GUSTAVO ANTÔNIO NELSON BALDAN
(orientador)
RESUMO: Historicamente, o tráfico humano assola a humanidade desde a antiguidade. A escravidão, prática condenável que mancha a história de muitos povos, culturas e presente na construção das grandes civilizações antigas, como a Grécia, transformou o ser humano em um produto vendável, uma mercadoria, tirando-lhe o direito à liberdade, e, consequentemente, a vida. De forma análoga à escravatura, o tráfico humano objetifica e comercializa vidas, tornando-se num problema cada vez mais expressivo no século vinte e um. A partir desse contexto, o presente artigo tem como objetivo discorrer sobre o tráfico de mulheres e o escravismo sexual contemporâneo no Brasil que se expande paulatinamente e coloca suas vítimas em situações degradantes ao serem obrigadas a realizarem trabalhos laborais maçantes, entregarem seus corpos à prostituição e também a sua própria liberdade, atos que ferem a dignidade da pessoa humana e vai contra os direitos básicos que todos deveriam ter acesso por lei. Conciliando o tema ao âmbito jurídico e suas devidas tipificações penais no Brasil, dissertando também sobre as evoluções em nossas leis em relação à proteção de vítimas do tráfico humano julgando por via, sua efetividade ao longo das décadas para os crimes pontuados, classificando os principais aspectos em nossa sociedade e mundo que tornam mulheres alvos tão fáceis e vulneráveis ao mercado do tráfico para fins de exploração sexual, da opressão e em como o machismo contribui para o aumento desses crimes em questão, portanto, será abertamente ressaltado sobre como o feminismo teve grande impacto e ainda possui sua grande relevância no assunto e em contrapartida, criando um mapeamento de pontos com maior incidência e relacionando aos índices socioeconômicos, de desenvolvimento humano e desigualdade, utilizando-se de veículos de pesquisa: livros sejam físicos, virtuais ou documentados.
Palavras chave: Tráfico Humano. Mulheres. Vítimas. Escravismo Sexual.
O tráfico de pessoas sempre esteve presente desde os primórdios, uma prática desumana que fere a dignidade daqueles que são colocados nessa situação terrível, sendo um crime silencioso que vem se expandindo cada vez mais, sejam em territórios nacionais ou internacionais, com diferentes rotas que facilitam a movimentação dessa ação criminosa com diversos propósitos que sempre levam ao mesmo âmbito desumano de comércio, ou seja, a de movimentação financeira geradora de cerca de 30 bilhões de dólares por ano, segundo a ONU.
Em 2018, foi apurado pelo relatório global da Organização das Nações Unidas, que entre dez vítimas do tráfico humano detectadas no mundo inteiro, em torno de cinco eram mulheres adultas, duas eram meninas e quase todas foram traficadas para fins de exploração sexual, entretanto, o número de vítimas extremamente jovens do sexo feminino vem aumentando alarmantemente.
O mapeamento feito pela organização citada indica áreas onde a maioria das vítimas são detectadas: Américas, Europa, Ásia Oriental e Pacífico. Porém, na América Central e Caribe, as meninas são as mais traficadas para exploração sexual e no caso de mulheres adultas, nas sub-regiões tem as maiores concentrações.
A situação precária, locais em que o Direito e leis não tem recursos suficientes para lutar contra esse tipo de crime, eventualmente se tornam os mais vulneráveis e mais visados aos olhos de criminosos pela facilidade de operação em sua dança macabra de fantoches humanos, utilizando-se dos métodos mais baixos para capturar suas vítimas para o tráfico; civis, incluindo-se as crianças, que se encontram num estado de desespero, sem acesso às necessidades básicas que todo ser humano deveria usufruir e são forçados a exploração sexual, escravidão sexual, casamento forçado e todas as formas possíveis análogas à servidão.
As zonas de conflito são mais propícias à exploração sexual, principalmente no Oriente Médio, onde há grupos de refugiados, portanto, tem sido relatado que meninas e mulheres muito jovens estão vivendo casamentos forçados sem seu próprio consentimento para assim servirem de moeda de troca em caso de necessitarem de recrutas masculinos potenciais, também são comercializadas a países vizinhos para tornarem-se escravas sexuais. Isso também ocorre na África Subsaariana, Norte da África e no Sudeste Asiático, estes grupos são capazes de espalhar o terror psicológico como forma de controlar a população e disseminar o medo do que viria a acontecerem uma possível rebelião, entretanto, há mais tipos de pessoas (traficantes e grupos criminosos) do mais baixo nível de humanidade envolvidas em conflitos armados que usam dessa prática onde os alvos também são civis e refugiados.
Ao longo da pesquisa, fica nítido quais grupos são os mais vulneráveis e vítimas da prática criminal: populações deslocadas à força em zona de conflito que fogem constantemente das perseguições em assentamentos de refugiados sírios, iraquianos, afegãos e Rohingya, migrantes e refugiados que estão viajando pelas áreas mais afetadas pela guerra, como por exemplo, na Líbia milicianos tomam controle do locais de detenção onde possuem tais refugiados e migrantes que vivem sob o terror constante de tiranos. Zonas de conflito armado afetam negativamente aqueles que habitam nas áreas vizinhas, mesmo que não tenham qualquer envolvimento direto, prejudicando assim a subsistência dessas pessoas que vivem nesse estado de constante medo e deslocamento por tentarem escapar de seus países e continuarem vivas, estas que por sua vez facilmente serão enganadas com as propostas mirabolantes que são oferecidas: viagens, empregos em que há necessidade locomoverem-se pra países vizinhos, descobrindo por fim que na verdade se tratava de esquema fraudulento.
O presente artigo tem como objetivo discorrer brevemente sobre o tráfico de mulheres na América do Sul e a exploração sexual, delimitando o tema ao cenário brasileiro e suas tipificações, contextualizando assim com o feminismo e suas vertentes.
2 O TRÁFICO DE MULHERES NO BRASIL
2.1 A definição de tráfico de pessoas e suas vítimas
De acordo com o artigo 3°, inciso A, do Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas pertencente à ONU e mais conhecido como “Protocolo Palermo”, uma das principais forças internacionais referentes ao enfrentamento do tráfico de pessoas que o define como:
“(...) significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura (...);” (Decreto N° 5.017, 12 de março de 2004.)
Atualmente, de acordo com o site Observatório do Terceiro Setor (2022), o Brasil é o país com um dos maiores índices de mulheres traficadas para o escravismo sexual da América do Sul, com cerca de 110 rotas nacionais e 131 rotas internacionais, contando com o fato de que 32 dessas rotas são para a Espanha, dados estes que foram apontados pela Pesquisa Nacional sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes (PESTRAF). A entrada de brasileiras traficadas para fins de exploração sexual em países onde a língua é neolatina da Europa continuam a se expandir; as vítimas são revendidas para outros estabelecimentos de prostituição com finalidade de “levar novas possibilidades aos clientes”, perdem sua humanidade e transformam-se em “objetos” de troca, portanto, devido ao aumento alarmante, é fato que brasileiras que vivenciam esse tipo de mercado explorativo, merecem a devida atenção e rede apoio em núcleos de repressão ao tráfico.
Como citado anteriormente e foco da pesquisa, os lucros gerados pelos criminosos são exorbitantes porque se trata de um crime silencioso e sem muitos riscos pra quem o pratica: as vítimas saem de seus países de origem com a falsa ideia de que irão trabalhar em serviços com registros legais parecidos com os famosos AU’pairs (que refere-se à programas de intercâmbio cultural de 12 meses para jovens entre 18 a 26 anos) e acabam em cárcere privado, sob constante controle de seus malfeitores, sofrem xenofobia e discriminação por parte deles. Essas mulheres experienciam violência física e psicológica, longas jornadas desumanas de trabalho no mercado sexual que variam de 10 à 13 horas diárias sem pausas e precisam entregar tudo que é arrecadado aos aliciadores, pois eles cobram uma dívida que não parece ter fim; além de serem submetidas ao uso de drogas e até mesmo álcool para continuarem trabalhando despertas, vulneráveis à Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), gerando assim traumas irreversíveis para as vítimas e ainda expõe de forma escancarada a violência e discriminação de gênero.
3 SOB À LUZ DA POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE MULHERES
Na abordagem feita pela Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República do Brasil SPM/PR (2011) sobre o Tráfico De Mulheres que está mais voltada para a perspectiva dos direitos humanos de indivíduos do sexo feminino e no próprio Protocolo Palermo¹, destacam-se três elementos centrais que incluem: o movimento de pessoas em território nacional ou nas fronteiras; a persuasão e coerção que são métodos que envolvem o abuso de autoridade ou a situação de vulnerabilidade da vítima, adendo que este segundo preceito é bem explícito em pontuar: caso a pessoa tenha consentido espontaneamente ser transportada para outro lugar ainda presente em seu país de origem na situação de total vulnerabilidade que a faria aceitar ofertas tentadoras, aproveitando-se do estado emocional frágil da vítima como forma de manipulação será configurado como crime; por fim, o tipo de exploração é o terceiro elemento, seja ele para serviços laborais ou práticas que remetem à escravatura, remoção de órgãos e casamentos servis et al.
O que a SPM/PR (2011) busca é a inclusão de meios de atendimentos às vítimas desse tipo de crime e a repressão aos autores para que sejam responsabilizados, mesmo que sejam áreas de enfrentamentos distintas em relação aos objetivos e públicos específicos, os elementos devem sempre coincidirem-se para
abordar o tráfico de humano em seus diferentes momentos metamorfos, baseando-se totalmente na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, só que voltados especificamente a mulheres, métodos preventivos e atendimento as vítimas.[1]
Nesse mesmo contexto, mesmo que a vítima mulher tenha aceitado migrar para fins de trabalho sexuais, como profissional do sexo, isso não significa que a mesma tenha aceitado as condições análogas à escravidão ou de exploração laboral, tornando assim, irrelevante o consentimento para caracterização de tal crime. Isso condiz com a visão deturpada de submissão que a sociedade impôs como papel feminino, a violência de gênero ou seja, o tráfico de mulheres também é uma das centenas formas existentes de desumanização feminina já tipificadas, este, baseando-se no conceito adotado pela política de enfrentamento à violência contra mulheres e também na Convenção Interamericana que previne, pune e erradica a brutalidade contra vítimas do sexo feminino “Convenção de Belém do Parᔲ, que as define em si como: doméstica que engloba a tortura psicológica, sexual, física moral e patrimonial, abuso e exploração sexual de jovens, mulheres, adolescentes; assédio moral, tráfico e principalmente a crueldade institucional que as profissionais do sexo sofrem.
Ademais, mesmo com evoluções legislativas em relação a proteção à mulher, a desigualdade e violência de gênero é presente, pois a construção social e cultural que atribui aos sexos diferentes papéis na sociedade ainda está enraizado e contribui para o retrocesso mental em que o patriarcado e conservadorismo baseiam-se ao estigmatizarem mulheres a meras mercadorias exóticas, eróticas e “submissas” ao bel prazer masculino, levando-se em conta essa linha de raciocínio, podemos perceber que o tráfico é um crime grave abertamente relacionado à violência de gênero imposta pela nossa sociedade, ferindo os direitos humanos e à dignidade. A mulher brasileira tem sua imagem reduzida e vinculada ao estereótipo erótico e sexual que é propagado pelos veículos de comunicação, incentivando ainda mais o turismo para essa finalidade no Brasil e ao tráfico humano, atingindo de forma negativa a imagem dessas vítimas, confirmando o propósito e patamar em que a sociedade as coloca: meras mercadorias expostas para as regalias masculinas. [2]
3.2 A violência de gênero e sexo da perspectiva de Gayle Rubin
Mas se olhássemos ainda o tráfico de mulheres e a violência de gênero a partir da literatura feminista, encontraríamos a contextualização da antropóloga cultural americana Gayle Rubin sobre o assunto, com o clássico “O Capital” de Karl Marx, mesclado com os dizeres de Claude Lévi-Strauss em “A família” durante seu trabalho intitulado de “O tráfico de mulheres: notas sobre a “Economia Política” do sexo”. A definição de Rubin (2018, p.23) para “a troca de mulheres” no contexto de parentesco e papel da sexualidade na transição do macaco ao “homem”, é de fato interessante:
(...) A “troca de mulheres” é um conceito poderoso e sedutor. É tentador porque localiza a opressão das mulheres no interior sistemas sociais, e não na biologia. Além disso, ele sugere que se deve buscar a fonte da opressão das mulheres em seu comércio e não no comércio de mercadorias. Certamente não é difícil encontrar exemplos etnográficos e históricos desse uso que se faz das mulheres. As mulheres são dadas em casamento, tomadas em batalhas, trocadas por favores, enviadas como tributo, negociadas, compradas e vendidas.”
Ainda sob a perspectiva de Rubin (2018), nada disso é limitado ao mundo “primitivo” e sim em como esse tipo de prática evolui e aprofunda-se, tomando pra si o aspecto comercial em sociedades “civilizadas”; obviamente que homens também são comercializados, mas não como homens e sim como escravos, prostitutos, estrelas do atletismo, servos e entre outros status sociais que são igualmente horríveis. Enquanto mulheres são comercializadas e negociadas como escravas, servas, prostitutas e simplesmente como “mulheres”, nada mais e nada a menos:
“E se os homens foram sujeitos sexuais – agentes das trocas – e as mulheres objetos semi-sexuais – presentes – por boa parte da história humana, então muitos costumes, chavões e traços de personalidade parecem fazer sentido (entre outros, o curioso costume pelo qual o pai entrega a noiva).” (RUBIN, Gayle, 2018, p.23)
Assim, é possível destrinchar a linha de pensamento da antropóloga e introduzi-la no contexto de violência de gênero e feminismo, mas a dúvida que perduraria durante a leitura desse parágrafo seria: como isso seria possível? Gayle Rubin busca pontuar os aspectos culturais sociais no quesito estrutural e laboral entre a separação de gênero, sexo e heterossexualidade compulsória. Ao citar Lévi-Strauss (1980) e o parentesco no estudo da antropologia, observamos as pré-condições enraizadas para criar-se um sistema matrimonial que “culturalmente” estará voltado para a questão dos gêneros masculino e feminino pré-definidos, onde a mulher eventualmente virá a ter uma posição inferior e submissa ao sexo oposto, apenas servindo como reprodutora e elo entre as famílias em um casamento, historicamente. Ademais, se afirmássemos que não teríamos essa cultura em si caso não houvessem a troca de mulheres em relações matrimoniais citadas por Lévi-Strauss seria algo bem dúbio, pelo fato de que a cultura por si é algo inventivo por definição, é algo que constitui uma definição cultural ou de sistema, sendo o conceito apenas a visão sucinta dos “determinados aspectos de relações sociais de sexo e de gênero, ou seja, tudo isso é fruto da opressão escancarada diante de nossos olhos.
Esse sistema matrimonial estereotipado ainda é consistente no século XXI, contribuindo com toda a idealização ilusória de submissão feminina, sendo apenas uma imposição de fins sociais a uma parte literal do mundo natural, uma “produção” em seu mais amplo sentido onde todos possuem uma finalidade subjetiva e pessoas acabam simplesmente como “objetos”, mas não estamos falando de direitos de propriedade exclusivas e capitalismo na visão de Karl Marx em “O Capital” e sim do poder que pessoas diversas tem sobre as outras dentro de um sistema opressor machista. Por certo, não há como negar que esse tipo de comportamento cultural defasado estaria afetando diretamente nas porcentagens exorbitantes de mulheres traficadas para fins sexuais e laborais anualmente.
4 AS ADAPTAÇÕES NO CÓDIGO PENAL PARA REPRESSÃO DO TRÁFICO HUMANO NO BRASIL
Em 12 de março de 2004, o Estado Brasileiro incorporou ao ordenamento jurídico o Protocolo Palermo através do Decreto n° 5.017, este que visa prevenir e combater o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças, entretanto, para que ele tenha sua eficácia totalmente explorada, é necessário que os países de origem envolvidos, de trânsito e de local designado se prontifiquem incluindo medidas preventivas em suas abordagens internacionais e nacionais com o objetivo de punir corretamente quem comete o crime, também oferecer proteção as vítimas de tal ato, mantendo assim todos seus direitos fundamentais internacionais resguardados. Mas a lei ainda é falha, pois ainda não há um instrumento universal que lide com todos os aspectos relacionados ao tráfico humano, afirma Francisca (2016):
“Tendo em conta que, apesar da existência de uma variedade de instrumentos internacionais que contêm normas e medidas práticas destinadas a combater a exploração de pessoas, em especial de mulheres e crianças, não existe nenhum instrumento universal que trate de todos os aspectos relativos ao tráfico de pessoas”.
Ainda buscando adaptações no Código Penal, a lei n° 11.106/05 alterou o art. 231 referente ao tráfico internacional pessoas, haja vista que em seu inciso 2° quem praticasse esse crime com emprego de violência, grave ameaça ou frauda sofreria agravamento e reclusão de 5 (cinco) à 12 (doze) anos, respondendo pela pena correspondente à violência também; a adição do artigo 231-A traria uma nova luz ao tráfico interno de pessoas, pois agora também seria tipificado promover, intermediar ou até mesmo facilitar o recrutamento, transferência, alojamento, acolhimento de pessoas que viessem a exercer a prostituição.
Porém, mesmo com as novas atualizações no art. 231 pela lei n° 12.015/09, ainda era de se considerar “falho” em oferecer proteção à quem sofre esse crime em si do tráfico internacional de pessoas e à seus familiares em casos de situação de extremo perigo que viessem a ocorrer hipoteticamente, apenas focando-se na velha tipificação do crime, o artigo 231-A viria a sofrer alterações na pena que de 3 (três) a 8 (oito) anos, passaria a ser de 2 (dois) a 4 (quatros) anos e pelo princípio da retroatividade da lei, todos aqueles que já estivessem cumprindo a pena seriam beneficiados, pois a lei não retroage para prejudicar, o que é de fato desanimador.
A Portaria de MJ n° 2.167/06 viria com a intenção de lutar eficientemente contra o tráfico de pessoas entre os Estados partes do MERCOSUL e Estados associados (MERCOSUL/RMI/ACORDO, n° 1/2006. Com planos de desenvolver uma grande campanha de sensibilização, alerta e identificação sobre o crime, disponibilizando folhetos informativos em fronteiras, cartazes e outros meios de comunicação que possuíssem a capacidade de distribuir informações sucintas sobre o assunto a fim de conscientizar e prevenir, oferecendo apoio a vítima com suas medidas normativas. Podemos perceber como vagarosamente o Brasil tem buscado se adequar, criando meios de prevenção e formas de atendimentos as vítimas de tráfico interno e internacional.
O projeto de lei da CPI do Tráfico Nacional e Internacional de Pessoas no Brasil n° 479/2012 presidido por Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) tendo seu pico de atividade entre 2011 à 2012, que buscava adequar-se à lei n° 13.344/2016 à legislação brasileira ao Protocolo Palermo (Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, este sendo um tratado da Organização das Ações Unidas (ONU) editado 2020, em que o Brasil é participante, o principal objetivo era dar visibilidade ao crime, haja vista que este não era corretamente tipificado pela sua invisibilidade perante à legislação, algo que foi citado pela líder do projeto Vanessa Grazziotin, informação que consta no site oficial do Senado Federal em 2016. Anteriormente a este projeto de lei, quem cometia esse tipo de crime recebia de três a oito anos de reclusão e com a nova mudança passariam de quatro a oito anos de reclusão sob à luz do novo artigo 149-A, nos incisos I, II, III, VI, V e com agravamento de pena de crime se este fosse cometido por funcionário público, contra crianças, adolescente, idosos e também sofreria agravamento se a vítima for traficada para o exterior. Essa mudança legislativa no Código Penal foi capaz de unificar em um artigo único diferentes finalidades para o tráfico de pessoas e não só apenas os que eram para fins de exploração sexual, ou seja, passaram a considerar remoção de órgãos e tecidos, trabalho escravo, adoção ilegal.
De acordo com Carlos Nicodemos (2020), todas as medidas adotadas pelo Brasil só estariam visando o campo normativo e criminalização do problema em si, pecando ao impor como regra e não como uma complementação, pois tudo que foi adotado e editado até agora como medida só dariam primazia ao falar de tráfico de pessoas apenas na lógica da segurança pública, sem focar no verdadeiro e importante objetivo: direitos humanos. Nicodemos (2020) ainda diz:
(...) “A começar pela escolha de tratamento institucional nos últimos governos federais, que insistiram e permanecem fazendo a gestão da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas no âmbito do Ministério Público e, atualmente, no denominado Ministério da Justiça e Segurança Pública.
É no órgão acima que se situa o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.”
A crítica do autor está na proposta de intervenção que posiciona as ações de assistência a vítima a uma mera atuação do Estado-polícia que peca em ceder o auxílio correto a quem sofre esse crime, ao invés disso, promovem a ideia de ter uma testemunha para desvendar um tipo de crime extremamente expansivo feito o tráfico de pessoas, o que seria impossível; ainda servindo ao sistema penal apenas como elemento de prova sem pensar no verdadeiro propósito que os direitos humanos englobam.
“A invisibilidade política que a vítima de tráfico de pessoas padece neste cenário institucional criminalizador do Estado brasileiro acaba por ignorar as dinâmicas sociais de configuração deste problema, promovendo um deslocamento causal da superestrutura econômica para o etiquetamento da pessoa que sofre as violações de direitos, neste caso, a vítima. ‘” (NICODEMOS, Carlos. Consultor Jurídico. 30 de julho de 2020)
Assim, podemos concluir que nosso Código Penal Brasileiro está constantemente fazendo alterações sutis em leis que criminalizam o tráfico humano ao mesmo tempo em que tentam moldar meios de proteção a vítima eficiente ao passo em que essa rede criminal se expande.
Ao findar dessa pesquisa, podemos concluir que o tráfico humano é uma rede de crime silenciosa que fatura 30 bilhões de dólares anualmente tendo como principais vítimas: mulheres. Na América do Sul, existem cerca de 110 rotas nacionais e 131 rotas internacionais, contando com o fato de que 32 dessas rotas são para a Espanha, dados estes que foram apontados pela Pesquisa Nacional sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes (PESTRAF), a entrada de brasileiras traficadas para fins de exploração sexual em países em que a língua é neolatina da Europa se expande exponencialmente.
São dados assustadores que nos levam a refletir sobre nosso sistema legislativo brasileiro, haja vista que mesmo com tais mudanças sutis para a repressão do tráfico de humano e o escravismo contemporâneo sexual ao longo das décadas, a sensação de sempre estar em posição desvantajosa em relação aos criminosos. Mas não podemos simplesmente culpar nossas leis e sim considerar o que estaria levando essas jovens a se tornarem alvo fáceis e vítimas por fim: seria o sistema patriarcal opressor que sempre estereotipou mulheres como exóticas e sensuais? Que as coloca desde os primórdios em posição inferior ao sexo oposto? A resposta da perspectiva feminista é de afirmativa.
Ao citar a antropóloga Gayle Rubin e seu livro “Políticas do Sexo” durante a escrita, conseguimos pontuar vários fatores que provêm da cultura machista enraizada que perdura até os dias atuais: a visão errônea de que mulheres são submissas, objetos maleáveis e qualquer um do sexo oposto pode usufruir de seus privilégios socialmente aceitos para praticar a violência de gênero. O pensamento retrocesso vanguardista continuará sendo um empecilho para criação de novas normas eficazes contra o tráfico de mulheres.
ALCOTT, Louisa May. Little Women. 1. ed. United Kingdom: Penguin Books, 1989. v. 1. ISBN 978-0140390698.
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Graduanda em Direito pela Universidade Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, LUCIMARIA DO. O tráfico de mulheres e o escravismo sexual contemporâneo no Brasil: uma análise da perspectiva jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jan 2023, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60769/o-trfico-de-mulheres-e-o-escravismo-sexual-contemporneo-no-brasil-uma-anlise-da-perspectiva-jurdica. Acesso em: 26 dez 2024.
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