É um sistema universal e descentralizado, no qual, cada província tem soberania na gestão dos serviços.
O serviço é realizado por prestadores privados, que atendem em clínicas ou hospitais particulares em que acolhem os serviços enviados pelas agências provinciais.
Todos os residentes legais possuem a cobertura do seguro-saúde, seu financiamento é distribuído e provém de contribuições sobre os impostos indiretos, salários, e principalmente, da contribuição social generalizada, que é paga por equivalência à todas as faixas de renda, proporcionalmente, incluindo as rendas sobre capital e aposentadorias.
A prestação do serviço acontece em hospitais públicos e privados e em consultórios privados, sendo que os serviços privados podem ser reembolsados.
Um médico que fica responsável pelos encaminhamentos de cada paciente e as urgências, serviços de ginecologia, oftalmologia, pediatria e psiquiatria dispensam encaminhamento.
O tempo de espera é pequeno e não existe lista de espera para procedimentos cirúrgicos.
Criado em 1948 o National Health Service – NHS é o sistema de saúde da Inglaterra e oferece para todos aqueles que residem legalmente nos países do Reino Unido, medicamentos e assistência médica gratuita ou de baixo custo.
Sua gestão é pública, o financiamento é principalmente fiscal e o modelo assistencial é regionalizado.
O sistema se fundamenta na pessoa do general practitioner (no Brasil corresponde à especialidade de clínico geral), que é o médico é responsável pela população de uma determinada área geográfica. Ele é a porta de entrada para acesso aos especialistas e aos serviços especializados.
A maioria dos serviços do NHS são gratuitos. No entanto, a população precisa pagar uma taxa por serviços de prescrição médica e tratamento odontológico, contudo os maiores de 60 anos e a população de baixa renda e têm direito a isenções ou reduções nessas taxas.
O sistema de saúde da Inglaterra serviu de inspiração para a criação do Sistema Único de Saúde do Brasil – SUS, e assim como o NHS, O SUS é universal, gratuito e financiado pela arrecadação de impostos.
3.A INTERVENÇAO DO JUDICIÁRIO - JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
O direito à saúde, na qualidade de direito social conserva o atributo de requerer do Estado ações cabíveis para a promoção e a recuperação da saúde, necessitando da intervenção do Estado à defesa do direito.
Art. 196, CF/88 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988).
O artigo acima determina expressamente que o Estado, por intermédio de políticas públicas, assegure aos usuários um serviço de saúde que garanta o respeito à dignidade da pessoa humana.
A fragilidade das políticas públicas ofertadas, demonstra a instabilidade do ordenamento do Estado brasileiro. Por consequência, a intervenção do Poder Judiciário nas causas relativas à saúde tem aumentado progressivamente.
A dificuldade ante ao alcance dos serviços de saúde se torna um obstáculo para garantir a universalidade que é um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS).
Art. 7º, Lei 8.080/90 - As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I - Universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; (BRASIL, 1990)
As políticas públicas praticadas pelo Poder Executivo para proteção e prevenção da saúde são guarnecidas de restrições orçamentárias, que acarreta em uma prestação de serviço deficitária.
Nessa conjuntura, afirma Dirley da Cunha Júnior (2006, p. 210):
Subordinar esses direitos aos condicionantes econômicos significa, salvo melhor juízo, negar força normativa da Constituição. A saúde é direito público subjetivo, portanto, podendo ser exigido pelos instrumentos judiciais adequados, quando falhe o Poder Público, que não pode agir discricionariamente no atendimento a esse dever assistencial.
Contesta-se a legalidade do Judiciário para intervir nas políticas públicas, quando no cumprimento de suas decisões, não considera o gerenciamento do orçamento público destinado à saúde da coletividade, priorizando necessidades individuais.
A forma como devem ser implementadas, as políticas públicas devem ser decididas pelo Poder Executivo, sendo a judicialização das políticas públicas uma exceção. Entretanto, como as normas de direitos fundamentais não são normas pragmáticas, a política pública pode ser objeto de controle judicial, em caso de omissões injustificadas que ocasionem a ineficácia do direito social. (BOLFARINI, 2016)
Independente da possibilidade de manipulação do Judiciário sob os atos desempenhados pela Administração Pública, deve-se observar as limitações impostas pelos princípios constitucionais que regula a independência e a harmonia entre os poderes e a atividade administrativa.
No Brasil, a ineficiência do serviço público de saúde é notória, sendo apontada como a maior causa de insatisfação da população com o Governo. Consequentemente, qualquer demanda que vise a proporcionar condições mínimas e razoáveis de atendimento à saúde deve ser devidamente acolhida pelo Poder Judiciário. (BOLFARINI, 2016)
Necessário é admitir que, o acesso equânime e universal à saúde, direito garantido constitucionalmente, tal como os outros direitos fundamentais, não pode ser interpretado incondicional e ilimitadamente.
Por conseguinte, a aplicação do artigo 196 da CF/88 a uma dimensão inquestionável, poderia violar outros princípios constitucionais protegidos.
Destarte, é fundamental o desempenho do Poder Judiciário no que se refere a efetivação do direito à saúde, diante da negligência do Estado em substancializar o direito, dado que é múnus do Poder Judiciário salvaguardar, após a legítima provocação, a ameaça do direito ou a lesão, resultante de inexistência ou ineficiência de políticas públicas.
Dessa maneira, é essencial o controle social e jurisdicional do poder público, no tocante aos princípios da moralidade e eficiência. Se o Judiciário brasileiro é bastante pródigo no tocante à adjudicação dos direitos sociais, qual direitos subjetivos, assim como na Colômbia, é bastante tímido quando o assunto é controle jurisdicional da (i)moralidade na Administração Pública. A sua omissão no controle da moralidade e da eficiência é um dos motivos causadores de tantas demandas por direitos sociais mínimos e cujas decisões são, muitas vezes, acusadas de inconstitucionais, autoritárias, decorrentes de exacerbado ativismo etc. Podemos dizer que, em parte, o Judiciário também é causador do problema que o tenta arduamente resolver (a busca por maior eficácia dos direitos fundamentais socias). (MARTINS, 2020)
Embora, sob a alegação de usurpação de competência e afronta ao princípio da separação dos poderes, o desempenho do Poder Judiciário na preservação dos direitos fundamentais, faz-se indispensável para a efetivação das garantias sociais, objetivando a proteção do indivíduo das lacunas estatais.
Esse, em nosso entender, é o ponto nevrálgico e que precisa ser o foco principal da atuação dos órgãos públicos, em todas as suas respectivas funções (legislativa, administrativa e jurisdicional). Quando se discute hodiernamente a “reserva do possível”, normalmente se busca encontrar os limites da adjudicação por parte do Judiciário dos direitos sociais, com todas as implicações e discussões daí decorrentes (suposta violação da separação dos Poderes, violação das escolhas democráticas, ativismo judicial etc.) (MARTINS, 2020)
4.O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL
Em 1970, na Alemanha, teve origem a Teoria da Reserva do Possível, com o intuito de limitar a realidade da prestação dos direitos sociais conforme o potencial monetário do Estado.
No âmbito saúde, o possível é algo que o Estado pode disponibilizar de maneira equânime para a coletividade, por intermédio de políticas públicas que proporcione promoção e prevenção da saúde, consoante com as capacidades financeiras disponíveis.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (Supremo Tribunal Federal, 2004).
Pontualmente no “cenário de restrições à concretização de direitos fundamentais sociais, que a apresentação da denominada cláusula da reserva do possível revela-se adequada” (OLIVEIRA, 2010).
De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. (SARLET; FIGUEIREDO,2008)
A reserva do possível expressa que os direitos sociais garantidos na Constituição devem ser cumpridos, porém na capacidade admissível, partindo do pressuposto de que o Estado não é um provedor ilimitado e os recursos públicos são parcos.
O cumprimento de uma decisão judicial não pode resultar, em razão do interesse de um único indivíduo, na impossibilidade de cumprimento de outros deveres estatais da mesma relevância para uma coletividade. Em especial na questão do fornecimento de medicamentos, uma decisão judicial pode beneficiar uma pessoa em detrimento de uma coletividade inteira. Se o Estado custear um tratamento de altíssimo custo, muitas vezes sem comprovação científica de sua eficácia, em favor de uma pessoa, pode não ter condições de fornecer medicamentos básicos para uma coletividade. Assim, é legítima, em determinados casos, a alegação da teoria da reserva do possível.” (BOLFARINI, 2016)
Compreende que princípio da reserva do possível é uma resistência do Estado em face as demandas judiciais que abarcam o direito à saúde, os quais apresentam uma expectativa orçamentária para o provimento do direito. Assim, demonstra-se que para propiciar o direito à saúde efetivamente, necessita verificar antecipadamente o plano orçamentário do Estado.
A reserva do possível corresponde a um dado de realidade, um elemento do mundo dos fatos que influencia na aplicação do Direito. O Direito é um fenômeno prescritivo, ou seja, as normas jurídicas têm por fundamento uma determinada realidade fática, a partir da qual prescrevem condutas. Dentro desta concepção, é certo que o Direito não pode prescrever o impossível – e é neste sentido, em um primeiro momento, que se pode abordar a temática da reserva do possível – embora trazendo a discussão para o campo dos direitos fundamentais sociais a prestações”. (OLSEN, 2008)
Entretanto, o direito a saúde é um dispositivo para a preservação da vida humana, resultando em uma obrigação do Estado, definida na distribuição de competência dos entes federados, incorporado na Constituição Federal.
A materialização do direito à saúde não pode se submeter à aplicação do princípio da reserva do possível, a deficiência de recursos orçamentários não pode ser razão considerável para prejudicar a concretização do direito fundamental.
O argumento da reserva do possível não deve ser usado indiscriminadamente para qualquer situação concreta em matéria de direitos fundamentais, sem a necessária consideração da realidade social, pois não se afigura difícil a um ente público justificar sua omissão social perante critérios de política orçamentária e financeira, mitigando a obrigatoriedade do Estado em cumprir os direitos fundamentais, especialmente aqueles direitos sociais de cunho prestacional, que, por conseguinte, restariam inoperantes. (SOARES, 2010)
Assim, no âmbito da abstenção do Estado em assistir alguns dos direitos fundamentais basilares da sociedade é que se qualificou o princípio do mínimo existencial. Refere-se a um direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988, intrínseco a todo indivíduo.
O princípio do mínimo existencial prescreve que inclusive em face à ausência de recursos, é dever do poder público responsabilizar-se pelo o mínimo necessário para a manutenção da população concernente aos direitos sociais, compatível com o conceito de justiça social, ou seja, o mínimo existencial é um princípio que propõe a garantia de circunstâncias mínimas para uma digna existência humana e determina que o Estado disponha de políticas públicas para que aconteça a efetividade plena na prestabilidade destes direitos.
Conforme Paulo Caliendo (2009, p.201), “o mínimo existencial funciona como uma cláusula de barreira contra qualquer ação ou omissão estatal que impeça a adequada concretização ou efetivação do conteúdo mínimo dos direitos fundamentais.”
Por essa razão, se compreende que quando o Estado não garante a aplicabilidade dos direitos fundamentais de maneira eficaz, aquele que tem seu direito ao mínimo existencial prejudicado, poderá entrar com medidas judiciais cabíveis, mesmo na presença do princípio da reserva do possível.
Dessa maneira, fica evidenciado que o Estado não pode se desobrigar da sua responsabilidade constitucional de promover o direito à saúde de maneira qualificada para a coletividade.
O objetivo principal deste trabalho era analisar a eficácia da prestação do direito à saúde, em contrapartida com a aplicação do princípio da reserva do possível e demostrar se o Estado está garantindo de modo pleno o direito fundamental social à saúde e analisar a disponibilidade desse direito considerando a omissão de políticas públicas por parte dos entes federados frente à judicialização da saúde no Brasil.
No tocante à saúde no Brasil, a Constituição Federal, expressa que a saúde é direito de todos e deve ser garantido mediante políticas, sendo não apenas um direito fundamental constitucional e sim um dever do Estado.
No desenvolvimento do trabalho buscou-se entender a causa do impulsionamento dos processos de judicialização, no qual o Poder Judiciário tem sido o cerne para a concretização do direito à saúde, e tem sido empregado como meio de provimento diante da inércia dos demais Poderes, na efetivação de políticas públicas de saúde.
Ficou evidenciado que a fragilidade das políticas públicas, justificada pela restrição orçamentária é a causa da deficiência da promoção à saúde. Assim, o indivíduo que teve seu direito negligenciado, dispõe do Poder Judiciário como o recurso mais viável para alcançar o seu direito à saúde.
A intervenção do Judiciário tem como propósito compensar a omissão do Estado, sob alegação do princípio da reserva do possível, que argumenta que os direitos sociais garantidos na Constituição devem ser cumpridos, porém na capacidade admissível.
Constatou-se que a judicialização pode não ser a melhor opção, pois os processos advêm de demandas individuais e o valor despendido no cumprimento dessas decisões judiciais, consomem parte do orçamento destinado à saúde da coletividade
A análise sob a intervenção do Judiciário torna-se complexa pois apesar da alegação de usurpação de competência e afronta ao princípio da separação dos poderes, é custoso determinar uma barreira para o desempenho do Poder Judiciário entre a preservação dos direitos fundamentais e a subordinação ao princípio da reserva do possível, sem o perigo de invadir a competência dos outros Poderes comprometidos com a disposição do direito à saúde.
Ao longo deste trabalho, concluímos que a atuação do Judiciário se amolda como ferramenta para a efetivação dos direitos constitucionais e que, a reserva do possível não pode servir como razão considerável para prejudicar a concretização do direito fundamental.
Deste modo, na proporção em que se averiguar a efetiva prestação do serviço de saúde, por conseguinte, ocorrerá a atenuação da demanda do Judiciário para efetivação dos direitos. Nesse diapasão, necessário é equilibrar princípios e direitos constitucionais para que se vislumbre decisões assertivas que favoreçam a conquista da justiça social.
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Graduanda em Direito pela Universidade Brasil - Campus Fernandópolis/SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DUTRA, Vania Ferreira. A judicialização do direito à saúde e o princípio da reserva do possível Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 dez 2022, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60714/a-judicializao-do-direito-sade-e-o-princpio-da-reserva-do-possvel. Acesso em: 27 dez 2024.
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