JOSÉ CARLOS RIBEIRO DA SILVA[1]
(orientador)
RESUMO: O presente estudo traz uma discussão sobre o princípio da insignificância, com o objetivo de verificar a possibilidade sua de aplicação no crime de posse e porte de munições de arma de fogo. Para tanto, utilizou-se pesquisas bibliográficas e revisões literárias de doutrinas, artigos, jurisprudência e periódicos, com publicações entre os períodos de 2018 a 2023, fundamentando os argumentos teóricos e jurídicos apresentados no referido estudo. Assim, ante os dados coletados, analisados e discutidos, constata-se que os Tribunais Superiores têm aplicado o princípio da insignificância aos crimes previstos na Lei nº 10.826/2003, afastando a tipicidade material, quando evidenciado flagrante de desproporcionalidade da resposta penal, como, por exemplo, a apreensão de quantidade ínfima de munição desacompanhada de arma de fogo. Dessa forma, conquanto formalmente típica, a apreensão de uma única munição não é capaz de lesionar ou mesmo de ameaçar o bem jurídico tutelado, especialmente quando ausente qualquer tipo de armamento capaz de deflagrar os projéteis em seu poder. Para aferição da atipicidade das condutas de posse ou porte de munições, em razão do princípio da insignificância, devem ser considerados não somente a quantidade de munições, mas também as outras circunstâncias do caso.
Palavras-chave: Insignificância. Munição. Arma de Fogo. Possibilidade.
THE POSSIBILITY OF APPLYING THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE IN THE CRIMES OF POSSESSION AND POSSESSION OF FIREARM AMMUNITION
ABSTRACT: The present study brings a discussion about the principle of insignificance, with the objective of verifying its possibility of application in the crime of possession and possession of firearm ammunition. To this end, bibliographical research and literary reviews of doctrines, articles, jurisprudence and periodicals were used, with publications between the periods of 2018 to 2023, substantiating the theoretical and legal arguments presented in that study. Thus, in view of the data collected, analyzed and discussed, it appears that the Superior Courts have applied the principle of insignificance to the crimes provided for in Law No. for example, the apprehension of a tiny amount of ammunition unaccompanied by a firearm. Thus, although formally typical, the seizure of a single ammunition is not capable of injuring or even threatening the protected legal interest, especially when there is no type of weapon capable of detonating the projectiles in its possession. In order to assess the atypical conduct of possession or possession of ammunition, due to the principle of insignificance, not only the amount of ammunition must be considered, but also the other circumstances of the case.
Keywords: Insignificance. Ammunition. Fire gun. Possibility.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do crime de posse e porte de arma de fogo: Aspectos gerais. 3. Do princípio da insignificância. 4. Aplicação do princípio da insignificância aos crimes de posse e porte de munição de arma de fogo. 5. Considerações Finais. 6. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Todo crime gera, de alguma forma, uma consequência; seja para a vítima, para os familiares, para os operadores do Direito ou para a sociedade. No entanto, existem alguns crimes que não causam um efeito danoso para nenhum desses agentes, sendo considerados irrelevantes ou insignificantes aos olhos do Direito e até da própria sociedade.
Sabe-se que uma das metas da norma penal é proteger os bens jurídicos que têm grande valor entre os membros da sociedade. Apesar disso, existem casos onde verifica-se que a aplicação literal da lei pode gerar casos de inexistência de razoabilidade, equiparando condutas que causam lesões de distintos graus, tipificando-as conjuntamente, não existindo proporcionalidade entre o dano causado e a pena cominada. Tal fato configura uma afronta a um dos mais importantes fundamentos constitucionais - a dignidade da pessoa humana - obrigando um indivíduo a cumprir penas mais severas do que o mal causado.
Diante desse contexto, o presente estudo tem como finalidade analisar a aplicabilidade do princípio da insignificância, que é justamente o princípio que aduz que a penalidade de um ato delituoso deve estar conjuminada à sua consequência nas esferas jurídicas, individuais e sociais.
Em outras palavras, tal princípio está diretamente ligado aos crimes que não afetam de maneira ofensiva à sociedade e ao Estado. O que se busca é afastar a tipicidade material, possibilitando a não punição da conduta, defendendo o fato de que o bem jurídico tutelado não seja lesionado de forma que justifique a sua penalização.
Para melhor limitar essa temática, discutiu-se como pode-se ser aplicar tal princípio no crime de porte de munição de arma de fogo, tipificado nos artigos 12, 14 e 16, todos da Lei 10.826/2003, ao qual é crime possuir, portar, deter, ceder, ainda que gratuitamente, transportar, (...) munição de arma de fogo (BRASIL, 2003).
No decorrer da análise do tema proposto, procurou-se responder à seguinte indagação: é possível aplicar o princípio da Insignificância no crime de porte de munição de arma de fogo no Brasil? Ademais, buscou-se encontrar os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre essa situação.
Empregou-se a metodologia de revisão da literatura, tendo como fonte de pesquisa as bases de dados digitais: Scientific Electronic Library Online (Scielo) e Lilacs, juntamente com a leitura de livros, periódicos e apoiando-se na legislação e jurisprudência brasileira.
2. CRIME DE PORTE E POSSE DE ARMA DE FOGO: ASPECTOS GERAIS
O crime de posse e porte de arma de fogo é amplamente discutido na área de Segurança Pública. Diante do aumento da criminalidade e da pouca efetivação do combate a esse agravo social, muitos cidadãos têm buscado a aquisição de armas de fogo com o intuito de se protegerem de eventual perigo.
O uso da arma de fogo não é uma unanimidade, nem na sociedade, nem no meio jurídico. Vale ressaltar que de acordo com a legislação, tal uso é recomendado somente em última instância. Nesse caso, citam-se os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (PBUFAF, 1990) “adotados no 8º Congresso das Nações Unidas sobre a ‘Prevenção do Crime e o Tratamento dos Infratores’, realizado em Havana, Cuba, em 1990” (UFP, SENASP, 2012, p. 7).
Este regramento possui 26 artigos que dispõem basicamente de orientações e prescrições sobre o uso da arma de fogo por parte dos encarregados de aplicação da lei, bem como o dever do Estado em proporcionar segurança de qualidade aos cidadãos, com respeito à dignidade da pessoa humana, no intuito de garantir os direitos fundamentais, e dentre eles, o direito à vida. (BRASIL, 1990).
De acordo com estes dispositivos, delibera-se que os representantes dos governos forneçam a seus policiais, como meios alternativos ao uso letal da força, a utilização de armas incapacitantes não letais, juntamente a treinamentos para a administração destes, diminuindo-se o uso de arma de fogo e disciplinando que o emprego de ações letais seja efetivado somente em casos extremos (PINTO; VALÉRIO, 2018).
Segundo Pinto e Valério (2018, p. 51), devem-se fazer todos os esforços no sentido de excluir a utilização de armas de fogo. Em geral, só se deveria utilizá-las quando o suspeito oferecer resistência armada ou quando pôr em risco as vidas alheias, não sendo suficientes as medidas menos extremas para dominar ou deter o delinquente suspeito. Vale mencionar a Lei nº. 13.060/14 que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública no Brasil.
“Art. 2o Os órgãos de segurança pública deverão priorizar a utilização dos instrumentos de menor potencial ofensivo, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais, e deverão obedecer aos seguintes princípios:
I - legalidade;
II - necessidade;
III - razoabilidade e proporcionalidade.
Parágrafo único. Não é legítimo o uso de arma de fogo:
I - contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros; e
II - contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros.
(...)
Art. 4o Para os efeitos desta Lei, consideram-se instrumentos de menor potencial ofensivo aqueles projetados especificamente para, com baixa probabilidade de causar mortes ou lesões permanentes, conter, debilitar ou incapacitar temporariamente pessoas.”
(BRASIL, 2014)
Com base no exposto, mostra-se que a lei é taxativa em relação à proibição do uso de arma letal em determinados casos. Sendo assim, não é legítimo o uso de arma de fogo contra indivíduo em evasão que esteja desarmado ou que não coloque em risco de morte e lesão os agentes de segurança pública ou outras pessoas.
O que se entende é que a seguinte norma defende os valores da vida, servindo também como mecanismo para evitar abusos cometidos por agentes públicos de má índole que se utilizam de suas funções para cometer crimes. Isso impediria que abordagens simples que não resultariam em risco à vida humana terminassem tragicamente por despreparo ou desequilíbrio emocional do agente que deveria ser responsável por preservar a vida (LOPES, 2019).
Uma vez entendido que os agentes de segurança pública devem a todo modo evitar o uso indiscriminado de arma de fogo, destaca-se que a posse e o porte dessas armas pelo cidadão comum também possuem limitações. Nesse sentido, a regulamentação sobre o porte e posse de armas de fogo está à luz da Lei nº 10.826/2003 de alcunha de Estatuto do Desarmamento, que traz algumas regulamentações para se obter a posse ou porte de arma de fogo.
“Art. 4o Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:
I - Comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;
II – Apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;
III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei.
§ 1o O Sinarm expedirá autorização de compra de arma de fogo após atendidos os requisitos anteriormente estabelecidos, em nome do requerente e para a arma indicada, sendo intransferível esta autorização
§ 2o A aquisição de munição somente poderá ser feita no calibre correspondente à arma registrada e na quantidade estabelecida no regulamento desta Lei.
(...)
§ 5o A comercialização de armas de fogo, acessórios e munições entre pessoas físicas somente será efetivada mediante autorização do Sinarm.
§ 6o A expedição da autorização a que se refere o § 1o será concedida, ou recusada com a devida fundamentação, no prazo de 30 (trinta) dias úteis, a contar da data do requerimento do interessado.
§ 7o O registro precário a que se refere o § 4o prescinde do cumprimento dos requisitos dos incisos I, II e III deste artigo.
§ 8o Estará dispensado das exigências constantes do inciso III do caput deste artigo, na forma do regulamento, o interessado em adquirir arma de fogo de uso permitido que comprove estar autorizado a portar arma com as mesmas características daquela a ser adquirida.”
(BRASIL, 2003)
A supracitada norma define que a posse se limita ao interior da residência ou local de trabalho, desde que o proprietário cumpra alguns requisitos, justiçando-se o porquê da aquisição e a real necessidade para seu uso. O porte definido pela Lei 10.826/2003 infere que a arma de fogo pode ser transportada em local diverso da sua residência ou local de trabalho. Vale a pena ressaltar que no Brasil é proibido o porte de arma pelo cidadão comum, ressalvados os casos excepcionais, como o dos agentes de segurança pública citados anteriormente.
3. DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O conceito histórico do princípio da insignificância não é recente, e de acordo com Cintra (2019), tal princípio tem seu nascedouro na Roma Antiga, oriundo do brocardo mínima non curat pretor, fazendo-se presente desde os primórdios da área jurídica. A primeira norma que retoma a natureza desse princípio (ainda que não expresso de forma direta) é a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, por meio do seu art. 5º ao qual afirmava que a lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade, ou seja, somente aquelas ações que de fato atingem negativamente a sociedade pode ser punida (ALMEIDA, 2020).
Silva (2018) explica que o princípio da insignificância desde sempre esteve interligado ao da Legalidade, e como explica Di Pietro (2017), este é o princípio pelo qual ninguém pode ser afetado em sua liberdade senão em virtude de lei. Após a Primeira e Segunda Guerra mundial, houve um significativo crescimento de furtos de objetos e valores irrelevantes, em razão do aumento da miséria, desemprego e falta de insumos alimentícios. Esses ilícitos foram chamados de Criminalidade de Bagatela, em razão dos valores baixos encontrados (NOHARA, 2019).
Frente a esse cenário, em 1964, Claus Roxin criou de forma contundente o princípio da insignificância, dando sentido e legalidade ao termo e ao seu significado. Nas palavras de Prado (2019), Claus Roxin trouxe a formulação com base de validez geral para se determinar o que é “injusto penal”, através da introdução do princípio da insignificância como regra auxiliar de interpretação, excluindo, da maioria dos tipos, os danos de menor importância.
O princípio da insignificância, cabe frisar, não se limita apenas a um caráter econômico de cunho patrimonial. Ele vai além, se direcionando também a conteúdos de diversas normas penais, devendo ser projetado em todas as condutas definidas como crime, garantindo que somente às ações com um caráter substantivamente penal recaiam a incidência das normas penais. (PADRO, 2019).
Sob essa ótica, defende-se pelo princípio da insignificância a não punição de crimes cujo efeito social é mínimo (NOHARA, 2019). Nos dizeres de Estefam (2018), o princípio é caracterizado por possuir escassa reprovabilidade, baixa ofensa à bem jurídico irrelevante e pouca habitualidade, tendo maior incidência em crimes contra o patrimônio, crimes de trânsito e por conveniência político-criminal.
Segundo informa Greco (2016), o grau de lesão do bem jurídico protegido é o principal ponto de preocupação no que se refere ao princípio da insignificância, posto que não se deve ocupar o Direito Penal com assuntos de somenos importância que em nada prejudicam o bem jurídico tutelado. Assim, deve-se existir análise específica sobre até que ponto a lesão ou o perigo de lesão configura o injusto penal dentro da tipicidade. Nas palavras de Masson (2018, p. 133), o princípio da insignificância é o “instrumento para a exclusão da imputação objetiva de resultados”.
O renomado doutrinador Luiz Flávio Gomes (2013) ao discorrer sobre o conceito do princípio em destaque afirma que ele expressa o fato de ninharia, de pouca relevância (ou seja, insignificante). É uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse caso.
Bitencourt (2019) por sua vez, pontua que a tipicidade penal somente vai ocorrer e trazer efeitos para o mundo jurídico quando houver uma ofensa que traga uma gravidade considerável aos bens jurídicos tutelados, já que nem toda ofensa aos bens ou interesses tutelados pelo Estado são suficientes para caracterizar o injusto penal. Por conta disso, Guadanhim (2018) esclarece que o princípio da insignificância deve estar diretamente ligado a uma proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a necessidade da intervenção estatal, isto é, condutas que equivalem a um determinado tipo penal, porém, formalmente não possuem relevância material para requererem o afastamento da tipicidade penal, posto que o bem jurídico não foi relevantemente lesado.
Cabe destacar que o bem jurídico de menor relevância é o que não possui importância suficiente, tida como grau mínimo para intervenção concreta do Estado no tocante à esfera penal. Não se pode confundi-las com as infrações de menor potencial ofensivo previstas pela Carta Magna, posto que não há relação direta entre a ofensividade e a irrelevância do bem jurídico. A potencialidade ofensiva relaciona-se à faculdade de ação lesiva ao bem jurídico que não possua juízo de valor, relevante ou não (PRADO, 2019)
Panis, Scherner e Wendramin (2019) esclarecem que o princípio da insignificância interpreta de forma restritiva o tipo penal, classificando-o de forma qualitativa e quantitativa, em conformidade com o grau de lesividade da conduta, excluindo da incidência penal apenas os fatos que, apesar de atingirem bens tutelados, são insignificantes.
Em outra observação, Silva (2018) salienta que o princípio da insignificância atua no sentido de impedir que se processem condutas socialmente irrelevantes, visando que a Justiça não fique atolada de processos e permitindo que fatos irrisórios, irrelevantes, não estigmatizem seus autores. No Brasil, esse princípio foi pela primeira vez mencionado em um julgamento (e não na lei) feito pelo Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 66.869-1 PR, em 06/12/1988, em um caso de lesão corporal relativo a acidente de trânsito, em que se verificou que a lesão era irrelevante e, por isso, entendeu-se que não havia sido configurado o crime, impedindo-se a instauração da ação penal (FLORENZANO, 2018).
Apesar disso, não há no Brasil ainda uma lei específica que regule o princípio da insignificância. Não existe ainda uma norma que traga a previsão legal deste princípio, ficando a cargo da jurisprudência pátria a sua análise de aplicação. É por meio de decisões judiciais que o princípio da insignificância pode ser encontrado (NOHARA, 2019).
Uma vez estabelecido os principais aspectos, para que o princípio da insignificância seja de fato aplicado, é preciso observar determinados requisitos, que são: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; grau de reprovabilidade do comportamento muito reduzido e inexpressividade da lesão ao bem jurídico protegido. A respeito disso, trata o seguinte julgado:
“APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO SIMPLES. ABSOLVIÇÃO. SENTENÇA PROFERIDA UNICAMENTE EM MEIO AUDIOVISUAL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ. [...] 2. A incidência do princípio da insignificância é condicionada ao preenchimento dos seguintes requisitos: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) ausência de periculosidade social da ação; (iii) grau de reprovabilidade do comportamento muito reduzido; (iv) inexpressividade da lesão ao bem jurídico protegido (Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça). 3. O parâmetro para reconhecer a inexpressividade da lesão ao bem jurídico tutelado é de 10% do salário mínimo à época do fato (percentual adotado pelo Superior Tribunal de Justiça). A res furtiva foi avaliada em R$ 250,00, valor superior a 10% do salário mínimo vigente à época dos fatos - julho de 2019, não havendo que se falar em inexpressividade ao bem jurídico a atrair a aplicação do princípio da insignificância. 4. O conjunto de provas existente no caderno processual é frágil quanto à autoria do delito atribuída ao réu, mostrando-se, por conseguinte, insuficiente para o julgamento de procedência do pedido condenatório deduzido na denúncia. Os elementos indiciários produzidos na fase pré-processual não foram confirmados com suficiência na fase de instrução da ação penal. 5. Recurso parcialmente provido, apenas para afastar a aplicação do princípio da insignificância, mantendo a absolvição por ausência de prova jurisdicionalizada.” (TJTO, Apelação Criminal (PROCESSO ORIGINÁRIO EM MEIO ELETRÔNICO), 0004060-18.2021.8.27.2729, Rel. HELVÉCIO DE BRITO MAIA NETO, 2ª TURMA DA 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgado em 02/08/2022, DJe 04/08/2022 14:09:49). (grifo meu)
No exposto, o magistrado afastou a aplicação do princípio da insignificância em razão da falta de provas contundentes que demonstrassem a pouca lesividade do ato ilícito. ficando claro que na ausência dos requisitos do princípio, não há como ele ser aplicado. Em outro julgado, de mesmo entendimento, cita-se:
“APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO QUALIFICADO MEDIANTE FRAUDE. RECURSO DA DEFESA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. VÍTIMA IDOSA (90 ANOS). ELEVADO GRAU DE REPROVABILIDADE DA CONDUTA. MAUS ANTECEDENTES. RESPONDE A AÇÕES PENAIS POR FURTO. PERICULOSIDADE. REQUISITOS NÃO DEMONSTRADOS. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1- Para a aplicação do princípio da insignificância é necessário que haja a mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2- Apesar do valor furtado ser baixo, ausentes dois dos requisitos para a aplicação do princípio da insignificância, pois o apelante responde a outras ações penais por crime de furto, e o delito foi praticado mediante fraude, contra idosa de 90 anos, o que eleva o grau de reprovabilidade da conduta. 3- É interesse do Estado punir infratores contumazes, para desestimular a criminalidade, ainda que o valor furtado seja baixo, porque o fato de se admitir a incidência do princípio da insignificância, em casos como tais, o infrator poderá fazer destes delitos o seu meio de vida. 4- Apelação conhecida e não provida.”
(TJTO, Apelação Criminal (PROCESSO ORIGINÁRIO EM MEIO ELETRÔNICO), 0000194-04.2022.8.27.2717, Rel. ANGELA ISSA HAONAT, 5ª TURMA DA 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgado em 01/11/2022, DJe 04/11/2022 14:46:04). (grifo meu)
Conforme a jurisprudência supracitada, o magistrado deixa claro que o princípio da insignificância não fora aplicado em razão da reincidência do réu em cometer delitos. Como bem frisado na ementa, o fato de o valor furtado seja baixo, não o torna passível de se aplicar tal princípio, em razão do fato de que o apelante responde a outras ações penais pelo mesmo crime, o que afasta de imediato o requisito do mínimo grau de reprovabilidade do comportamento.
Ademais, verifica-se que o princípio da insignificância pode ser aplicado no Direito brasileiro, desde que observado os seus requisitos. Para melhor discussão sobre esse princípio, é viável liga-lo ao crime de posse e porte de arma de fogo que será analisado posteriormente.
4. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES DE POSSE E PORTE DE MUNIÇÃO DE ARMA DE FOGO
Como já citado anteriormente, esse princípio ainda não encontrou normatividade no ordenamento jurídico brasileiro. Desse modo, tal temática se baseia exclusivamente na jurisprudência e na doutrina jurídica.
Devido a esse fato, há anos a doutrina e os próprios Tribunais têm debatido sobre a aplicação desse princípio no caso presente. Sempre discutiu-se a conduta do agente que possui ou porta arma de fogo desmuniciada, ou o contrário, possui ou porta munições desacompanhadas de arma de fogo, podendo ser passível a aplicação do princípio da insignificância.
Capez (2022), ao discorrer sobre a hipótese de posse ou porte de arma de fogo ineficaz, mas municiada, entende que de nada serviriam projéteis de uma arma que não funciona, os quais teriam, assim, a mesma lesividade de qualquer objeto contundente e não resultariam em nenhum perigo para a incolumidade pública. Conclui o autor que, para haver lesividade e, por consequência, ocorrer a incriminação da conduta, devem as munições se encontrarem próximas a armas de fogo aptas à detonação.
Carvalho (2020) lembra ainda que a criminalização da conduta de quem mantém consigo, porta ou transporta, dentre outras condutas, uma única munição de uso restrito, por exemplo, representa a imposição de uma pena de ao menos 3 (três) e de no máximo 06 (seis) anos de reclusão, com uma pena mínima maior do que a de crimes contra a vida, como o induzimento, a instigação ou o auxílio ao suicídio (penas de 02 (dois) a 06 (seis) anos, se o suicídio se consuma), o aborto praticado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante (penas de 03 (três) a 10 (dez) anos) e de outros crimes de dano, como a lesão corporal de natureza grave que resulta na incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização de um membro, sentido ou função; deformidade permanente ou aborto (penas de 02 (dois) a 08 (oito) anos).
Segundo o supracitado autor, a desproporção da aplicação penal nesses casos salta aos olhos, pois pune com maior rigor o porte ou posse de munições que representa pouco ou nenhum perigo potencial à incolumidade pública do que ações que provocam graves lesões a bens jurídicos da mais alta importância, como a vida. (CARVALHO, 2020).
Tem-se entendido que o tipo penal é misto-alternativo e que a simples posse de munição de uso permitido, ainda que desacompanhada da arma de fogo respectiva, caracteriza o crime do art. 12, caput, da Lei 108256/03. Além disso, o crime é de mera conduta e de perigo abstrato (CAPEZ, 2022). No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm decidido pela atipicidade material do porte ou posse de munição, de uso permitido e restrito, em pequena quantidade e desacompanhada da apreensão de arma de fogo, por força do princípio da insignificância.
Nesse sentido, no campo jurisprudencial, ao longo dos últimos anos, tem se posicionado de várias formas para aplicar o princípio da insignificância. O Supremo Tribunal de Justiça, pacificou suas jurisprudências no sentido de, em regra, ser típica a conduta de portar munições desacompanhadas de arma de fogo, ao argumento, fundamentalmente, de serem delitos classificados como de perigo abstrato ou presumido, bastando o simples porte de arma de fogo para a sua consumação, independentemente de qualquer resultado posterior (HABIB, 2019).
Desse modo, a priori, não se encontra base para aplicação do presente princípio no caso em questão, conforme expõe a seguinte decisão:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ART. 14 DA LEI N. 10.826 /2003. PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO DESACOMPANHADA DE ARMA DE FOGO. TIPICIDADE DA CONDUTA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. INEXIBILIDADE DE RESULTADO NATURALÍSTICO. QUANTIDADE APREENDIDA. IRRELEVÂNCIA. REINCIDÊNCIA GENÉRICA DO ACUSADO. DEMONSTRAÇÃO DO DESPREZO SISTEMÁTICO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AFASTAMENTO. PECULIARIDADES DO CASO. DOSIMETRIA. UTILIZAÇÃO DE CONDENAÇÃO DE OUTRO INDIVÍDUO NA PRIMEIRA FASE. REDIMENSIONAMENTO DA PENA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça aponta que os crimes previstos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003 são de perigo abstrato, sendo desnecessário perquirir sobre a lesividade concreta da conduta, porquanto o objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física e sim a segurança pública e a paz social, colocadas em risco com o porte de munição, ainda que desacompanhada de arma de fogo. Por esses motivos, via de regra, é inaplicável o princípio da insignificância aos crimes de posse e de porte de arma de fogo ou munição (STJ. AgRg no HC n. 763.871/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 13/9/2022, DJe de 21/9/2022). Nesses termos, a condição de reincidente do réu impede a aplicação do princípio da insignificância que deve ser reservada para casos excepcionais.” 2. [...] (TJTO, Apelação Criminal (PROCESSO ORIGINÁRIO EM MEIO ELETRÔNICO), 0005970-51.2019.8.27.2729, Rel. PEDRO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, 4ª TURMA DA 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgado em 25/10/2022, DJe 26/10/2022 16:46:27). (grifo meu)
Embora a regra seja a caracterização da natureza criminosa da conduta, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal passou a admitir a incidência do princípio da insignificância na hipótese da posse de pequena quantidade de munição, desacompanhada de armamento hábil a deflagrá-la, como se percebe na ementa a seguir:
“HABEAS CORPUS. DELITO DO ART. 16, CAPUT, DA LEI N. 10.826/2003. PACIENTE PORTANDO MUNIÇÃO. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A análise dos documentos pelos quais se instrui pedido e dos demais argumentos articulados na inicial demonstra a presença dos requisitos essenciais à incidência do princípio da insignificância e a excepcionalidade do caso a justificar a flexibilização da jurisprudência deste Supremo Tribunal segundo a qual o delito de porte de munição de uso restrito, tipificado no art. 16 da Lei n. 10.826/2003, é crime de mera conduta. 2. A conduta do Paciente não resultou em dano ou perigo concreto relevante para a sociedade, de modo a lesionar ou colocar em perigo bem jurídico na intensidade reclamada pelo princípio da ofensividade. Não se há subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do direito penal, que somente deve ser acionado quando os outros ramos do direito não forem suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos. 3. Ordem concedida.” (Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. HC 133.984/MG. Relator: Min. Carmen Lúcia. Data do Julgamento: 17/05/2016). (grifo meu)
A Suprema Corte não deixou de destacar que estes crimes são de mera conduta e de perigo abstrato. Todavia, passou-se a reconhecer que, em determinados casos, estavam presentes requisitos essenciais à incidência do princípio da insignificância, a justificar a flexibilização excepcional da firme jurisprudência no sentido da sua inaplicabilidade aos crimes de porte e posse de armas de fogo (HABIB, 2019). Nesses casos, em que apreendida apenas a ínfima quantidade de munições, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não estava caracterizado perigo concreto relevante para a sociedade, de modo a lesionar ou colocar em perigo bem jurídico na intensidade reclamada pelo princípio da ofensividade, ressaltando a necessidade de observância dos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade do direito penal (GIONGO, 2022).
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, manteve sua firme posição de que, em regra, não é possível aplicar o princípio da insignificância à posse e porte de arma de munições desacompanhadas de arma de fogo. Isso porque estas condutas incidem nas figuras delitivas previstas nos artigos 12, 14 e 16 da Lei 10.826/2003, que são de perigo abstrato e tutelam a segurança pública e a paz social, logo, colocam em risco o bem jurídico protegido (GIONGO, 2022).
Entretanto, esta Corte passou a acompanhar a nova diretriz jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, reconhecendo ser admissível o princípio da insignificância na hipótese excepcional de posse ou porte de pequena quantidade de munição, desacompanhada de armamento hábil a deflagrá-la, como se percebe, a título de exemplo, na ementa do seguinte decisum:
“PROCESSO PENAL. PORTE DE MUNIÇÃO DE USO RESTRITO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO CONCOMITANTE POR CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS. REPROVABILIDADE DA CONDUTA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça aponta que os crimes previstos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003 são de perigo abstrato, sendo desnecessário perquirir sobre a lesividade concreta da conduta, porquanto o objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física e sim a segurança pública e a paz social, colocadas em risco com o porte de munição, ainda que desacompanhada de arma de fogo. Por esses motivos, via de regra, é inaplicável o princípio da insignificância aos crimes de posse e de porte de arma de fogo ou munição. 2. Esta Corte acompanhou a nova diretriz jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que passou a admitir a incidência do princípio da insignificância na hipótese da posse de pequena quantidade de munição, desacompanhada de armamento hábil a deflagrá-la. 3. No caso, descabe falar em mínima ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora e, por consectário, em aplicação da bagatela, uma vez que as cinco munições de calibre .40 encontradas no veículo do acusado, embora desacompanhadas de arma de fogo, foram apreendidas no contexto de prisão em flagrante do réu pelo crime de tráfico ilícito de drogas, com a apreensão de significativa e variada quantidade de entorpecentes - 320 gramas de maconha, 378,3 gramas de cocaína e 602 gramas de crack. 4. Agravo regimental desprovido”. (AgRg no HC n. 763.871/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 13/9/2022, DJe de 21/9/2022). (grifo meu)
Percebe-se, portanto, que para a caracterização desta hipótese excepcional da incidência do princípio bagatelar, deve ser apreendida a pequena quantidade de munições, o que levanta a questão acerca do que seria considerada pequena quantidade. A respeito dessa questão, tem-se que a quantidade de artefatos a serem enquadrados como insignificantes podem variar de acordo com o contexto em que a apreensão ocorreu.
Vanzolini e Junqueira (2018) citam que em determinados casos, onde houve a aplicação do princípio da insignificância, notou-se que foram apreendidas 03 (três), 08 (oito) munições, em outros, 17 (dezessete), 25 (vinte e cinco) cartuchos, sendo alguns de uso permitido e outros de uso restrito. Os tribunais estaduais também têm aplicado o princípio em destaque. Como exemplo, cita-se inicialmente o julgado oriundo do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins:
“APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO DA ACUSAÇÃO. ARTIGO 14, DA LEI DE ARMAS. PEDIDO DE CONDENAÇÃO PELA PRÁTICA DE PORTE DE MUNIÇÃO. APREENSÃO DE UM ÚNICO PROJETIL DE ARMA DE FOGO .22. AUSÊNCIA DE ARTEFATO BÉLICO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA MANTIDA. PRECEDENTES DO STF E STJ. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. No caso, a conduta não apresenta lesividade suficiente, sendo possível à luz da jurisprudência das Cortes Superiores, o reconhecimento da incidência do princípio da insignificância, com o afastamento da tipicidade material. Na situação ora em análise fora encontrado um único projétil de arma de fogo calibre .22, desacompanhada do armamento. Não ficou evidenciado perigo a incolumidade. 2. A reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto. Precedentes do STF e STJ. 3. Recurso conhecido e não provido.” (TJTO, Apelação Criminal (PROCESSO ORIGINÁRIO EM MEIO ELETRÔNICO), 0013724-45.2021.8.27.2706, Rel. JOCY GOMES DE ALMEIDA, 3ª TURMA DA 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgado em 05/04/2022, DJe 12/04/2022 15:21:47). (grifo meu)
No caso mencionado, feitas as devidas considerações, in casu, muito embora com o autor tenha sido apreendida uma única munição de arma de fogo desacompanhada de artefato bélico, as circunstâncias do caso concreto indicam a gravidade concreta da conduta do apelado. O Tribunal do presente Estado, inclusive já se manifestou favoravelmente aos entendimentos das cortes superiores, conforme frisado no julgado abaixo:
“PENAL. PROCESSUAL PENAL. POSSE DE 2 MUNIÇÕES DESACOMPANHADAS DA ARMA DE FOGO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. POSSIBILIDADE. 1. Conquanto a doutrina classifique o crime de posse de munição como sendo crime de mera conduta e de perigo abstrato, esta Corte estadual, seguindo o entendimento do c. STF e do e. STJ, têm admitido a incidência do princípio da insignificância nos crimes de posse de munição de uso permitido ou restrito, quando a quantidade apreendida é pequena e desacompanhada de arma de fogo, dada a inocorrência de perigo à incolumidade pública”. 2. Recurso conhecido e improvido. (TJTO, Apelação Criminal (PROCESSO ORIGINÁRIO EM MEIO ELETRÔNICO), 0013032-32.2020.8.27.2722, Rel. HELVÉCIO DE BRITO MAIA NETO, 3ª TURMA DA 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgado em 20/04/2021, DJe 29/04/2021 16:41:43). (grifo meu)
De qualquer modo, em concluso, verifica-se que a jurisprudência costuma afirmar que a aplicação do princípio da bagatela não depende de um exame de critério meramente matemático. Não basta, pois, o simples fato da pouca quantidade de cartuchos apreendidos estar desacompanhada da respectiva arma de fogo para que fique configurada a atipicidade da conduta. A incidência do princípio da insignificância está diretamente relacionada com a análise das peculiaridades do caso concreto, a fim de aferir a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, como já citado anteriormente, enfatizado também pela jurisprudência abaixo:
“PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. ARTIGO 12, LEI 10.826/03. APTIDÃO PARA PRODUZIR DISPAROS COMPROVADA POR PERÍCIA. CRIME FORMAL E DE PERIGO ABSTRATO. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DO STF E STJ. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CONDENAÇÃO MANTIDA.RECURSO IMPROVIDO. 1. [...]. 2. Consoante o Laudo de Exame Técnico Pericial de Eficiência em Arma de Fogo, a arma de que tinha a posse o recorrente estava perfeitamente apto a efetuar disparos, o que comprova a capacidade lesiva do artefato. 3. [...] Todavia, como se vê, essa não é a hipótese dos autos, que se tratou da posse do armamento e da munição, ambos aptos a produzirem disparos. De outra forma, o reconhecimento do princípio da insignificância é excepcional, e, inclusive, não se limita apenas à quantidade de munição apreendida, mas às peculiaridades que envolvem os fatos. E, no caso, o réu foi preso em flagrante após diligência para apuração do crime de furto, sendo que durante a busca no interior da residência do acusado, além dos objetos furtados, foram encontradas a arma e a munição apreendidas, não havendo que se falar, portanto, em reduzido grau de reprovabilidade do comportamento ou de inexpressividade da lesão jurídica provocada, sendo típica a conduta. 4. Recurso improvido”. (TJTO, Apelação Criminal (PROCESSO ORIGINÁRIO EM MEIO ELETRÔNICO), 0000690-50.2019.8.27.2713, Rel. EURÍPEDES DO CARMO LAMOUNIER, 5ª TURMA DA 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgado em 11/05/2021, DJe 19/05/2021 14:08:36). (grifo meu)
Diante dos julgados apresentados, verifica-se que ao fim que no caso presente, a aplicação do princípio da insignificância é plenamente possível, desde que ele não transgrida os requisitos impostos para a sua aplicação. Conforme exposto no decorrer desse estudo, para ser aplicado, o ato lesivo deve ser mínimo, além da conduta do agente não ser nociva e a não ter a periculosidade social da ação.
Com base nisso, caminha-se em concordância ao exposto nos Tribunais, o entendimento de que o porte e a posse de munição de arma de fogo, que de fato representa perigo real à uma sociedade ainda pouco familiarizada com essa instrumentária, nos casos onde os requisitos do princípio seja observado e comprovado, deve-se aplicar o princípio da insignificância.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme explanado no respectivo estudo, o Princípio da Insignificância busca primordialmente não punir aqueles delitos cujas consequências sociais e até mesmo jurídicas não sejam impactantes e não causem um dano maior. É o princípio que busca dar uma maior celeridade aos processos penais, não atolando o Judiciário com litígios aos quais a causa e a consequência sejam ínfimas.
No decorrer deste trabalho, ficou consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça o entendimento no sentido de que o referido tipo penal é delito de perigo abstrato e de mera conduta, e por colocar em risco a incolumidade pública, basta a prática do núcleo verbal para a caracterização, sendo irrelevante a demonstração do efetivo caráter ofensivo, sendo desnecessária, inclusive, que ela esteja municiada.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, firmou entendimento no sentido de que o crime previsto no art. 14 da Lei n. 10.826/2003 é de perigo abstrato, sendo desnecessário perquirir sobre a lesividade concreta da conduta, porque o objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física, e sim a segurança pública e a paz social, colocadas em risco com a posse da arma de fogo, ainda que desprovida de munição, revelando-se despicienda a comprovação do potencial ofensivo do artefato através de laudo pericial.
Outrossim, não se olvida que o Superior Tribunal de Justiça, em casos excepcionais, já reconheceu a atipicidade material pela aplicação do princípio da insignificância, mas apenas da conduta de posse de munição desacompanhada de arma de fogo. A Corte Superior se alinhou ao entendimento da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal que passou a reconhecer a atipicidade material da conduta, em situações específicas, de ínfima quantidade de munição, aliada à ausência do artefato capaz de disparar o projétil.
Em síntese, o reconhecimento do princípio da insignificância é excepcional, e, inclusive, não se limita apenas à quantidade de munição apreendida, mas às peculiaridades que envolvem os fatos. Para aferição da atipicidade das condutas de posse ou porte de munições, em razão do princípio da insignificância, devem ser considerados não somente a quantidade de munições, mas também as outras circunstâncias do caso. Deste modo, o simples porte ou posse de munição, ainda que sem a arma de fogo compatível, é conduta típica à luz da Lei 10.826/03, uma vez que se trata de delito de perigo abstrato.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Docente do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – UnirG. E-mail: josecarlosrs@unirg.edu.br.
Bacharelanda em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Cleidiane Smithe. A possibilidade da aplicação do princípio da insignificância nos crimes de posse e porte de munições de arma de fogo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 maio 2023, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61385/a-possibilidade-da-aplicao-do-princpio-da-insignificncia-nos-crimes-de-posse-e-porte-de-munies-de-arma-de-fogo. Acesso em: 26 dez 2024.
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