RESUMO: O presente estudo visa analisar a realização de audiência para confirmação da retratação à representação oferecida nos crimes processados mediante ação penal pública condicionada, prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006 à luz do posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, especialmente no julgamento dos REsp 1964293 e REsp 1977547, afetados sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.167), ponderando sobre a efetiva aplicação dos postulados previsto na Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar toda forma de violência contra a mulher (Tratado de Belém)[1].
Palavras-chaves: Mulher. Audiência. Retratação. Representação.
ABSTRACT: The present study aims to analyze the holding of a hearing to confirm the retraction of the representation offered in crimes prosecuted through conditioned public criminal action, provided for in article 16 of Law n. 11.340/2006 in the light of the position adopted by the Superior Court of Justice – STJ, especially in the judgment of REsp 1964293 and REsp 1977547, affected under the rite of repetitive appeals (Topic 1.167), considering the effective application of the postulates provided for in the Inter-American Convention for prevent, punish and eradicate all forms of violence against women (Belém do Pará).
Keywords: Woman. Court hearing. Retraction. Representation.
INTRODUÇÃO
Em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei n. 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), que criou inúmeros mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, além de dispor sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, promovendo significativas modificações no Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848/1940), bem como no Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689/1941).[2]
A supramencionada norma foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro em decorrência de fortes clamores sociais por mecanismo mais eficazes de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, sobretudo quando o Brasil passou a ser signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Tratado de Belém).
Além disso, outro fator preponderante para o estabelecimento de um sistema integrado de proteção, foi quando o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) encaminharam denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos de omissão quanto dado aos casos de violência contra a mulher. Após deliberações sobre o caso, sobreveio a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com isso, o país teve que assumir o compromisso de reformular as suas leis e políticas em relação à violência doméstica.
Nesse norte, foi editada a Lei n. 11.340/2006 prevendo, em seu artigo 5º, que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. A lei cuidou de amparar todas as pessoas que se identificam com o sexo feminino, abrangendo, portanto, as heterossexuais, homossexuais e mulheres trans. Além disso, por imposição legal e presuntiva, há de se considerar que existe uma situação de vulnerabilidade em relação à vítima e ao agressor.
Como dito acima, a Lei Maria da Penha promoveu inúmeras e significativas alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal, destacando-se, neste trabalho, a modificação no que se refere à retratação à representação oferecida como requisito procedimental. Com efeito, foi estabelecida uma forma mais rigorosa para a renúncia ao direito de representação da vítima, nos casos de crimes de Ação Pública Condicionada, conforme previsto no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006.
Destarte, em casos de aplicabilidade da Lei Maria da Penha aos crimes processados mediante Ação Penal Pública Condicionada à representação, sobrevindo manifestação pela retratação daquela, surge a obrigatoriedade do juiz designar audiência prevista no artigo 16 da norma, antes de receber a inicial acusatória. Tal medida visa, tão somente, aferir se a vontade manifestada pela vítima em se retratar está sendo expressada de forma livre de qualquer coação, ameaça, vulnerabilidade ou violência.
Isso se faz necessário justamente pela situação de, não raramente, a violação dos direitos inerentes às mulheres serem cometidas na clandestinidade, em um ambiente de vulnerabilidade e dependência física, financeira, psicológica e emocional. Portanto, o legislador achou prudente e pertinente que eventual retratação à representação, nos crimes processados mediante ação penal pública condicionada, fosse aferida em audiência, na presença do magistrado, ouvindo-se Ministério Público.
Demais disso, em decorrência da previsão legal de realização de audiência para confirmação da retratação, surgiram inúmeras partes defendendo, equivocadamente, a tese de ser necessária e obrigatória a realização de audiência para oitiva da vítima para aferir se, de fato, esta tinha o desejo de representar o acusado. Essa tese foi levantada no âmbito de processos criminais que regularmente estavam tramitando perante as milhares de varas de violência doméstica e familiar do Brasil, ocasião em que a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça.
Com efeito, em 9 de agosto de 2022, o Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, afetou os Recursos Especiais ns. 1964293 e 1977547 (Tema 1.167) à sistemática de recursos repetitivos com a seguinte tese: “Definir se a audiência preliminar prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) é ato processual obrigatório determinado pela lei ou se configura apenas um direito da ofendida, caso manifeste o desejo de se retratar”.[3]
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou o mérito da demanda, colocando fim a questão e assentando, de forma definitiva, a seguinte tese: “A audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006 tem por objetivo confirmar a retratação, não a representação, e não pode ser designada de ofício pelo juiz. Sua realização somente é necessária caso haja manifestação do desejo da vítima de se retratar trazida aos autos antes do recebimento da denúncia”.[4]
Portanto, no presente artigo será analisada a rede de proteção criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal e da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, fazendo uma ponderação com o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.167.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A Constituição Federal de 1988 consagra, no Capítulo VII, do Título VII, em seu artigo 226, p. 8º, que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASIL, 1988).
Com efeito, visando regulamentar a norma constitucional acima, em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei n. 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), que objetivou a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, além de dispor sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, promovendo significativas modificações no Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848/1940), bem como no Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689/1941). (BRASIL, 2006).
A introdução dessa sistemática de proteção se deu em virtude dos fortes clamores sociais por mecanismo mais efetivos de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, tendo como marco inicial o momento em que o Brasil passa a ser signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres,[5] que entrou em vigor em 1981.
Como menciona Silvia Pimentel[6]:
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, doravante denominada Convenção da Mulher, em vigor desde 1981, é o primeiro tratado internacional que dispõe amplamente sobre os direitos humanos da mulher. São duas as frentes propostas: promover os direitos da mulher na busca da igualdade de gênero e reprimir quaisquer discriminações contra a mulher nos Estados-parte.
Acrescenta, ainda, a autora:
A Convenção da Mulher deve ser tomada como parâmetro mínimo das ações estatais na promoção dos direitos humanos das mulheres e na repressão às suas violações, tanto no âmbito público como no privado. A CEDAW é a grande Carta Magna dos direitos das mulheres e simboliza o resultado de inúmeros avanços principiológicos, normativos e políticos construídos nas últimas décadas, em um grande esforço global de edificação de uma ordem internacional de respeito à dignidade de todo e qualquer ser humano. Nas palavras da jurista Flávia Piovesan “A Convenção se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade. A Convenção trata do princípio da igualdade, seja como obrigação vinculante, seja como um objetivo”.
Verifica-se, pois, que houve uma grande mobilização mundial para edificação de uma ordem internacional de respeito à dignidade de todo e qualquer ser humano, resultando na criação de um aparato principiológico, normativo e político em defesa dos direitos das mulheres.
Essa conclusão se extrai da própria Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pela Organização das Nações Unidas (1979). A propósito:
Artigo 1º - Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos: político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Artigo 2º - Os Estados-parte condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a: (...) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1979, p. 8)
Essa nova onda de proteção, resultou em outra convenção denominada Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, também conhecida como Tratado de Belém do Pará, que previu a necessidade da existência de políticas públicas afirmativas para a proteção de direitos, abarcando áreas como trabalho, saúde, direitos civis e políticos, dentre outros.
Segundo Costa[7], a temática da violência doméstica e familiar contra a mulher passou a ganhar relevância na década de 70, com especial destaque no final do século XX, quando foi realizada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994).
Segundo o autor:
A violência contra a mulher é um tema que ganhou grande relevância a partir da década de 1970 no Brasil e no restante do mundo, dispondo de ainda mais destaque no início do século XXI até os dias atuais. Ela pode ser definida, conforme a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994), ser “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”
No âmbito interno, em decorrência da grande inércia do Poder Público em reprimir atos de violência contra a mulher, surgiu um caso emblemático que levou a situação até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O caso envolvia a senhora Maria da Penha Fernandes que, em 1983, sofreu uma tentativa de homicídio praticada pelo seu próprio cônjuge, que atirou pelas suas costas, deixando-a paraplégica.
Como o casal permaneceu residindo no mesmo lar, o marido novamente atentou contra a vida de Maria da Penha Fernandes, tentando eletrocutá-la no chuveiro de casa. Apenas em 1991 o réu foi levado à júri pela primeira vez, sendo o julgamento posteriormente anulado pelos advogados de defesa. Contudo, em 1996, o réu foi novamente julgado pelo Tribunal do Júri, sendo condenado a uma pena de 10 anos e seis meses pela tentativa de homicídio. Dessa decisão a defesa recorreu e o recurso levou mais de 15 anos para ser julgado.
Em decorrência da omissão estatal em apurar o crime cometido, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) encaminharam denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos de omissão quanto ao tratamento da questão. Após deliberações, sobreveio a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com efeito, o Brasil teve que assumir o compromisso de reformular as suas leis e políticas em relação à violência doméstica.
Nesse norte, foi editada a Lei n. 11.340/2006 prevendo, em seu artigo 5º, que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. A lei cuidou de amparar todas as pessoas que se identificam com o sexo feminino, abrangendo, portanto, as heterossexuais, homossexuais e mulheres transexuais.
Além disso, por imposição legal e presuntiva, há de se considerar que existe uma situação de vulnerabilidade em relação à vítima e ao agressor. O artigo 6º da Lei Maria da Penha, por sua vez, assenta que “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.”. (BRASIL, 2006).
AUDIÊNCIA PARA CONFIRMAÇÃO DA RETRATAÇÃO À REPRESENTAÇÃO DA OFENDIDA
Para cumprir a finalidade para qual foi criada, ou seja, barrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ao longo da disposição de seus artigos, concede às mulheres providências de assistências e prevenção, bem como medidas protetivas de urgência, elencando ainda a atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública, promovendo alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal, e o atendimento especial em sede de Polícia Judiciária (GARCIA, 2019).
Especial atenção nos trouxe a modificação no que se refere à retratação à representação oferecida como requisito de procedimental. Com efeito, foi estabelecida uma forma mais rigorosa para a renúncia ao direito de representação da vítima, nos casos de crimes de Ação Pública Condicionada, conforme previsto no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006.[8]
Destarte, em casos de aplicabilidade da Lei Maria da Penha aos crimes processados mediante Ação Penal Pública Condicionada à representação, sobrevindo manifestação pela retratação daquela, surge a obrigatoriedade do juiz designar audiência prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006, antes de receber a inicial acusatória. Tal medida visa, tão somente, aferir se a vontade manifestada pela vítima em se retratar está sendo expressada de forma livre de qualquer coação, ameaça, vulnerabilidade ou violência.
Destaque-se, por oportuno, que é claro e inquestionável o sentido da norma ao determinar que a representação é cabível apenas nas ações penais públicas condicionadas, nas quais a representação da vítima constitui condição de procedibilidade para a instauração do inquérito policial e de futura ação penal, não se aplicando, portanto, aos casos de ação penal pública propriamente dita.
É de bom alvitre trazer o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4424 e a ADC 19, ambas de Relatoria do então Ministro Marco Aurélio de Mello, no sentido de “a ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada” (ADI 4424/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO, Plenário do STF, julgada em 9/2/2021, DJe de 1/8/2014).
Nessa mesma esteira e referendando o posicionamento do excelso Supremo Tribunal Federal, o colendo Superior Tribunal de Justiça editou enunciado de Súmula n. 542, dispondo que “a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”. Assim sendo, em relação a tais delitos, mostra-se irrelevante perquirir sobre a audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006.
No que se refere aos crimes processados mediante ação penal pública condicionada à representação da vítima, acertadamente, o Tribunal Cidadão se posicionou assentando que não há como se interpretar a regra contida no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 como uma audiência destinada à confirmação do interesse da vítima em representar contra seu agressor, pois a letra da lei deixa claro que tal audiência se destina à confirmação da retratação.
A decisão ficou assim ementada:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. AUDIÊNCIA DO ART. 16 DA LEI 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). REALIZAÇÃO. NECESSIDADE DE PRÉVIA MANIFESTAÇÃO DO DESEJO DA VÍTIMA DE SE RETRATAR. IMPOSSIBILIDADE DE DESIGNAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE OFÍCIO PELO MAGISTRADO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL PROVIDO.
1. Recurso representativo de controvérsia, para atender ao disposto no art. 1.036 e seguintes do CPC/2015 e na Resolução STJ n. 8/2008.
2. Delimitação da controvérsia: "Definir se a audiência preliminar prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) é ato processual obrigatório determinado pela lei ou se configura apenas um direito da ofendida, caso manifeste o desejo de se retratar".
3. TESE: "A audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006 tem por objetivo confirmar a retratação, não a representação, e não pode ser designada de ofício pelo juiz. Sua realização somente é necessária caso haja manifestação do desejo da vítima de se retratar trazida aos autos antes do recebimento da denúncia".
4. Nos termos do art. 16 da Lei 11.340/2006, "nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público".
5. É imperativo que a vítima, sponte propria, revogue sua declaração anterior e leve tal revogação ao conhecimento do magistrado para que se possa cogitar da necessidade de designação da audiência específica prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha. Pode-se mesmo afirmar que a intenção do legislador, ao criar tal audiência, foi a de evitar ou pelo menos minimizar a possibilidade de oferecimento de retratação pela vítima em virtude de ameaças ou pressões externas, garantindo a higidez e autonomia de sua nova manifestação de vontade em relação à persecução penal do agressor.
6. Não há como se interpretar a regra contida no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 como uma audiência destinada à confirmação do interesse da vítima em representar contra seu agressor, pois a letra da lei deixa claro que tal audiência se destina à confirmação da retratação.
Como regra geral, o Direito Civil (arts. 107 e 110 do CC) já prevê que, exarada uma manifestação de vontade por indivíduo reputado capaz, consciente, lúcido, livre de erros de concepção, coação ou premente necessidade, tal declaração é válida até que sobrevenha manifestação do mesmo indivíduo em sentido contrário.
Transposto o raciocínio para o contexto que circunda a violência doméstica, a realização de novo questionamento sobre a subsistência do interesse da vítima em representar contra seu agressor ganha contornos mais sensíveis e até mesmo agravadores do estado psicológico da vítima, na medida em que coloca em dúvida a veracidade de seu relato inicial, quando não raras vezes ela está inserida em um cenário de dependência emocional e/ou financeira, fazendo com que a ofendida se questione se vale a pena denunciar as agressões sofridas, enfraquecendo o objetivo da Lei Maria da Penha de garantir uma igualdade substantiva às mulheres que sofrem violência doméstica e até mesmo levando-as, desnecessariamente, a reviver os traumas decorrentes dos abusos.
7. De mais a mais, tomar como obrigatória e indispensável a realização da audiência do art. 16 da Lei 11.340/2006, com o único objetivo de confirmar representação já efetuada, implica estabelecer condição de procedibilidade não prevista na lei. Precedentes desta Corte.
8. CASO CONCRETO: Situação em que o Tribunal a quo anulou, de ofício, a partir da decisão de recebimento da denúncia, ação penal na qual o réu fora condenado pelo delito do art. 147 do Código Penal, por reputar obrigatória a realização da audiência do art. 16 da Lei 11.340/2006, mesmo tendo a vítima ratificado, em juízo, sua intenção de ver o réu processado pelas ameaças de morte a si dirigidas.
9. Recurso especial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais provido, para cassar o acórdão recorrido, no que tange à decretação, de ofício, da nulidade do processo a partir da denúncia, devendo o julgamento prosseguir para análise das demais teses defensivas.
(REsp n. 1.964.293/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 8/3/2023, DJe de 29/3/2023.)
Especial relevância possui o seguinte trecho do voto do eminente Ministro Reynaldo Soares da Fonseca:
A interpretação do tema adotada por este Tribunal Superior, a meu sentir, se alinha perfeitamente ao objetivo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, celebrada em 1979, na ONU, e incorporada ao direito interno pelo Decreto n. 4.377, de 2002, ao buscar tornar mais efetivo o microssistema jurídico voltado à proteção da mulher vítima de violência doméstica. Atende, ainda, à Recomendação n. 35, de 2017, do Comitê para eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW) na qual se ponderou que, dentre as obrigações gerais dos Estados Partes relativas à violência de gênero, em nível judicial, “de acordo com os arts. 2º, alíneas “d” e “f”, e art. 5º, alínea “a”, todos os órgãos judiciais devem se abster de praticar qualquer ação ou prática de discriminação ou violência de gênero contra as mulheres; e aplicar rigorosamente todas as disposições de Direito Penal que punam essa violência, garantindo que todos os procedimentos legais em casos envolvendo alegações de violência de gênero contra as mulheres sejam imparciais e justos e não sejam afetados por estereótipos de gênero ou interpretações discriminatórias de disposições legais, inclusive de Direito Internacional. A aplicação de noções preconcebidas e estereotipadas sobre o que constitui violência de gênero contra as mulheres, as quais deveriam ser as respostas das pacientes a essa violência e o padrão de prova exigido para sustentar sua ocorrência, pode afetar o direito das mulheres ao gozo da igualdade perante a lei, ao julgamento justo e ao direito a uma reparação efetiva, como estabelecido no artigo 2 e no 15 da Convenção” (in Recomendação Geral n. 35 sobre violência de gênero contra as mulheres do comitê para eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW) – Série tratados internacionais de Direitos Humanos, Conselho Nacional de Justiça, Brasília, 2019 – disponível no endereço eletrônico: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2019/09/769f84bb4f9230f283050b7673aeb063.pdf , acesso em 1º/2/2023).
Antes mesmo do julgamento desse Tema 1.167, sob a sistemática de recursos repetitivos, o Superior Tribunal de Justiça já sinalizava esse posicionamento, conforme se depreende do julgamento do HC 303.171/SP, de relatoria do Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 22/9/2015, DJe 13/10/2015, no qual assentou-se:
se a vítima demonstrar, por qualquer meio, interesse em retratar-se de eventual representação antes do recebimento da denúncia, a audiência preliminar prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 deve ser realizada. Todavia, se não há a iniciativa da vítima de levar ao conhecimento da autoridade policial ou judiciária sua vontade de retratar-se, deve o Magistrado proceder à admissibilidade da acusação, pois a designação de ofício dessa audiência importa em implemento de condição de procedibilidade não prevista na Lei Maria da Penha, qual seja, a ratificação da representação, o que inquina o ato de nulidade.[9]
Imperiosa, ainda, é a lição de Sérgio Ricardo de Souza[10] sobre o tema:
Nos crimes caracterizados pela violência doméstica e familiar contra a mulher, essa retratação tem se constituído em uma das formas mais comuns dessa anômala extinção de punibilidade, principalmente em decorrência das pressões levadas a efeito por parentes, amigos e pela própria pessoa indiciada como suposto agressor e, diferentemente da regra geral, o limite temporal para a ‘ratificação’ da retratação vem a ser o recebimento da denúncia e não o oferecimento da peça acusatória, sendo importante destacar que a manifestação da vítima quanto à retratação ocorrerá necessariamente antes do recebimento da peça acusatória e, em havendo tal manifestação, será designada a audiência de ratificação daquela retratação (renúncia) prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006, não cabendo ao juiz, em regra, designar a audiência em questão ex officio, sem prévia manifestação da vítima.
No mesmo sentido, a brilhante colocação de Carolina Gomes Monteiro Souza[11]:
A desistência nas ações penais públicas condicionadas à representação dispostas no art. 16 poderá ocorrer, desde que a vítima a formalize perante a autoridade judiciária em audiência própria e desde que ocorra antes do recebimento da denúncia pelo juiz, ouvido o Ministério Público. Para alguns doutrinadores, a realização da audiência objetiva dificultar a desistência da vítima, reforçando o investimento estatal já promovido para a proteção destas mulheres desde o momento em que ela buscou o aparato jurídico-policial.
Por fim, as lições de Dias[12], segundo o qual:
Além do juiz devem estar presentes a vítima, seu defensor e o representante do Ministério Público. A ausência do promotor, não impede a realização da audiência. Basta ter sido intimado. E, embora deva estar presente na audiência, não pode opor-se à renúncia da representação. Cabe-lhe perquirir se a vítima não está sendo coagida a desistir da representação, e, caso assim entenda, pode postular o adiamento da audiência e o atendimento da ofendida por equipe multidisciplinar.
Portanto, o que se depreende de todo o contexto exposto é que a remansosa jurisprudência do c. Superior Tribunal de Justiça caminha ao encontro do que preceitua o art. 228, §8º, da Constituição Federal, bem como da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Tratado de Belém do Pará), sobretudo no que se refere à edificação de um aparato principiológico, normativo e político em defesa dos direitos das mulheres.
Ao fixar a tese de que “a audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006 tem por objetivo confirmar a retratação, não a representação, e não pode ser designada de ofício pelo juiz. Sua realização somente é necessária caso haja manifestação do desejo da vítima de se retratar trazida aos autos antes do recebimento da denúncia”, o Tribunal Cidadão reforçou a corrente de combate à violência contra a mulher.
Nesse diapasão, agora não restam dúvidas que, nos crimes cometidos no âmbito da violência doméstica e familiar processados mediante ação penal pública condicionada, não existe a possibilidade de se designar audiência para oitiva da vítima com a finalidade de perquirir sobre o desejo, ou não, de representar o acusado, sendo a realização da solenidade única e exclusivamente direcionada a aferir se a vontade manifestada pela vítima em se retratar está sendo expressada de forma livre de qualquer coação, ameaça, vulnerabilidade ou violência.
CONCLUSÃO
Ressai do presente trabalho a inequívoca convicção que a realização da audiência para confirmação da retratação à representação oferecida nos crimes processados mediante ação penal pública condicionada, prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006, é um direito subjetivo da ofendida, caso manifeste interesse em se retratar, não podendo o magistrado designá-la de ofício. Tampouco se deve marcar a audiência para confirmar se a vítima possui, de fato, interesse em representar o acusado, seja porque existe toda uma rede normativa de apoio, seja porque os Tribunais Superiores encontram-se caminhando com os postulados necessários para edificar um aparato principiológico, normativo e político em defesa dos direitos das mulheres.
Por fim, vê-se, pois, que entender de modo contrário – que deveria ser designada a audiência para oitiva da vítima sobre o desejo de representar – além configurar um efetivo retrocesso na defesa das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, promoveria uma verdadeira revitimização das ofendidas, promovendo uma ofensa direta a toda uma corrente normativa criada para a defesa desse grupo vulnerário.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 23/03/2023.
COSTA, Alex Junio Duarte. O contexto histórico da violência contra mulher e a atuação do psicólogo. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 07, Vol. 04, pp. 21-37. Julho de 2021. Disponível em: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/historico-da-violencia. Acessado em: 23/03/2023
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BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. HC 303.171/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 22/9/2015, DJe 13/10/2015
SOUZA, Sergio Ricardo in Lei Maria da Penha comentada – sob a nova perspectiva dos direitos humanos. 5ª ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 145.
DIAS, M. B. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3.ed.rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
SOUZA, Carolina Gomes Monteiro. Retratação na Lei Maria da Penha: um estudo psicossocial. Maceió, 2017.
[1] Internalizado no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 1.973/1996.
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acessado em: 23/03/2023
[3] https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/? aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%201964293 Acessado em: 23/03/2023
[4] Representação da vítima contra autor de violência doméstica não precisa ser confirmada em audiência. Portal de Notícias do Superior Tribunal de Justiça, 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/09032023-Representacao-da-vitima-contra-autor-de-violencia-domestica-nao-precisa-ser-confirmada-em-audiencia.aspx Acessado em 23/03/2023.
[5] Organização das Nações Unidas (1979
[6] https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2012/11/SPM2006_CEDAW_portugues.pdf
[7] COSTA, Alex Junio Duarte. O contexto histórico da violência contra mulher e a atuação do psicólogo. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 07, Vol. 04, pp. 21-37. Julho de 2021. Disponível em: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/historico-da-violencia. Acessado em: 23/03/2023
[8] Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
[9] (HC 303.171/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 22/9/2015, DJe 13/10/2015)
[10] (in Lei Maria da Penha comentada – sob a nova perspectiva dos direitos humanos. 5ª ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 145).
[11] SOUZA, Carolina Gomes Monteiro. Retratação na Lei Maria da Penha: um estudo psicossocial. Maceió, 2017.
[12] DIAS, M. B. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3.ed.rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
Servidor Público no Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, graduado em direito pela Faculdade Católica de Rondônia, mestrando em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça - DHJUS pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEIXOTO, PEDRO GRAZIEL FILGUEIRA. Audiência de retratação prevista no art.16, da Lei n. 11.340/2006 à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 abr 2023, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61333/audincia-de-retratao-prevista-no-art-16-da-lei-n-11-340-2006-luz-da-jurisprudncia-do-superior-tribunal-de-justia. Acesso em: 25 dez 2024.
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