DIEGO AVELINO MILHOMENS NOGUEIRA[1]
(Orientador)
RESUMO: O presente artigo visa expor algumas reflexões oriundas da obra literária, 1984 do escritor George Orwell, de maneira a contrastar o romance com a sociedade brasileira no que tange sobre as formas de vigilância por parte do Estado, com respeito à violação da privacidade de dados pessoais, propagação de notícias através das mídias sociais e seu poder de influência. Sabe-se, que não há vida digna se o indivíduo não pode manifestar seus desejos, convicções e é claro se não possui sua privacidade preservada. A metodologia utilizada nesta pesquisa é uma abordagem valorativa de caráter bibliográfico em conjunto com o comparativo e dedutivo, sendo o próprio livro ilustrado, através da abordagem das monitorações realizadas pelas “teletelas” que é uma tecnologia de telecomunicação bidirecional descrita na obra. Por fim, importa demonstrar que o intuito desta pesquisa é comparar suas estruturas de poder e controle midiático presentes na distopia de George Orwell valendo-se da Constituição Federal e Código Civil.
Palavras chaves: Privacidade. Estado. Obra. George Orwell.
ABSTRACT: This article aims to expose some reflections from the literary work, 1984, by the writer George Orwell, in order to contrast the novel with Brazilian society regarding the forms of surveillance by the State, with respect to the violation of data privacy. personal information, propagation of news through social media and its power of influence. It is known that there is no dignified life if the individual cannot express their desires, convictions and, of course, if their privacy is not preserved. The methodology used in this research is an evaluative approach of a bibliographic character together with the comparative and deductive, being the illustrated book itself, through the approach of the monitoring carried out by the "teletelas" which is a bidirectional telecommunication technology described in the work. Finally, it is important to demonstrate that the purpose of this research is to compare their structures of power and media control present in George Orwell's dystopia using the Federal Constitution and Civil Code.
Keywords: Privacy. State. Constructions. George Orwell
Sumário: 1. Introdução; 2. Estado x Grande Irmão; 2.1. Ministério do Amor x Jurisdição Constitucional; 3. 2+2= 5; 4. O Grande Irmão está de olho em você; Considerações finais; Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa advém das análises e reflexões sobre o livro 1984, que foi publicado em 1949 e tem por escritor o inglês Eric Arthur Blair (1903-1950), cujo se utilizava do pseudônimo de George Orwell. O livro é uma distopia e desenrola-se um superestado denominado Oceania que está sempre em guerra com outros três continentes. O enredo da obra se desenvolve por meio dos relatos do personagem Winston, que mora em uma cidade que já foi chamada de Londres e que é palco de uma sociedade totalmente alienada governada por um regime totalitário de um Partido que é o único órgão político atuante.
O Partido descrito na obra é liderado por uma figura intitulada Grande Irmão (“Big Brother”) que espia a rotina e as relações interpessoais dos cidadãos. A vigilância ocorre por um instrumento descrito como “teletelas” que existem em todas as casas, elas se assemelham a placas metálicas retangulares e são embutidas nas paredes, que possuem a função de enviar imagens de propaganda para os telespectadores e captar tudo o que eles estivessem fazendo, até mesmo um simples ruído. Ademais, existiam microfones ocultos nas ruas e pequenos helicópteros (drones) que filmavam dentro das casas, ou seja, não havia privacidade. As pessoas que não obedeciam às ideologias do Partido eram entregues à “Polícia do Pensamento” cuja função era descobrir e punir o crime de pensamento.
As principais organizações governamentais do livro são divididas em quatro, o Ministério da Verdade, que é responsável pelas notícias e entretenimento (departamento onde o personagem Winston labora modificando notícias, dados, livros antigos conforme a vontade e verdade do Partido); o Ministério da Paz que é responsável pela guerra; o Ministério do Amor que aplica as leis e zela pela ordem; e o Ministério da Pujança, que administra as questões referentes à economia. Haviam diversos cartazes espalhados pela cidade com a frase “O Grande Irmão zela por ti”, além de outros três lemas: “Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força´´. Percebe-se, aqui, um regime extremamente manipulador e totalitário onde não existe democracia e liberdade visto que o Partido procura exercer controle total sobre a vida das pessoas, eliminando totalmente a privacidade delas.
É de suma importância mencionar que no período hodierno existem regimes políticos autoritários como o mencionado no livro, pode-se exemplificar China, Cuba, Oriente Médio e Coréia do Norte. A semelhança entre o regime adotado no livro e o governo da Coréia do Norte é alarmante, pois lá em cada domicílio e escritório, há uma caixa de som na parede que ao tocar a rádio estatal, desperta todos com um sinal coletivo, a comida e roupa vêm do governo, às 21 horas, todos já estão em casa e ninguém tem acesso total à internet. O Partido Comunista da China também sustenta um rígido controle da internet, os conteúdos são restritos e os sites de busca só retornam com resultados permitidos pelos censores.
Nesse sentido, este trabalho torna-se relevante, pois busca analisar dois contextos, o fictício descrito no livro e o real, a qual terá como base a sociedade brasileira. Esta pesquisa tem o pretexto de observar o controle, manipulação e poder do Estado, pois a fiscalização constante e a distorção de dados são recursos de dominação que ainda perduram nos dias atuais. Michel Foucault um filósofo contemporâneo, acreditava ser possível a luta contra padrões de pensamentos e comportamentos, mas impossível se livrar das relações de poder, para concretizar este pensamento ele utilizou de três técnicas, que são elas: do discurso, do poder e da subjetivação, já John Stuart (2018) afirma que a liberdade individual é uma proteção individual contra a tirania dos governantes.
Nessa vertente, Enio Waldir alega:
Ao vencer a alienação o indivíduo se sente emancipado: é o homem vivendo sua dimensão humana em plenitude sem coação ou coerção, aprimorando cada vez mais os aspectos da igualdade. (SILVA, 2021, p.108)
O cidadão usufruir de sua liberdade com plenitude é mais que uma evolução natural das ações dos homens ou regalias, mas sim um direito primordial como preconiza o Pacto de San José da Costa Rica que foi criado em 1978 e busca estabelecer os direitos fundamentais da pessoa humana. Trazendo a temática para a contemporaneidade brasileira, notam-se vários direitos estabelecidos na Constituição Federal, como os princípios da Liberdade de Expressão, Manifestação do Pensamento e da Liberdade de Informação que são de suma relevância, pois são oriundos do final do período da ditadura militar. Esses princípios preservaram as bases do Estado Democrático de Direito, ofereceram à garantia de direitos e liberdades que estão ligados diretamente às vidas privadas dos cidadãos brasileiros, as suas honras e imagens.
Quiroga Lavié (1993) afirma que os direitos fundamentais nascem para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela Constituição, sem, contudo, desconhecerem a subordinação do indivíduo ao Estado, como garantia de que eles operem dentro dos limites impostos pelo direito.
Além disso, este artigo também visa abordar sobre as designadas “fake news” que são notícias com conteúdo propositalmente falso, geralmente usado com interesses escusos, como benefícios econômicos ou políticos.
Conforme artigo sobre o tema:
Com efeito, as fake news correspondem a uma espécie de “imprensa marrom” (ou yellow journalism), deliberadamente veiculando conteúdos falsos, sempre com a intenção de obter algum tipo de vantagem, seja financeira (mediante receitas oriundas de anúncios), política ou eleitoral (CARVALHO; KANFER, 2018).
No cenário atual, as fake news são propagadas principalmente pelas mídias sociais, e não somente pelo Estado como é retratado no livro. No entanto, as notícias inverídicas passaram a ser vistas pela população brasileira como as principais armas de fraude do processo político e uma ameaça à democracia. Contudo, a legislação brasileira ainda não tipifica esse crime, o que torna essa pesquisa ainda mais relevante.
2 ESTADO X GRANDE IRMÃO
É sabido que estamos sendo vigiados constantemente através dos nossos instrumentos de navegação como “computadores e celulares”, seja em nossas interações escritas, visualizadas, filmadas ou faladas. “O Grande Irmão está Observando Você”, é a frase mais utilizada na narrativa de “1984”, e desde a publicação do livro, o termo “Big Brother” adquiriu novos significados, na atualidade pois o termo vem sendo usado como sinônimo de abuso de poder por parte do governo, especialmente em relação aos direitos civis, e também descrever tentativas de aumentar a vigilância sobre os cidadãos. O Grande Irmão, descrito no livro, é um líder que todos devem idolatrar, obedecer e respeitar, sem nenhum tipo de questionamento e esta figura política pode ser associada como o Estado, com o seu poder e influência na opinião pública. Vejamos um trecho em que a influência do Partido fica cristalina.
Não havia um só pensamento que não fosse um lema e nem uma única cretinice, absolutamente nenhuma, que ela não fosse capaz de engolir se o Partido oferecesse. (Orwell. 2021, p.76)
Neste sentido, Hannah Arendt (2009) descreveu que Adolf Hitler, um dos líderes mais carrascos existentes, utilizou-se do fascínio e influência política sobre sua figura mitológica para conquistar o apoio nas urnas que o levou ao cargo de Chanceler na Alemanha com facilidade. Após isso ele convenceu os Alemães a realizarem e deixarem realizar as maiores atrocidades da história, como a Eutanásia Viva de 1939, Leis de Nuremberg, Massacre de Babi Yar e a criação dos Campos de Concentração local em que os judeus além de executados também tinham sua mão de obra explorada ao máximo.
Pode-se notar que a influência de um governante acompanhada com estratégia política de dominação consegue se sobrepor à racionalidade com grande simplicidade. Nesse contexto, Celso Lafer (1988) explica que o Direito Público no Brasil está ligado à Democracia, já que essa se caracteriza pela publicidade e visibilidade do poder, elementos importantes para permitir o controle, pelos governados, na conduta dos governantes. Para que esse controle nas condutas dos governantes seja concretizado, ou seja, para que os cidadãos participem da esfera pública de forma direta, o Direito à informação e uma liberdade democrática é de suma importância. Distintivamente da realidade de 1984, onde tudo que existe é a submissão da inteligência e o autoritarismo, levando seus cidadãos a um estado de confusão mental. A pessoa comum da obra encontra-se em um ciclo de dopamina alta, consumindo cotidianamente o Gim que o partido oferece sem acesso a qualquer informação que as leve a pensar sobre a própria vida e sem nenhuma participação política.
Dessa maneira, de forma paradoxal, o Brasil tem seu regime de Estado especificado no art. 1 da Constituição Federal como Estado Democrático de Direito, já o art. 60, § 4, CF, preconiza sobre o que não pode ser alterado na Constituição, sendo elas, “a forma federativa de Estado, ou seja, não poderá ser alterado o modelo de Estado estabelecido na Constituição; o voto direto, secreto, universal e periódico, visa o direito da população estabelecer as pessoas que devem gerir o governo; a separação dos poderes, garante que o poder estatal não esteja na mão de apenas uma pessoa, assim impossibilitando autoritarismo e perseguições; os direitos e garantias fundamentais, que por sua vez é o pilar da democracia no Brasil.
2.1 MINISTÉRIO DO AMOR X JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
O Ministério do Amor descrito no livro era responsável por aplicar a lei e manter a ordem. O título denota uma ideia de paz e apoio por parte do Estado mas na verdade é só uma metáfora uma vez que este departamento lida diretamente com quem se vira contra o Partido, julgando, torturando e fazendo constantes lavagens cerebrais. O Ministério do Amor era o mais temido, vejamos:
O Ministério do Amor era o mais temido. Nele não havia nenhuma janela. Winston nunca tinha estado lá dentro, nem a meio quilômetro de distância. Era um lugar de acesso impossível. (Orwell. 2021, p.12)
Seguindo essa linha, qualquer conduta que fosse discordante ao Partido deveria ser combatida, sendo algumas penalizadas até mesmo com a morte. Não existia lei, nem Constituição, apenas as ideologias inquestionáveis do Partido e o Grande Irmão.
Na maioria dos casos não havia julgamento nem notícia da prisão. As pessoas simplesmente desapareciam no breu. Seu nome era removido dos documentos, todos os registros eram eliminados, sua antiga existência era negada e, depois, esquecida. Você era abolido, aniquilado. (Orwell. 2021, p. 31)
Neste ínterim, analisando o contexto do Estado Democrático de Direito no Brasil, percebe-se a figura do Juiz de Direito que agirá segundo os preceitos da lei, constitucional e ordinária, por atender aos respectivos requisitos de habilitação, proferindo as decisões nas demandas e aplicando as penalidades necessárias. Os magistrados precisam ler o texto da Constituição brasileira e saber explorar as tensões entre o texto e o contexto, para evitar o contraste entre o ideal e o real, entre a inclusão e a exclusão, e de forma alguma agir em contrapartida ao estabelecido na legislação respeitando o devido processo legal e o direito do contraditório.
Dessa forma, à jurisdição constitucional brasileira, na figura do Supremo Tribunal Federal, compete a satisfação de interesses jurídicos e socialmente relevantes. No exercício de sua função jurídica e política, o Supremo Tribunal Federal tem o dever de ser o guardião de nossa Constituição, assegurando o seu fiel cumprimento e os valores políticos dela depreendidos. Desse modo, o Poder Judiciário deve estar aberto para uma nova forma de atuação, que invariavelmente estará revestida de uma dimensão política e social que poderá nos levar à superação de processos de total descrença nas normas constitucionais, possibilitando a inclusão dos cidadãos nos discursos jurídicos.
Posto isto, identifica-se que há a atuação do Estado brasileiro na vida de seus cidadãos. Esta atuação acontece porque o Estado precisa intervir sempre em defesa da coletividade, como também do indivíduo, devido ao Princípio da Supremacia do Interesse Público. Então, como mencionado antes, admite-se que o Estado brasileiro interfira para consecução dos ditames constitucionais, e o fará por meio das normas constitucionais, dado que existe um limite da intervenção estatal em virtude da autonomia do direito de liberdade das pessoas, diferentemente do que acontece na distopia 1984, pois curiosamente nessa sociedade distópica nada era ilegal, justamente por não haver leis.
Por outro lado, o partido na obra literária sempre induz as pessoas a pensarem coisas contraditórias, para que dessa forma possa controlar suas mentes e subordiná-las ao regime. Como será abordado no próximo tópico, excitar o pensamento absurdo é uma eficaz forma de asseverar o controle. Desse modo, na concepção de Blackburn (1997) o poder é a capacidade de se mobilizar forças econômicas, sociais ou políticas para obter certo resultado. Mediante o exposto, conclui-se que o resultado esperado pelo governo autoritário do livro é alinhar qualquer conduta e pensamento contrário ao regime, a crime, que serão punidos pelo Ministério do Amor, como aconteceu com o personagem Winston que sofreu tortura e lavagem cerebral durante meses por ter ido contra as ideologias do partido.
3. 2+2= 5
No que tange a atualidades, pode-se afirmar que as fakes news ganharam uma imensa repercussão nas mídias sociais, em especial em relação ao período eleitoral brasileiro no ano de 2022, assim como ocorreu na campanha presidencial norte-americana de 2016, o que se equipara às propagandas governamentais de 1984. De acordo com Allcott e Gentzkow, fake news são “notícias que são intencionalmente falsas, que podem confundir seus leitores” (2017, p. 213).
Na obra literária, as notícias, dados históricos e estatísticos são manipuladas cotidianamente para que tudo parecesse apropriado, ainda que a situação estivesse intolerável, tendo como lema ´´Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado´´. Dessa maneira, a realidade é confeccionada e editada pelo Partido.
A realidade existe apenas na mente do Partido, que é coletiva e imortal. Tudo que o Partido reconhece como verdade é a verdade. É impossível ver a realidade se não for pelos olhos do Partido. É esse o fato que você precisa reaprender, Winston. (ORWELL, 2009, p. 292)
Portanto, o Partido monitora todos os meios de informação, regulando e reescrevendo o conteúdo de todos os jornais e demais fontes históricas para seus próprios fins. O Partido não permite que os indivíduos preservem recordações de seu passado, como fotografias, documentos ou anotações, produzindo um buraco na memória de todos. Como consequência, as memórias das pessoas tornam-se confusas e imprecisas, e os cidadãos convertem-se em acreditar e aceitar em tudo que o partido propaga. Identifica-se que uma das principais estratégias de manipulação da opinião pública adotada pelo é a Janela de Overton.
Desse modo, o Grande Irmão monitora seus subalternos por meio de dados inexistentes e incitação psicológica planejados estrategicamente para assoberbar a capacidade da mente de um pensamento independente e questionador. Nessa toada, ao analisar o contexto histórico ao que concerne sobre manipulação pública, Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha Nazista escreveu a seguinte frase ´´Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade´´ pois os nazistas previam que, para alterar a aprovação das pessoas, seria fundamental atuar no campo das ideologias e por isso foi elaborado o Ministério da Propaganda.
O personagem central do livro, Winston Smith, trabalhava no Ministério da Verdade e era um dos incumbidos de redizer o passado, apagando todas as referências dos fatos históricos através da inserção de novas informações, reparando metas de produtividade econômica governamentais não atingidas, para que fossem divulgadas como bem-sucedidas.
Assim sendo, se uma narrativa passa a ser disseminada em uma grande velocidade, de uma forma constante e repetitiva, logo pode chegar a escala nacional, sendo aceita pelos telespectadores com uma sensação de familiaridade. Consequentemente, ao se disseminar notícias falsas algumas ferramentas são utilizadas para amplificar o engajamento e impacto nas pessoas. Assim, essas notícias normalmente têm um cunho sensacionalista, com manchetes de palavras fortes e dramáticas, a fim de atrair a atenção, insatisfação e indignação do receptor.
Paralelamente na distopia de Orwell, as fake news infringem dados reais e entram em conflitos de direitos todos os dias, pois fatos são modificados com intuito de instigar os cidadãos ao erro. Contudo, no que tange a esta temática no Brasil, mesmo o direito brasileiro não possuindo uma tipificação penal, quem comete a disseminação de notícias ilusórias pode ser responsabilizado por calúnia, difamação e/ou injúria conforme artigos 138, 139 e 140 214 do Código Penal brasileiro. Ademais, algumas redes sociais como Facebook e o WhatsApp também possuem medidas para o combate às fake news.
Averigua-se que as pessoas que viviam sob o comando do Grande Irmão não podiam explorar a própria mente ou até mesmo questionar. No livro, o governo sabe que as notícias falsas têm uma amplitude superior às verdadeiras e usa isso como um meio legal de manipular os cidadãos. Assim, constata-se que um regime ditatorial que aproveita-se da fraude de dados por meio da mídia e história é totalmente prejudicial, pois descaracteriza a forma como as pessoas compreendem a realidade, abstendo-as de sua habilidade de constatar o monitoramento imposto pela política totalitária, de tal modo que as pessoas fiquem desordenadas e não confiáveis, acreditando em tudo o Estado julga certo e conveniente.
4 O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ
Ao analisar-se 1984, nota-se que o Grande Irmão é uma fonte de terror e simultaneamente de salvação. Esse título de irmão mais velho conquistou sua posição que exige extrema obediência e devoção de todos. "Ele está de olho em você", ele condena, mas também protege. Esta figura fictícia é manuseada pelo partido como forma de proteção e patrulhamento que refere-se a um poder que nunca muda de mãos. Neste sentido, Foucault pontua que:
O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um "chefe", é o aparelho inteiro que produz "poder" e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. (FOUCAULT, 1987, p. 148)
Dessa forma, no panóptico “1984”, o Partido utilizava estratégias para ter controle social sob o domínio do Grande Irmão por meio da eliminação da privacidade e intimidade dos cidadãos. Como já exposto, a ferramenta utilizada para efetivar a vigilância, eram as teletelas que eram ligadas sem interrupção nas residências, que, enquanto divulgavam estatísticas governamentais, conseguiam captar imagens e sons daqueles que residiam no ambiente. É relevante expor que toda essa fiscalização governamental era totalmente legal, pois fazia parte do cuidado do Grande Irmão. Analisando-se a temática e comparando-a com a legislação brasileira em vigor, nota-se várias discrepâncias.
A Constituição Federal de 1988, visa uma ordem constitucional direcionada ao desenvolvimento da personalidade humana com o intuito de garantir as liberdades dos indivíduos. Com esse escopo, em seu texto constitucional é garantida a dignidade da pessoa humana com base no Estado Democrático de Direito, preconizado no artigo 1, sucedido dos direitos e garantias fundamentais. Diante dos direitos fundamentais, tem-se a previsão da manutenção da vida privada, no artigo 5º, X, que é como uma premissa para o exercício das demais garantias, em outras palavras, sem a privacidade constitucionalmente prevista, poderia se tornar impossível gozar dos outros direitos individuais. Ademais, o direito à vida privada é reconhecido também no art. 21 do Código Civil: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Pode-se afirmar que tanto a intimidade e privacidade são direitos extremamente subjetivos e sensíveis, pertinentes à pessoa física e, em muitos casos, aplicável também à pessoa jurídica na atualidade brasileira. Contudo, em 1984 apesar de não dispor nenhuma lei ou regra específica, os habitantes, exemplificados por Winston, possuem noção do que é almejado de suas condutas e aparência, distintivamente do que ocorre no Brasil. Todavia o Estado no Brasil detém algumas informações e dados de seus cidadãos, pode-se exemplificar a renda das pessoas por meio do controle das declarações de renda apresentada, o score e acesso às atividades eleitorais. A diferença é que existe um limite de acesso aos dados e informações dos brasileiros, e esse extremo é necessário porque a Democracia preserva a pessoa humana, resguardando, portanto, sua intimidade.
A história descrita no livro 1984 não está distante do período hodierno, pois no contexto atual as telas não só divulgam mensagens, como também podem absorver nossos dados e informações. Embora exista a sensação, ocasionada por tantas telas, de constante vigilância que é compartilhada na perspectiva distópica, encontra-se uma grande diferença entre a ficção e a realidade. Nos dias atuais, todo o fornecimento de dados é oferecido de livre vontade das pessoas através das mídias sociais, saindo o Grande Irmão do comando e colocando cada um de nós no controle.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante o exposto, o referido trabalho analisou a obra literária 1984 em comparação a legislação vigente brasileira, no que tange a manipulação de dados (fake news) e a privacidade das pessoas. No livro, Orwell gerou um estado ditatorial, muito semelhante com o período da ditadura militar brasileira, divergindo a distopia da referida época citada, por conta do uso exagerado de tecnologias para concretizar a supervisão e controle sobre a vida dos cidadãos. O Grande Irmão era a fonte do medo e paralelamente a fonte da provisão de todos. Através do discurso que trabalhava em prol do bem coletivo, o Estado tinha em suas mãos o controle da vida de todos.
Dessa maneira, como já foi mencionado, o direito à privacidade e intimidade no Brasil, são direitos fundamentais e irrenunciáveis, divergindo-se da distopia em que a vida íntima não existe de nenhuma forma. Além do mais, ao decorrer da pesquisa percebeu-se que o Partido utilizava-se de fake news para manipular as pessoas. O exemplo dado na distopia, como também foi citado em um de nossos tópicos, é 2+2=5. No livro, as pessoas não questionam mais as leis universais da matemática, que tornam esse cálculo impossível, porque se o Governo ditou, que o resultado da adição é 5, está dito. Não importa o que é dito, importa quem disse. Nota-se com clareza o que um regime governamental totalitarista pode fazer.
Todavia, ainda não possui nenhum tipo penal que descreva o que é fake news, ou seja, não há no Brasil crime denominado fake news, apenas alguns tipos penais que comprimem condutas sobre notícia falsa há muitos anos no Código Penal. Pode-se exemplificar os crimes contra a honra. Portanto, certifica-se que tamanha invasão de privacidade e manipulação de dados como a da obra de Orwell impossibilita o pensamento livre dos cidadãos e obstaculiza a capacidade de alguém questionar o que é promulgado pela ideologia dominante, fazendo-os assim, alvos fáceis de manipulação e controle.
Nesse vértice, o controle exacerbado no romance 1984 desnuda os perigos a que uma população inteira está exposta quando a manipulação opera em prol de políticas totalitárias que excluem a intimidade e o livre pensamento de seus cidadãos.
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[1] Procurador do Município de Gurupi-TO. Advogado. Pós-graduado em Advocacia Pública Municipal, Licitações e Contratos Públicos Municipais. Vice-Presidente da Comissão de Valorização das Procuradorias Municipais da OAB/TO. Professor de Direito Administrativo e Metodologia da Pesquisa Jurídica II na Universidade Unirg de Gurupi.
Graduanda em Direito pela Universidade de Gurupi - UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BOTELHO, Brenda Marinho. Efeitos da vigilância governamental e manipulação pública sob a ótica da obra literária 1984 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 fev 2023, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60978/efeitos-da-vigilncia-governamental-e-manipulao-pblica-sob-a-tica-da-obra-literria-1984. Acesso em: 23 dez 2024.
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