RESUMO: A finalidade deste trabalho é demonstrar a instituição do Juiz das Garantias realizada pela Lei nº 13.964/2019 que incluiu no Código de Processo Penal a figura de um órgão jurisdicional com competência para a função de garantidor dos direitos fundamentais e controle da legalidade da fase investigatória criminal, de sorte que tal juiz estará impedido de funcionar na fase subsequente do processo penal, na medida em que a sua atuação compreende a investigação criminal até o recebimento da denúncia, após a competência será do juiz da instrução e julgamento, realizando, assim, uma divisão funcional da competência no processo penal. Cuida-se de inovação legislativa que visa preservar a imparcialidade do julgador, porquanto será tratado a figura do Juiz das Garantias sob uma visão garantista prevista na Constituição Federal e Convenção Americana de Direitos Humanos, tendo em vista a adoção do sistema acusatório, o qual objetiva evitar a possível contaminação subjetiva do magistrado que tenha atuado na fase de investigação criminal e, mais adiante seja o responsável pelo julgamento do caso penal. Outrossim, será buscado em linhas gerias abordar a visão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da medida liminar da ação direta de inconstitucionalidade que suspendeu sine die a alteração legislativa supramencionada.
Palavras-Chaves: Juiz das Garantias – Imparcialidade – Sistema Acusatório- Visão do Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT: The purpose of this paper is to demonstrate the institution of the Guarantee Judge carried out by Law nº 13.964/2019, which included in the Code of Criminal Procedure the figure of a court with jurisdiction to act as guarantor of fundamental rights in the investigative phase of criminal prosecution, lucky that such a judge will be prevented from functioning in the subsequent phase of the criminal proceeding, insofar as his performance includes the criminal investigation and receipt of the complaint, after the competence will be the judge of the instruction and judgment, thus performing a functional division competence in criminal proceedings. It takes care of legislative innovation that aims to preserve the impartiality of the judge, so the figure of the Guarantee Judge will be treated under a guarantor view provided for in the Federal Constitution and the American Convention on Human Rights, with a view to the adoption of the accusatory system, which aims to avoid the possible subjective contamination of the magistrate who has acted in the criminal investigation phase and, later on, be responsible for the judgment of the criminal case. Furthermore, it will be sought in general lines to address the view of the Supreme Federal in the judgment of the preliminary injunction of the direct action of unconstitutionality that suspended the aforementioned legislative amendment sine die.
Key-words: Guarantee Judge - Impartiality - Accusatory System - Supreme Federal Court view
SUMÁRIO: 1. O SISTEMA ACUSATÓRIO À LUZ DA CRFB 1988. 2. JUIZ DAS GARANTIAS. 3. NORMATIZAÇÃO DA IMPARCIALIDADE. 4. CONTAMINAÇÃO SUBJETIVA DO JULGADOR E A TEORIA DA DISSONÂNCIA COGNITIVA.5. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
1. O SISTEMA ACUSATÓRIO À LUZ DA CRFB
De início, consigne-se que a doutrina classifica os sistemas processuais ante a sua estrutura, a saber: inquisitivo, acusatório e misto, sendo certo que o escopo do presente artigo gira em torno do sistema acusatório, no entanto, necessário se faz realizar algumas digressões sobre todos os sistemas mencionados para o bom desenvolvimento do que será exposto adiante.
Pois bem. O sistema inquisitivo consiste num modelo que as funções de acusar, defender e julgar encontram-se nas mãos de uma única pessoa, caracterizando, assim, a figura de um juiz acusador ou inquisidor como também é conhecido, vê-se, pois, que tal modelo remonta a períodos na história civilizatória onde os direitos e garantias dos indivíduos, inclusive o devido processo legal não eram observados.
Outrossim, o modelo inquisitivo autoriza o juiz iniciar o processo penal ex officio, ou seja, não há a necessidade de pedido realizado por órgão público ou pelo ofendido para o desenvolvimento regular de um processo crime, ademais, o juiz possui ampla iniciativa probatória, podendo determinar a produção de provas de ofício, sem que, contudo, ocorra um requerimento por parte da acusação ou defesa.
Observa-se, ainda, que tal sistema ainda trabalha com a possibilidade de descoberta através do processo de uma verdade real, absoluta, em razão disso confere ao juiz amplos poderes instrutórios, possibilitando realizar uma completa investigação sobre o fato delituoso no afã de atingir esta meta inalcançável.
Cabe relembrar que, o indivíduo não era tratado como sujeito de direitos, mas sim como objeto na busca dessa possível verdade material, admitindo, pois, a flexibilização dos direitos e o uso da tortura, visando a confissão do acusado como forma de obtenção de prova.
Assim sendo, o sistema inquisitivo viola os direitos e garantias individuais conquistados pelos indivíduos ao longo da história, demonstrando uma clara afronta a imparcialidade que deve nortear o julgador, visto que não há um distanciamento entre os atores processuais, bem como sobre a gestão da prova.
Por outro flanco, cabe trazer à baila a definição do magistério doutrinário de Geraldo Prado sobre o sistema acusatório, senão vejamos:
Caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial.[1]
Exsurge a lição do referido autor que o processo penal se constitui de um actum trium personarum, isto é, acusação e defesa como sujeitos processuais que atuam no processo de maneira parcial, sendo certo que o juiz figura como um terceiro desinteressado da relação jurídico processual, assim, preservando a imparcialidade do julgador.
Não obstante, caracteriza-se o sistema acusatório com a separação das funções de acusar e julgar, segundo o comando constitucional (art. 129, I, CF) incumbe ao Ministério Público exercer a ação penal pública, de modo que a legitimidade processual para estar em juízo exercendo a pretensão punitiva e executória em nome do Estado fora atribuída a este órgão autônomo e independente.
Corroborando o atual modelo adotado pelo texto constitucional, utilizaremos os dizeres do mestre italiano Ferrajoli a despeito das características do sistema acusatório, vejamos:
A separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a disparidade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.[2]
Advirta-se que, o Decreto-Lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) fora editado no período ditatorial como é de sabença geral, sendo certo que as alterações legislativas promovidas ao longo do tempo não foram suficientes para compatibilizar o sistema processual penal a Constituição de 1988, embora tramite desde os idos de 2009 o Projeto de Lei do Senado 156/2009 sobre um novo Código de Processo Penal.
Vale trazer à colação a redação original do art. 4° e 162 do Projeto de Lei do Senado 156/2009, o qual versa sobre a estrutura acusatória, bem como a despeito da iniciativa probatória atribuída as partes, senão vejamos:
Art. 4º O processo terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Art. 162. As provas serão propostas pelas partes.
Parágrafo único. Será facultado ao juiz, antes de proferir a sentença, esclarecer dúvida sobre a prova produzida, observado o disposto no art. 4º
Em razão disso a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) incluiu o seguinte dispositivo legal alusivo ao sistema processual, in verbis:
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.305) [3]
Depreende-se que o legislador tão somente incluiu na legislação a sistemática jurídica processual prevista no Projeto de Lei do Senado 156/2009 como mencionado alhures, em que pese a medida liminar do Supremo Tribunal Federal nas ADINs nº 6298, 6299, 6300 e 6305 tenha suspendido o dispositivo supramencionado.
O fato é que o legislador andou bem ao retirar do Juiz a iniciativa probatória, posto que cabe ao Ministério Público tal mister, reforçando essa linha intelectiva tomamos por base os ensinamentos do eminente processualista Renato Brasileiro, ipsis litteris:
Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tornou privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública, a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio), e, conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de ofício na fase investigatória e na fase processual, atribuição esta que deve ficar a cargo das autoridades policiais, do Ministério Público e, no curso da instrução processual penal, das partes.[4]
Por último, passo a examinar o sistema processual misto ou francês, o qual segundo entendimento prevalecente a época da entrada em vigor do Código de Processo Penal era o modelo adotado no Brasil, assim, prossigo na citação do autor utilizado em linhas anteriores, veja-se:
É chamado de sistema misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, destituída de publicidade e ampla defesa, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, objetivando-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade, a oralidade, a isonomia processual e o direito de manifestar-se a defesa depois da acusação[5]
2. JUIZ DAS GARANTIAS
Primeiramente, antes de iniciar os comentários sobre alteração promovida pelo tão comentado Pacote Anticrime, necessário se faz mencionar que a introdução do juiz das garantias na legislação pátria já constava da redação original do Projeto de Lei do Senado 156/2009 sobre o novo Código de Processo Penal, notadamente no Capítulo II artigos 15 a 18 do citado projeto.
Com efeito, a Lei nº 13.964/2019 com redação muito semelhante ao projeto de lei mencionado anteriormente incluiu no Código de Processo Penal (art. 3º-B, CPP) a figura de um órgão jurisdicional com competência para a função de garantidor dos direitos fundamentais e controle da legalidade da fase investigatória criminal, de sorte que tal juiz estará impedido de funcionar na fase subsequente do processo penal.
Cabe trazer à baila o artigo 3°-B do Código de Processo Penal visando uma análise mais detida do novel juiz das garantias, in verbis:
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.299) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305)
I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XI - decidir sobre os requerimentos de: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
c) busca e apreensão domiciliar; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
d) acesso a informações sigilosas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
§ 1º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
§ 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)[6]
Vê-se, pois, que o Juiz das Garantias funciona como um garantidor das regras do Jogo ante as inúmeras atribuições exemplificadas prevista no artigo 3°-B do Código de Processo Penal, sendo que a iniciativa probatória incumbe as partes do processo (art. 3º-A, CPP), não devendo o magistrado atuar de ofício para determinar medidas cautelares de natureza pessoal, real e probatória, seja na fase de investigação criminal, ou na fase de instrução criminal, visando preservar a imparcialidade que deve nortear o julgador.
Destaque-se que a atuação do Juiz das Garantias compreende a investigação criminal até o recebimento da denúncia, após a competência será do juiz da instrução e julgamento, realizando, assim, uma divisão funcional da competência no processo penal.
Tal medida mostra-se muito salutar para adoção de um sistema verdadeiramente acusatório, posto que visa evitar a contaminação subjetiva que pode incorrer o Juiz que atuou na fase de investigação criminal, o qual muitas vezes determina medidas de natureza cautelar em desfavor do acusado, como busca e apreensão, prisão de provisória, interceptação telefônica, assim como mantém contato direto com as provas produzidas durante esta fase procedimental.
Não obstante, os elementos que são produzidos em sede investigação preliminar, quer seja no bojo de inquérito policial e demais procedimentos a cargo do Delegado de Polícia, quer seja no âmbito do Ministério Público através do procedimento investigatório criminal, fato é que há pouca influência da defesa, tendo em vista a mitigação do princípio do contraditório e ampla defesa ante o caráter discricionário que norteia os referidos procedimentos, como aceito de forma majoritária por parte dos Tribunais Pátrios.
Conclui-se, pois, que na prática fica difícil o juiz que tomou conhecimento do suposto fato criminoso e autoria delitiva, determinando por vezes medidas invasivas ao direito do acusado, acolhendo representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público, passe mais adiante adotar um comportamento diametralmente oposto ao que vinha decidindo, por isso a doutrina há muito vem trabalhando sobre o comprometimento da imparcialidade do juiz que irá julgar o caso penal.
3. NORMATIZAÇÃO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ
A imparcialidade encontra-se normatizada de maneira expressa na Convenção Americana de Direitos Humanos instrumento internacional que o Brasil é signatário, possuindo status normativo superior a legislação federal como decidido pelo Supremo Tribunal Federal no RE 466.343/SP, assim, consta no artigo 8.1, ipsis litteris:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. [7]
No entanto, a doutrina aduz que os tratados que versam sobre os direitos humanos mesmo que não aprovados com quórum qualificado das emendas constitucionais já possuem hierarquia constitucional integrando o bloco de constitucionalidade, tendo em vista o disposto no artigo 5°, § 2°, CRFB, o qual prevê a regra da não exclusão de outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados na constituição, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Nessa esteira, afirma Valério Mazzuolli sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos, senão vejamos:
Entender que os tratados ratificados anteriormente à reforma constitucional serão recepcionados como normas constitucionais, ao passo que os ratificados posteriormente valerão como normas infraconstitucionais, enquanto não aprovados pela maioria qualificada estabelecida pelo §3º do art. 5º, é prestigiar a incongruência. Em ambos os casos (ratificação anterior ou posterior à EC 45) o tratado terá status de norma constitucional por integrar o núcleo material do bloco de constitucionalidade [...] O tratado ratificado após a EC 45 não perde o status de norma materialmente constitucional que ele já tem em virtude do art. 5º, §2º, da Constituição. Apenas o que poderá ocorrer é ser ele aprovado com o quórum qualificado do art. 5º, §3º, e, a partir dessa aprovação, integrar formalmente o texto constitucional brasileiro (caso em que será, para além de materialmente constitucional, também formalmente constitucional).[8] (Grifo nosso)
Em que pese a Carta Política não disponha expressamente no seu texto, sustenta-se que tal princípio consta de maneira implícita na norma que veda o juízo ou tribunal de exceção previsto no artigo 5º, XXXVII, outrossim, na garantia de que o processo e a sentença sejam conduzidos por autoridade competente que sempre será determinada por regras estabelecidas anteriormente ao fato sob julgamento, com isso garantindo o princípio do devido processo legal, conforme se depreende do artigo 5º, LIII, CF.
Ademais, como destacado acima o fato é que a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê no seu texto de maneira expressa o princípio da imparcialidade do juiz, de sorte que a mudança legislativa realizada pela Lei nº 13.964/2019 no artigo 3°-A, CPP a despeito da estrutura acusatório, bem como no artigo 3°-B concernente ao Juiz das Garantias vão de encontro a principiologia adotada na Carta da República dando ao processo penal um caráter mais democrático, deixando de lado os dogmas do passado de viés autoritário.
Sendo assim, os argumentos utilizados no bojo das ADINs nº 6298, 6299, 6300 e 6305 para suspender sine die as alterações promovidas pelo Pacote Anticrime que incluiu a figura do Juiz das Garantias não deixaram de ser alvo de crítica de inúmeros juristas de relevo no cenário nacional, haja vista que a positivação visa atender a necessidade de um sistema processual livre da contaminação subjetiva que sofre o julgador desde a investigação criminal, afetando sobremaneira o princípio da imparcialidade.
Nessa linha intelectiva, cabe trazer os argumentos expendidos pelo eminente jurista Lenio Luiz Streck, vejamos:
Em que exatamente contraria a Constituição uma figura — o juiz das garantias — que materializa a própria principiologia processual-constitucional em âmbito criminal? Por que, como dizem os juízes-e membros-do-MP que contestam a inovação, "o legislador federal" teria ido "além da expedição de normas gerais, ao impor a observância imediata do 'Juiz das Garantias' no âmbito dos inquéritos policiais"?
Estamos em uma nova Era, então: do Neoconstitucionalismo, que tudo constitucionaliza e "pamprincipializa" (até a construção de ofurô em sacada pretende ser alçada a uma discussão de “constitucionalidade”, assim como o ruído produzido por igrejas depois das dez horas da noite), passamos ao Neo-Inconstitucionalismo. Sim, o Brasil inventa uma nova “teoria”: tudo agora é inconstitucional, formal e materialmente. Na verdade, trata-se apenas de uma inconstitucionalidade desejada. É inconstitucional o que desejo que seja.[9]
Desta feita, necessário se faz aguardar o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre as alterações promovidas pelo legislador que tão somente realizou uma adequação da legislação pátria ao texto constitucional, de sorte que a declaração de inconstitucionalidade caso ocorra no futuro pode representar um enorme retrocesso social na busca de um sistema realmente acusatório onde há imparcialidade dos julgadores.
4. CONTAMINAÇÃO SUBJETIVA DO JULGADOR E A TEORIA DA DISSONÂNCIA COGNITIVA
Pois bem. Feitas as devidas considerações, passaremos a examinar a imparcialidade do Juiz sob o viés subjetivo e objetivo das ciências comportamentais, notadamente da teoria da dissonância cognitiva.
Cuida-se a “Theory of Cognitive Dissonance” de Leon Festinger, um estudo da psicologia acerca da cognição e do comportamento humano: está fundamentada na ideia de que seres racionais tendem a sempre buscar uma zona de conforto, um estado de coerência entre suas opiniões (decisões, atitudes), daí por que passam a desenvolver um processo voluntário ou involuntário, porém inevitável, de modo a evitar um sentimento incômodo de dissonância cognitiva.[10]
Nesse sentido, Alexandre Morais da Rosa em artigo escrito para a coluna do Consultor Jurídico explica os aspectos práticos na busca da imparcialidade à luz da teoria da dissonância cognitiva, veja-se:
O desafio da cognição judicial imparcial em face da interação processual precisa dialogar com a noção de dissonância cognitiva. Todos nós buscamos internamente manter a coerência entre comportamentos, opiniões, crenças e atitudes, a saber, a cada nova informação advinda do exterior (informação acrescida), precisamos atualizar o nosso conhecimento e, para tanto, realizamos o processo (in)voluntário de manutenção/modificação das nossas premissas do mapa mental.
A cognição e o comportamento humano estão fortemente vinculados, razão pela qual será necessário (re)organizar mentalmente e justificar a coerência interna. As informações novas podem confirmar ou não as nossas premissas. Se buscarmos manter a coerência interna, tenderemos a mitigar a dissonância com a modificação do comportamento, a invalidação do argumento novo, o acolhimento da nova informação, mas com a desqualificação (da fonte/conteúdo) ou criando uma exceção, evitando a dissonância[11].
Além disso, o autor Aury Lopes Jr. explica com brilhantismo os quadros mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro), o qual poderá acometer o juiz no afã de justificar os comportamentos adotados, senão vejamos:
Atribuir poderes instrutórios a um juiz – em qualquer fase – é um grave erro, que acarreta a destruição completa do processo penal democrático. Ensina Cordero que tal atribuição (de poderes instrutórios) conduz ao primato dell’ipotesi sui fatti, gerador de quadri mentali paranoidi. Isso significa que se opera um primado (prevalência) das hipóteses sobre os fatos, porque o juiz que vai atrás da prova primeiro decide (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (prova) que justificam a decisão (que na verdade já foi tomada). O juiz, nesse cenário, passa a fazer quadros mentais paranoicos.[12]
Desse modo, o juiz deve manter uma postura de equidistância em relação as partes com escopo de preservar a imparcialidade, assim como sobre a iniciativa probatória que deverá ficar a cargo das partes, nessa linha intelectiva, Giacomolli adverte:
não significa ignorar as pretensões das partes, suas perspectivas e expectativas, mas outorgar confiança e segurança de um julgamento na qualidade de terceiro e não de parte, bem como evitar que seja proferido um julgamento com dúvida razoável acerca da parcialidade do julgador.[13]
No que tange a imparcialidade esta subdivide-se em subjetiva e objetiva. O aspecto subjetivo é avaliado no íntimo da convicção do magistrado, evitando o julgamento por alguém que já possua uma convicção pessoal sobre o objeto posto em exame. Lado outro, o aspecto objetivo leva em conta a postura da entidade julgadora que não deve causar dúvida sobre a sua condução imparcial do processo, ou seja, não há prevalência dos interesses de algum dos sujeitos processuais.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a imparcialidade objetiva foi expressamente mencionada no Voto Vista do Ministro Cezar Peluso no HC nº 94.641/BA, in verbis:
Caracteriza-se, portanto, hipótese exemplar de ruptura da situação de imparcialidade objetiva, cuja falta incapacita, de todo, o magistrado para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida, em relação à qual a incontornável predisposição psicológica nascida de profundo contato anterior com as revelações e a força retórica da prova dos fatos o torna concretamente incompatível com a exigência de exercício isento da função jurisdicional. Tal qualidade, carente no caso, diz-se objetiva, porque não provém de ausência de vínculos juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados jurídicos na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva), mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja, ainda, de modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir.[14]
Insta salientar que a imparcialidade objetiva está umbilicalmente ligada a teoria da aparência, uma vez que havendo dúvida razoável sobre a parcialidade do julgador, deve ocorrer o seu afastamento do feito, em suma, não basta que o juiz esteja sem vínculos subjetivos com a causa, necessário se faz a aparência de que age com imparcialidade, com isso gerando confiança das partes e da sociedade num julgamento legítimo.
Aprofundando na temática da teoria da dissonância cognitiva o autor Ruiz Ritter apresenta alguns processos cognitivos-comportamentais reflexos adotado pelo sujeito visando retomar ao estado de coerência, a saber:[15]
a) desvalorização de elementos cognitivos dissonantes (efeito inércia ou perseverança) por meio desse processo, o indivíduo voluntária ou involuntariamente, desvaloriza o valor dos elementos cognitivos dissonantes, retomando, assim, a consonância cognitiva;
b) busca involuntária por informações consonantes com a cognição pré-existente (ou busca seletiva de informações): ante a dissonância, e com o objetivo de retomar sua coerência cognitiva interior, o indivíduo tem a tendência de buscar novos conhecimentos que sejam consonantes com seus elementos cognitivos contrariados. É dizer, há um impulso de sua parte no sentido de procurar informações que preponderantemente confirmem suas hipóteses prévias;
c) evitação ativa do aumento de elementos cognitivos dissonantes: levando-se em conta que há uma pressão interna para fins de se eliminar (ou reduzir) a dissonância cognitiva, parece natural que, paralelamente a isso, surja um processo voluntário (ou involuntário) de evitação do seu aumento, consubstanciado na fuga ativa de contato com elementos possivelmente dissonantes.
Com efeito, a dúvida razoável sob a imparcialidade do julgador que tem contato com a investigação preliminar, por si só, já é suficiente para demonstrar a imparcialidade objetiva à luz da teoria da aparência, outrossim, some-se a esse fato que a teoria da dissonância cognitiva demonstra uma tendência natural do ser humano de eliminar as incongruências dos seus comportamentos-cognitivos reflexos adotados anteriormente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente trabalho fora analisar o sistema processual vigente no País à luz da Carta da República e Convenção Americana de Direitos Humanos, haja vista que o Brasil adotou o sistema acusatório, no entanto, o Código de Processo Penal remonta ao período ditatorial, de sorte que a legislação pátria não está de acordo aos mandamentos constitucionais com o devido respeito aos direitos e garantias fundamentais.
Sendo assim, a instituição do Juiz das Garantias através da Lei n° 13.964/2019 representa um avanço na busca por um processo penal democrático, na medida em que o sistema acusatório impõe uma clara divisão dos sujeitos processuais que atuam no processo, inclusive no que concerne a iniciativa probatória, a qual incumbe exclusivamente as partes, devendo, conseguintemente, o juiz se manter distante dessa tarefa.
Repita-se, conferir poderes investigatórios ao juiz viola o princípio da imparcialidade, bem como o sistema acusatório na medida em que o juiz tomou conhecimento prévio da prova, determinando muitas vezes medidas cautelares de natureza real, pessoal e probatória aos direitos dos acusados, indubitavelmente, formará um juízo preliminar quanto a solução do litígio, buscando manter a coerência por ocasião do julgamento que venha a confirmar esse comportamento adotado anteriormente, comprometendo a estrutura dialética do processo.
Ademais, há uma possível contaminação subjetiva do magistrado que atuou na fase de investigação preliminar ser o responsável pelo julgamento, uma vez que a manutenção do estado de coerência é algo inato do ser humano, pois o juiz que determinou medidas invasivas aos direitos do acusado, evitará por ocasião da prolação da sentença adotar comportamentos contraditórios, ou seja, confirmará as medidas adotas mesmo que contrárias a verdade real.
A teoria da dissonância cognitiva explica bem que a psique desenvolve quadros cognitivos-comportamentais reflexos para manter a congruência, notadamente na desvalorização de elementos cognitivos dissonantes (efeito inércia ou perseverança), busca involuntária por informações consonantes com a cognição pré-existente (ou busca seletiva de informações) e evitação ativa do aumento de elementos cognitivos dissonantes.
Justifica-se, portanto, a instituição do Juiz das Garantias que irá atuar na fase de investigação criminal até o recebimento da denúncia, realizando, assim, uma divisão funcional da competência com o juiz da instrução, pois, certamente, o juiz que acumula esta função ao menos paira uma dúvida sobre a imparcialidade objetiva que deve pautar o magistrado, tendo em conta a análise de questões de natureza cautelar na fase de investigação criminal, assim como a iniciativa probatória do juiz que ainda subsiste no ordenamento jurídico.
REFERÊNCIAS
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[1] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 114.
[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518.
[3] BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, Código de Processo Penal. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm. Acesso: 8 de março de 2023, às 15h e 45 min.
[4] DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 8. ed. ver.ampl. e atual.- Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p 44.
[5] DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev .. ampl. e atual.- Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p 45.
[6] BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, Código de Processo Penal. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm. Acesso: 08 de março de 2023, às 15h e 50 min
[7] BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso: 8 de março de 2023, às 15h e 55 min.
[8] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Método, 2014. p.198.
[9]STRECK, Lenio Luiz. Juiz das Garantias: do neoconstitucionalismo ao neo-inconstitucionalismo. Consultor Jurídico, 2 de janeiro de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-02/senso-incomum-juiz-garantias-chegamos-neo-inconstitucionalismo. Acesso: 08 de março de 2023, às 16:08.
[10] DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev .. ampl. e atual.- Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p 123.
[11] DA ROSA, Alexandre Morais. Dissonância cognitiva no interrogatório malicioso: não era pergunta, era cilada. Consultor Jurídico, 17 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-17/limite-penal-efeito-dissonancia-cognitiva-interrogatorio-malicioso. Acesso: 8 de março de 2023, às 16:13.
[12] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p.111/112
[13] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 280
[14] HC 94.641/BA (STF, 2ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 11/11/2008, DJe 43 05/03/2009),
[15] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 175.
Advogado. Pós-Graduação em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Fluminense – UNIFLU.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTTA, RAPHAEL GONÇALVES AZEVEDO. Juiz das garantias: “imparcialidade do julgador e o novo paradigma do sistema acusatório” Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 mar 2023, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61175/juiz-das-garantias-imparcialidade-do-julgador-e-o-novo-paradigma-do-sistema-acusatrio. Acesso em: 23 dez 2024.
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