GILSON RIBEIRO CARVALHO FILHO[1]
(orientador)
RESUMO: Desde os primórdios, a posição da mulher na sociedade sempre fora inferior à do homem, sendo relegada a um papel de subordinação a eles. Apesar dos avanços sociais ocorridos ao longo da história, entre eles a busca de igualdade entre ambos, a situação até então necessita ser analisada, uma vez que, a mulher ainda sofre muito preconceito e ocupa pouquíssimo lugar de destaque. Soma-se a isso, o fato de elas serem vítimas de todo tipo de violência, e que em alguns casos, a simples razão de serem mulheres, as leva ao óbito. Nessa perspectiva, o ato de matar uma mulher em razão da sua condição de gênero, é denominado de feminicídio. Assim, o presente estudo teve como objetivo discutir as razões e consequências (jurídicas e sociais) do feminicídio doméstico, em que buscou analisar de forma clara e sucinta o quão longo é o caminho que as mulheres ainda precisam percorrer para ter o respeito da sociedade e um pouco mais de dignidade humana, bem como sua integridade física preservada. Nesse sentido, a base para a realização desse trabalho passou pela seguinte questão: analisar os efeitos jurídicos do feminicídio doméstico no Brasil e demonstrar a relevância de se pôr em pratica essas bases de proteção para ampliar a segurança dessas mulheres. Logo, a metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica, a partir de livros e periódicos, nacionais e internacionais, para melhor descrever, argumentar e delinear os objetivos da pesquisa. Como resultados, analisou-se a questão da qualificadora do crime de feminicídio, observando se é objetiva ou subjetiva, ficou estabelecido por esse estudo que ela é objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita.
Palavras-chave: Gênero. Crime contra a mulher. Homicídio. Qualificadora.
DOMESTIC FEMINICIDE
ABSTRACT: From the beginning, the position of women in society has always been inferior to that of men, being relegated to a subordinate role. Despite the social advances that have occurred throughout history, including the search for equality between them, the situation until then needs to be analyzed, since women still suffer a lot of prejudice and occupy very little prominent place. Added to this, the fact that they are victims of all kinds of violence, and that in some cases, the simple reason that they are women, leads to death. From this perspective, the act of killing a woman because of her gender condition is called femicide. Thus, the present study aimed to discuss the reasons and consequences (legal and social) of domestic femicide, in which it sought to clearly and succinctly analyze how long is the path that women still need to travel in order to have the respect of society and a little more human dignity, as well as their physical integrity preserved. In this sense, the basis for carrying out this work was the following question: to analyze the legal effects of domestic femicide in Brazil and demonstrate the relevance of putting these protection bases into practice to increase the safety of these women. Therefore, the methodology used was the bibliographical review, from books and periodicals, national and international, to better describe, argue and outline the research objectives. As a result, the question of qualifying the crime of feminicide was analyzed, observing whether it is objective or subjective, it was established by this study that it is objective, as it focuses on crimes committed against women because of their female gender and/or always that the crime is linked to domestic and family violence itself.
Keywords: Crime against women. Murder. Qualifier. Genre.
1. INTRODUÇÃO
A história da humanidade é marcada por diversos movimentos civis e sociais, entre eles, estão os que defendem os direitos das mulheres. Devido ao desenvolvimento histórico e as mudanças ocorridas na sociedade ao longo da sua história, a mulher sempre buscou o seu lugar entre os pares.
Desde os primórdios, o fato é que para as mulheres o seu lugar era sempre inferior ao homem, enquanto ele chefiava e comandava a família e demais afazeres sociais, para elas sobravam apenas os serviços domésticos e o cuidado com os filhos. Atualmente, apesar, do progresso em relação a situação da mulher, depois de muitas lutas, e de conseguir direitos e garantias, o seu papel e a sua imagem ainda estão atrelados à uma posição de inferioridade em relação ao homem.
Nessa perspectiva, pode-se observar ainda, essa submissão do gênero em relação aos homens quando se analisa diversas pesquisas que mostram as ínfimas oportunidades de trabalho, a disparidade salarial e de cargos de chefia, entre outros. Para além dessas questões, o exemplo mais claro sobre o tratamento dado à mulher ainda, nos dias atuais, está nos casos de violência doméstica, no qual, milhares de mulheres são agredidas de todas as formas possíveis e em alguns casos, brutalmente assassinadas por seus parceiros por motivos fúteis. A esse fato, o sistema jurídico reconhece como crime de feminicídio tipificado no Código Penal Brasileiro. Embora esse ato seja tipificado como crime e atualmente ser considerado crime hediondo, a todo instante é divulgado casos como esses em todos os lugares.
A situação se torna ainda mais caótica, pois frequentemente são registrados casos em que são subjugadas e violentadas de todas as maneiras, e mesmo com as leis de proteção os casos aumentam cada dia mais e mais, revelado um cenário preocupante com essas situações, e levando a dúvidas quanto à eficácia do sistema de segurança.
Frente a esse fato, o presente trabalho teve como objetivo central discutir as razões e consequências (jurídicas e sociais) do feminicídio doméstico, em que buscou-se analisar de forma clara e sucinta o quão longo é caminho que as mulheres ainda precisam percorrer para ter o respeito da sociedade bem como sua integridade física preservada.
Nesse sentido, a base para a realização desse trabalho passou pela seguinte questão: analisar os efeitos jurídicos do feminicídio doméstico no Brasil e demonstrar a relevância de se pôr em prática essas bases de proteção para ampliar a segurança dessas mulheres.
Ao discutir sobre o feminicídio doméstico, tencionou nessa pesquisa evidenciar ferramentas que possam ampliar a rede de proteção
as mulheres vítimas de violência doméstica, assim como a responsabilização dos que cometem esses crimes. Nota-se que diante de uma realidade ainda muito preocupante, discutir sobre o feminicídio, principalmente quando se leva em consideração os casos crescentes desse crime, se torna fundamental a sua discussão.
2. METODOLOGIA
O presente estudo teve como metodologia, o método indutivo e qualitativo, assim como a revisão de literatura, que foi embasado pela pesquisa bibliográfica realizada por meio de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos científicos relacionados ao tema proposto.
Dessa forma, a pesquisa foi realizada por meio de levantamento de documentos e coleta de dados, resultando em uma busca feita em bases tais como: Scielo; Google, dentre outros, entre os meses de julho e agosto de 2022.
3. A MULHER NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Um dos grandes embates existentes na história da humanidade diz respeito às questões de gênero. Desde as antigas civilizações, a relação entre homem e mulher foram pautadas por regras e condutas de cada parte, em sua maioria desfavorável ao sexo feminino.
Nessa ideia, as mulheres, antes, eram vistas apenas para procriar e cuidar do lar, com o advento das mudanças sociais, culturais e do feminismo, as mulheres nos dias atuais são independentes e donas da própria vida. Contudo, a relação com os homens ainda é permeada pela disputa e pela diferença de tratamento em todas as esferas da vida social.
Apesar de serem “emancipadas”, elas até então não se livraram do estigma por ser mulher e, carrega dentro de si uma luta constante por igualdade e autonomia, que nem mesmo a proteção jurídica conseguiu superar.
De acordo com Barreto (2016) devido a um processo histórico, as mulheres estiveram confinadas dentro do lar por milênios, sendo encarregadas pelos trabalhos domésticos, e funções de esposa e mãe.
Como bem descreveu Braick (2015) em sua obra “História: das cavernas ao terceiro milênio - do avanço imperialista no século 19 aos dias atuais”, as mulheres eram tratadas como mero objeto de procriação e considerada como propriedade dos homens, aos quais devia obediência e subordinação, nesse contexto histórico, a questão envolvendo os gêneros já era evidenciada.
Isso se remete inclusive no processo de criação do ser humano, Souza (2016) explica que a reprodução da espécie humana só é possível com a participação dos dois seres, em que para perpetuar a espécie, homens e mulheres passaram a conviver permanentemente e constantemente, assim surge a sociedade humana. Desde que o homem começou a produzir seus alimentos, começaram a definir papéis para homens e para mulheres, considerando o aprendizado de cada um nas tarefas diárias, a atividade de cuidar foi sendo desenvolvida pela mulher, embora ela também ajudasse no cultivo e na colheita dos alimentos produzidos.
Verifica-se de imediato, que a mulher já nascera predestinada a cumprir um papel estritamente familiar e de pouca representatividade, deixando para o homem o papel de domínio e de autonomia. Essa diferenciação, ainda na fase histórica, mostra claramente o papel desempenhado por esses gêneros e que perduraria por muitos séculos.
No entanto, há historiadores que não colocavam a mulher no papel central da sociedade, aparecendo marginalmente na história, Margareth Rago Martins (2016) acentua que todo discurso sobre temas clássicos como a abolição da escravatura, a imigração europeia para o Brasil, a industrialização, ou o movimento operário, evocava imagens da participação de homens robustos, brancos ou negros, e jamais de mulheres capazes de merecerem uma maior atenção.
Frente a esses fatos indaga-se: onde estava a mulher durante a história da humanidade? A resposta é simples, porém insatisfatória: segundo Martins (2016) estava confinada ao espaço da vida privada, envolvida no cuidado com o lar, na educação dos filhos, na atenção ao marido; ocupada demais para ser percebida pela história.
Segundo Souza (2016) a função de reprodutora da espécie, que cabe a mulher, favoreceu a sua subordinação aos homens, por ser considerada “frágil” e incapaz de assumir um papel de chefia do grupo familiar, o homem com a sua força física e seu autoritarismo, acabou por assumir o poder dentro da sociedade e da família.
Desse modo, esse novo poder, surge às sociedades patriarcas, que eram caracterizadas pelo autoritarismo do homem inclusive no seio familiar, principalmente na paternidade, garantia de posse de bens e herança para as futuras gerações (SOUZA, 2016).
Nos primeiros períodos da civilização, o conceito de família se resumia ao seguinte fato: o homem provedor da comida, do sustento e a mulher a dona do lar, cuidando da prole e da casa, nada mais se estendia a ambas as posições. A família também se resumia quase que exclusivamente a um homem, sua esposa e os seus filhos, se algo fugia desse cenário não era considerado família (SOUZA, 2016).
Ressalta-se que, um dos ramos mais antigos do Direito, o poder familiar em seus primórdios era exercido quase que exclusivamente pelo chefe de família – o homem, tendo sua origem na Roma antiga, no qual a lei concedia ao pai vender ou até mesmo tirar a vida do seu próprio filho, podendo ainda dispor de sua mulher quando se achasse conveniente, afinal, sobre ele detinha o poder de vida ou de morte, o conhecido pátrio poder.
Esse poder paterno sobre o filho é bem antigo e já era reconhecido pelas XII Tábuas (450 a.C.), mais necessariamente pela tábua IV, que tratava do pátrio poder, com isso, as mulheres eram cada vez mais ligadas à sexualidade, sendo submetida aos interesses do homem, tanto na reprodução de sua linhagem quanto no repasse de bens através da herança, a mulher, então, passou a ser do homem (SOUZA, 2016).
Todavia, essa ideia de submissão da mulher perdurou por séculos, ainda que durante a história, várias mulheres (principalmente as rainhas de grandes reinos) se sobressaíssem sob o domínio do homem, no geral, a mulher era vista como algo inferior ao homem e não possuía direito a um posicionamento político e/ou social (MARTINS, 2016).
Logo, a situação da mulher começou a melhorar com os primeiros movimentos do feminismo, na baixa Idade Média, o qual surgiram as primeiras ideias feministas. A autora francesa Christine de Pisan (1364-1430) foi a precursora da escrita a lançar ideias feministas com poemas e tratados de política e de filosofia, que defendia a concepção de igualdade entre homens e mulheres (OLIVIERI, 2016).
Sua principal obra “Cidade das Damas” aborda a igualdade natural entre homem e mulher e A mesma autora ainda registrava vidas femininas que se tornaram ícones de liberdade e poder, como por exemplo, Joana D´Arc (1412-1431) a padroeira da França e heroína da Guerra dos 100 anos (OLIVIERI, 2016).
No período do Renascimento houve um retrocesso na condição da mulher, limitando-as aos estudos e trabalhos domésticos, foi no século XVIII com a entrada do Iluminismo e da Revolução Francesa que se pode perceber as reivindicações dos direitos da mulher, o que se tornaria realidade no século seguinte.
Assim, se no século XVIII houve as primeiras reivindicações acerca do direito das mulheres, foi no século XIV, no contexto da Revolução Industrial que a mulher começou de fato a ter presença significativa na sociedade, e essa formalização se deu através do trabalho (SOUZA, 2016).
Observa-se, que foi por meio do trabalho que a mulher se solidificou perante a família e a sociedade, conquistando não apenas independência financeira, mas o direito de se tornar dona da própria vida. A entrada no mercado de trabalho para a mulher foi e ainda é mais significativa do que para o homem, uma vez que este sempre esteve nesse ambiente.
Assim, as divorciadas ou mãe solteiras começaram a crescer no meio do século passado, fazendo com que o conceito de família e de mulher fosse expandido e alterado, com o dinheiro advindo do trabalho, a mulher passou a ser chefe de família, principalmente quando não havia homens por perto.
Entretanto, o que não modificou foram as relações de trabalho, e numa época remota na história da humanidade a mulher já sofria preconceitos, no meio laboral não poderia ser diferente.
Muitas foram e ainda são as situações em que a mulher desempenha as mesmas funções do homem e o seu salário, no entanto, é inferior, além disso, muitas ainda sofrem resistência para conseguir cargos de chefia ou mesmo de confiança. Há também que se fazer menção ao fato de que nos anos 50 surgiu os primeiros movimentos pelos direitos da mulher, que tinha como objetivo o despertar das mulheres no que diz respeito a seus problemas, cabendo a elas, aprovarem ou reprovarem as suas ações (VIEIRA; JÚNIOR, 2016).
Depois desses movimentos, a mulher começou a ganhar destaque na sociedade, e não apenas dentro de casa, deixando de fazer apenas os serviços domésticos e indo trabalhar fora e conquistando a sua independência e liberdade.
Assim, a história da mulher tem sido conquistada através de luta e à custa de muito trabalho, buscando sempre o resgate de sua dignidade e igualdade de direitos. Apesar disso, ela não conseguiu fugir do maior dos seus problemas: a violência. Milhares de mulheres são vítimas de todo tipo de violência diariamente, principalmente dentro dos seus lares, cuja terminologia criminológica é definida como violência doméstica, e em alguns casos, ela pode acabar em morte, em razão do seu gênero.
4 FEMINICÍDIO DOMÉSTICO
Conforme mostrado no tópico anterior, a mulher sempre fora subjugada na sociedade, as garantias e autonomia que tem hoje, só conseguiu por meio de várias lutas e batalhas. Entre as várias dificuldades e obstáculos que as mulheres enfrentam, a proteção do seu corpo e da sua dignidade ainda é a mais latente.
Um dos crimes mais comuns praticados na atualidade contra a mulher é o feminicídio. Derivado do termo femicídio, que foi utilizado a priori em 1976 pela socióloga sul-africana Diana Russell, o feminicídio é inicialmente caracterizado como o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres, sendo uma maneira de exterminar o gênero feminino ou como um genocídio de mulheres (MENEGUEL; PORTELLA, 2017).
Nessa situação, o algoz desses crimes, possui ódio, desprezo, prazer ou sentimento de propriedade sobre a vítima, matando-a como forma de extermínio, transparecendo o mais profundo desprezo pela figura da mulher (BRANDALISE, 2018). Por meio desse entendimento, é possível perceber que o surgimento do feminicídio deriva de uma relação complexa entre homens e mulheres, em situações que a mulher ocupa um papel de coadjuvante perante o homem, é o pensamento machista que se ancora a motivação para o esse crime. (SCHRAIBER; D’OLIVEIRA, 2013).
É fato que a sociedade atual ainda é machista colocando a mulher frente a preconceitos e julgamentos, enquanto que o homem é visto como algo muito mais importante, o que os tornam pessoas violentas contra elas, levando em alguns contextos a morte de milhares de mulheres diariamente. O feminicídio, é identificado como um ponto final num processo iniciado ainda no início da sociedade, ao qual a mulher sempre ganhou papel irrelevante e de pouco (ou nenhum) destaque.
Cabe destacar que o feminicídio não é especificamente praticado por homens, qualquer gênero pode cometer esse delito, o que caracterizará o crime será a motivação do ato.
Segundo Schraiber; D´Oliveira (2013) mulheres também podem praticar o feminicídio, uma vez que a razão de ser contrário a existência de uma mulher pode vir de qualquer pessoa, mesmo que estatísticas mostram um índice maior de homens cometendo esse crime, mulheres também podem ser vistas como geradoras da prática do feminicídio.
No entanto, é cabível frisar que são os homens que em sua maioria praticam o feminicídio, e grande parte dos crimes ocorrem dentro dos domicílios. Esse fato, é denominado de feminicídio doméstico, já que ocorre dentro do âmbito do lar/domicílio da vítima e causado pelo seu parceiro (a) (CUNHA, 2017).
Nesse contexto, o feminicídio doméstico, como bem mencionado posteriormente, é aquele onde se considera que exista motivos de condição de sexo feminino quando o crime envolver uma agressão doméstica e familiar em desfavor da mulher (CUNHA, 2017). Mais limitado ao Brasil, o feminicídio, como terminologia, foi imposto por meio da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) da Violência contra a Mulher em 2012. Nesse documento, foi proposto o Projeto de Lei 292/2013, do Senado Federal, buscando mudar o Código penalista brasileiro para incluir em seu texto o crime de feminicídio, no qual ele adentraria como uma circunstância qualificadora do homicídio (BRASIL, 2013).
A busca pela inclusão do feminicídio no texto penal se deve pela crescente onda de índices que mostraram a morte de mulheres em seus lares apenas pela sua condição de gênero (CUNHA, 2017). Importante conceituar para título de informação, o que seja uma violência doméstica, como bem acentua a Lei que a normatiza (Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha) regulamenta que é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (BRASIL, 2006).
Dessa forma, qualquer agressão à mulher em razão do seu gênero e que gere morte, ocorrido dentro do seu domicílio ou em um ambiente familiar, caracterizará o feminicídio doméstico (BAETA, 2019). Devido a relevância desses crimes ao longo dos últimos anos, a legislação brasileira, tem buscando penalizar esses casos, tipificando o crime de feminicídio no seu ordenamento jurídico.
4.1 DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Crimes cuja natureza sejam a violência ou morte de mulheres não são recentes, existiam normas que previam a penalização dos autores nesses casos, como exemplos, a Lei nº 9.099/95 que instituiu os Juizados Especiais Criminais que trouxeram uma nova forma de solucionar litígios interpessoais, tais como medidas de conciliação e transação penal. Ainda nessa norma, foi instituído os princípios da oralidade, da celeridade e da informalidade, que dava possibilidade de ressocialização mais efetiva, principalmente quando gerado por conflitos familiares (DIAS, 2012).
Apesar disso, a supracitada lei não fora bem aceita pela doutrina jurídica, uma vez que houve uma interpretação em que a violência sofrida pela mulher em seu domicílio estaria no mesmo patamar que uma simples briga de vizinhos ou acidente de trânsito, tendo inclusive, a mesma pena. Segundo Vieira; Junior (2016) esta lei era uma afronta aos direitos das mulheres, porque além de torná-las uma simples coadjuvante dos crimes que são vítimas, os seus agressores poderiam ser penalizados apenas com uma cesta básica.
Diante dos fatos, após sofrer críticas, outras leis foram criadas e promulgadas, como a Lei nº 10.778/2003 que previu a possibilidade de acolhimento à mulher, viabilizando equipe de saúde para oferecer atenção oportuna, eficaz, segura e ética as vítimas desses crimes. Surge também, a Lei Federal nº 10.886/2004 que ampliou a segurança jurídica das mulheres vítimas de violência ao acrescentar ao Código de Processo Brasileiro o tipo penal “violência doméstica”, aumentando o tempo de punibilidade do agressor.
Contudo, é evidente que a Lei Maria da Penha é a precursora das leis que regem sobre violência doméstica e proteção às mulheres vítimas de violência que realmente se mostrou eficaz, surgida em 2006 por causa da violência sofrida pela biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, esta lei trouxe várias regras a esses casos, aumentando também as penas para dar mais rigorosidade para aqueles que praticam ou praticaram a violência doméstica (BRASIL, 2006).
A principal inovação da Lei Maria da Penha foi a mudança do texto do art. 129 do Código Penal, que permitiu que os acusados por violência contra mulheres em seus domicílios ou em ambiente familiar pudessem serem presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada. Soma-se a isso o fato de que esses agressores não tenham direitos a penas alternativas (BRASIL, 2006).
Outro ponto positivo trazido pela presente lei foi a delimitação conceitual dos tipos de violência doméstica: que se desdobra em física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Essas definições foram importantes para dar maior entendimento sobre esse crime, e seu alcance (BRASIL, 2006).
Insta salientar que nessa norma também se aumentou o tempo de detenção e criou medidas protetivas como a remoção do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação da vítima (BRASIL, 2006).
Ademais, também se menciona que em 2019 surgiu a Lei Federal nº 13.827 ao qual acrescentou novas regras à Lei Maria da Penha. Sobre essas mudanças, menciona-se a inclusão do art. 12-C, abaixo transcrita:
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
I - pela autoridade judicial;
II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
§ 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.
§ 2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso. (BRASIL, 2019).
Ao comentar sobre essa norma, Girão (2019) acentua que na falta de delegado no processo da denúncia, é permitido que qualquer policial poderá afastar o agressor tanto da mulher vítima da violência quanto de seus dependentes”. Essa medida é importante, porque gera uma maior eficácia da norma e traz uma segurança jurídica à vítima, uma vez que o preso não terá a liberdade provisória concedida em caso onde configurar risco à integridade física da mulher ou que tenha descumprido alguma medida protetiva de urgência.
No caso em tela, o feminicídio também ganhou uma ampliação específica, a Lei nº 13.104/2015 que se alterou o art. 121 do Código Penal, onde incluiu no § 2º, inciso VI, dispositivos que protegem significamente à mulher diante de seus algozes; a saber:
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Aumento de pena
§ 7oA pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (NR)
Art. 2o O art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte alteração:
“Art. 1o ...........
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV, V e VI).
(BRASIL, 2015)
Destaca-se frente a essa norma, que a inclusão do feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, este foi incluído no rol dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990), ou seja, o feminicídio não é considerado um simples homicídio, ao contrário, devido a sua motivação, a gravidade desse crime é alta, uma vez que ele afeta não somente à vítima e seus familiares, mas toda uma sociedade. A pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.
Galvão (2018) afirma que a tipificação do crime de feminicídio é de suma importância para o Direito e para a sociedade brasileira, uma vez que ele tira esse crime da invisibilidade ao qual se encontrada desde sempre. A morte de mulheres por conta da sua condição de gênero é um atentado claro à dignidade da mulher e sua integridade física.
O mesmo autor acrescentar que a tipificação desse crime não busca prevenir, mas nominar uma ação que existe e que não é conhecida por este nome; em outras palavras, tirar da conceituação genérica do homicídio um tipo específico realizado em desfavor da mulher, apenas por ser mulher (GALVÃO, 2018).
5. DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
Diante do exposto acima, a entrada em vigor da Lei do Feminicídio trouxe impacto na vida das mulheres, porque gerou maior confiança no ordenamento jurídico, por punir o agressor de um crime e dar resposta equivalente a gravidade desse crime, para os familiares e para a sociedade.
No campo jurídico, os Tribunais já se posicionaram a respeito desse tema. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi o primeiro a ser indagado sobre eventuais questões que a normatização pode levantar e a primeira surgiu no que se refere a possibilidade de um crime de feminicídio ser considerado também homicídio qualificado por motivo torpe.
Aqui, é necessário informar que para se provar um feminicídio é imprescindível que se tenha uma prova inequívoca. Em caso de houver uma dúvida ou questão que gere incerteza, invoca-se o instituto do in dubio pro reo. É preciso deixar claro que as razões para o cometimento do presente crime sejam em razão da violência de gênero (BIANCHINI; GOMES, 2016).
Nesse sentido, cita-se:
PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO (ART. 121, § 2º, II, III, IV E VI, DO CP). FEMINICÍDIO. DECISÃO DE PRONÚNCIA. EXCLUSÃO DAS QUALIFICADORAS. MOTIVO FÚTIL. MEIO CRUEL. RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. 1. Havendo dúvida, por menor que seja, a respeito da incidência ou não de determinada qualificadora, é de se reservar ao Tribunal do Júri, uma análise detalhada e pormenorizada da questão, cabendo-lhe dirimir a questão já que, na fase de pronúncia, vigora o princípio do in dubio pro societate. 2. [...] RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
(Recurso em Sentido Estrito 0005682-88.2022.8.27.2700, TJTO. Rel. EURÍPEDES LAMOUNIER, GAB. DO DES. EURÍPEDES LAMOUNIER, julgado em 19/07/2022, DJe 27/07/2022 19:06:54). (grifo meu).
No entanto, em entendimento contrário, o ministro Nefi Cordeiro (2019) argumenta que seja possível a coexistência das qualificadoras do feminicídio e do motivo torpe. Segundo o ministro, esse entendimento não geraria o bis in idem (dupla punição pelo mesmo crime), haja vista que o feminicídio possui natureza objetiva, enquanto a qualificadora do motivo torpe é de caráter subjetivo. Assim, ele explica:
É devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto a primeira tem natureza subjetiva e a segunda, objetiva (HC 440.945).[2]
Apesar desse entendimento, cabe destacar que é possível acontecer um excesso de acusação, onde pode agrupar, como exemplo, uma classificação de crime hediondo. Ao falar sobre isso, imperioso informar que nem todo delito denominado femicídio é configurado como feminicídio. Existem casos de confusão desses termos, o que deve ser explicitado pela defesa, afim de evitar um excesso acusatório (BIANCHINI; GOMES, 2016).
A qualificadora do feminicídio também é motivo de discussão. Há doutrinadores e decisões judiciais que afirmam ser esse crime ser de natureza subjetiva, enquanto que outros entendem ser de caráter objetivo. No primeiro posicionamento, entende-se que quando se reconhece (no júri) o privilégio (violenta emoção, por exemplo), crime, fica afastada, automaticamente, a tese do feminicídio.
Nesse sentido Biachini (2016) explica que esse crime é subjetivo porque o criminoso pode cometer o homicídio não exclusivamente com base na condição de gênero. Esse autor cita na sua defesa um exemplo: uma mulher faz uso de uma minissaia, o seu parceiro comete um homicídio contra ela e, isso ocorre em razão de presumir que ela tem de se submeter ao seu gosto, como se dela tivesse posse. Em casos como esse, há uma ofensa à condição do sexo feminino, ou do feminino exercendo, a seu gosto, um modo de ser feminino.
Cavalcante (2015) na mesma linha de entendimento acima, afirma que o critério subjetivo no crime de feminicídio se baseia nas causas ensejadoras do delito. Aqui, o que importa não é o crime ser motivado contra a mulher e sim pela sua condição de sexo feminino.
Entretanto, é majoritário o entendimento que nesse cenário, o feminicídio é um crime de caráter objetivo. De acordo com Nucci (2017, p. 46) o feminicídio possui uma “qualificadora objetiva, pois se liga ao gênero da vítima: ser mulher, o agente não mata a mulher somente porque ela é mulher, mas o faz por ódio, raiva, ciúme, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim, por motivos variados”
No mesmo caminho, o STJ tem se orientado da seguinte forma:
[...] considerando as circunstâncias subjetivas e objetivas, temos a possibilidade de coexistência entre as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio. Isso porque a natureza do motivo torpe é subjetiva, porquanto de caráter pessoal, enquanto o feminicídio possui natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita, assim o animus do agente não é objeto de análise.[3]
Sendo assim, afirma-se que a qualificadora do feminicídio é de caráter objetivo. Dessa forma, como esclarece Nucci (2019, p. 758) “o feminicídio figura como uma continuidade da tutela especial abarcada pela Lei Maria da Penha, tratando-se de uma qualificadora objetiva, pois se liga ao gênero da vítima: ser mulher”.
A título de exemplo, expõe-se o seguinte julgado:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. VALORAÇÃO NEGATIVA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CARACTERÍSTICAS DO FEMINICÍDIO VALORADAS NA CULPABILIDADE. MACHISMO E SENTIMENTO DE POSSE. CRIME COMETIDO NA FRENTE DO FILHO DA VÍTIMA. AGRAVANTE DA TRAIÇÃO COM A ATENUANTE DA CONFISSÃO. POSSIBILIDADE. SÚMULA 525 DO STJ. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. [...]. 2. É cediço que o sentimento de posse, por si só, sem outras circunstâncias, não caracteriza motivo torpe, contudo, no presente caso, é de rigor que tal circunstância seja valorado negativamente na conduta, pois o réu mesmo com apenas 02 (dois) meses de relacionamento viu-se no direito de tirar a vida da vítima por entender que dela era proprietário. 3. Está suficientemente demonstrado que o crime ocorreu na presença do filho menor da vítima, tanto pelo depoimento dela quanto do depoimento de outras testemunhas. Tal situação já foi diversas vezes julgada por este Tribunal de Justiça, que tem entendimento que a presença de filhos no momento da ocorrência do crime é causa de reprovação das circunstâncias do crime. 5. Recurso conhecido e parcialmente provido. (Apelação Criminal (PROCESSO ORIGINÁRIO EM MEIO ELETRÔNICO) 0000144-98.2014.8.27.2703, Rel. PEDRO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, GAB. DO DES. PEDRO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, julgado em 21/06/2022, DJe 22/06/2022 14:22:32). (grifo meu).
Diante de tais argumentos, entende-se nesse estudo, que o feminicídio possui caráter objetivo, devido a gravidade que ele alcança e os efeitos que ele gera para as famílias e para a sociedade, é mais do que urgente que tal crime tenha a mais alta pena imposta.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos assuntos que mais se discute no momento atual na sociedade brasileira é a respeito dos desafios da identidade de gênero. Que as diferenças entre os gêneros homem e mulher sempre foram evidentes isso é claro e notório, mas o que se observa nas últimas décadas é uma crescente onda de disparidade entre o tratamento dado à mulher em relação ao homem.
A mulher como uma figura considerada ‘vulnerável’ é vista como alguém inferior ao homem, imagem esta, que se iniciou ainda nos primórdios da civilização, mas que se mantém viva até os dias atuais. Ainda que as mulheres tenham lutado por igualdade, a sua imagem de inferioridade ainda persiste, tanto aos olhos dos homens (e até para algumas mulheres!), elas ainda estão abaixo deles, em todos os aspectos.
Com base nesse cenário, esta pesquisa buscou analisar o crime de feminicídio doméstico, evidenciando no decorrer do presente estudo sua tipificação pela Lei nº 13.104/2015.
Para além do seu texto, o que se concluiu foi que a norma ainda não é plenamente esclarecida, ficando ainda em aberto alguns apontamentos. A título de exemplo, esta lei ainda gera dúvida quanto ao que se deve levar em consideração para a formalização do crime em espécie, além da questão de gênero.
Ademais, também ficou em aberto sobre a questão da sua qualificadora, se ela é objetiva ou subjetiva. Sobre esse ponto, firma-se entendimento de que a qualificadora é objetiva, em razão da necessidade de penalizar de imediato e sem detalhamentos aqueles que mata mulheres em razão de seu gênero.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Advogado e Docente do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – UnirG. E-mail: profgilsonfilho@gmail.com
[2] AgRg no HABEAS CORPUS Nº 440.945 - MG (2018/0059557-0). Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1718482&num_registro=201800595570&data=20180611&formato=PDF. Acesso em: 01 ago. 2022.
[3] REsp 1.707.113/MG. Relatoria do Ministro Felix Fischer. Publicado no dia 7.12.2017.
Bacharelanda em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Maria Adriana Cavalcante. Feminicídio Doméstico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 mar 2023, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61178/feminicdio-domstico. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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