CLAUDIO JOSÉ LANGROIVA PEREIRA
(orientador)
RESUMO: O presente estudo busca realizar uma leitura utilitarista do direito processual penal brasileiro e americano, demonstrando que o caráter utilitário da norma deva representar uma maior proteção dos bens jurídicos assim como menor restrição da liberdade individual. Desta forma, tem o objetivo de encontrar diferentes formas de limitação para atuação dos instrumentos da Colaboração Premiada e Delação Premiada, respeitando assim, princípios constitucionais e garantias fundamentais. A par disso, o utilitarismo, em sua base, busca privilegiar e analisar a moral das condutas através do resultado produzido, realizando o cálculo para se conhecer o saldo da ação realizada, este caráter eficientista é o principal foco de análise desta pesquisa.
Palavras-Chave: Colaboração premiada, Utilitarismo. Princípios. Eficiência. Processo Penal
ABSTRACT: The present study seeks to carry out a utilitarian reading of Brazilian and American criminal procedural law, demonstrating that the utilitarian nature of the rule should represent greater protection of legal assets as well as less restriction of individual freedom. Thus, it aims to find different forms of limitation for the performance of the instruments of Awarded Collaboration and Awarded Delation, thus respecting Constitutional principles and fundamental guarantees. In addition, utilitarianism, at its base, seeks to privilege and analyze the morals of the conducts through the result produced, performing the calculation to know the balance of the action performed, this efficient character is the main focus of analysis of this research.
Keywords: Award-winning collaboration, utilitarianism. Principles. Efficiency. Criminal proceedings
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem como objetivo realizar uma análise utilitarista dos instrumentos da colaboração premiada e demonstrar que o caráter utilitário do instrumento deva produzir a maior segurança jurídica possível.
A corrente utilitarista adota uma teoria ética consequencialista, na qual se almejam anteriormente os bens a serem protegidos. Desta forma, serão estudadas as condições para se utilizar os instrumentos supracitados, tais como, sua legitimidade e princípios fundamentais do processo penal, ou seja, refletir sobre o papel da colaboração premiada no ordenamento jurídico brasileiro e na elaboração de uma normatividade mais útil.
O referido instituto busca incentivar um colaborador ou delator a contribuir com as investigações criminais, assim sendo, o mesmo ajuda as autoridades policiais disponibilizando um conteúdo de verdade capaz de amparar as mesmas, conteúdo este que teria extrema dificuldade em ser descoberto por investigações comuns. Tudo isto em troca de benefícios ao colaborador, sejam estes, reduções de pena, aplicação de penas alternativas ou até o perdão judicial.
Percebeu se que, em um primeiro momento a existência de aspectos positivos e negativos em sua instituição, principalmente sob o presente contexto histórico, de crise institucional e política, resultando em um anseio populacional e midiático por respostas e resoluções.
2 O UTILITARISMO DE BENTHAM
O utilitarismo foi uma doutrina amplamente difundida na Inglaterra, sendo Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), os principais autores da corrente. Dentre suas bases consta o “princípio da utilidade”, segundo o qual o prazer e a dor são os maiores anseios de todos os seres humanos, assim, a doutrina entende que todos os atos devam produzir a maior quantidade de prazer/bem estar possível e ao maior número de pessoas.
Segundo Jeremy Bentham, a natureza colocou a humanidade sob o domínio de dois senhores soberanos, a dor e o prazer. Apenas a eles cabe indicar o que devemos fazer, assim como determinar o que faremos. A seu trono estão atrelados, por um lado, o critério que diferencia o certo do errado, e por outro, a cadeia das causas e dos efeitos[1] .
Nesta linha, um exemplo, quando alguém precisar escolher entre duas ações, e uma delas produzir mais prazer do que a outra, sempre será sua obrigação escolher a primeira, sendo considerada moralmente ética toda aquela ação que produza maior quantidade de bem estar em relação a dor.
É importante notar que, na concepção de Bentham, prazer é sinônimo de bem e dor é sinônimo de mal. Por ser conforme uma noção de natureza humana que busca o prazer e foge da dor, o princípio de utilidade não entende que seja necessário haver a supressão das inclinações humanas para que a ação seja moral. Pelo contrário, Bentham reconhece que os seres humanos agem de acordo com determinadas finalidades, segundo seus interesses, e coloca como norma que os indivíduos busquem seu prazer ou seus interesses. Sendo assim, o princípio da utilidade é formulado da seguinte forma:
“Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo [...]. Ou, em outros termos, o princípio da utilidade é explicado da seguinte forma; [...] O princípio que estabelece a maior felicidade de todos aqueles cujo interesse está em jogo, como sendo a justa e adequada finalidade da ação humana, e até a única finalidade justa, adequada e universalmente desejável; da ação humana, digo, em qualquer situação ou estado de vida, sobretudo na condição de um funcionário ou grupo de funcionários que exercem os poderes do governo [...].”
A teoria moral de Bentham objetiva à universalidade, ao analisar que todos os indivíduos buscam o prazer e fogem da dor e que assim devem fazer, porque é o que todos querem, porque é a razão de existência de todos.
A partir da análise supracitada do princípio de utilidade, é possível entender que ele possui um aspecto duplo: um aspecto individual e um aspecto coletivo. O aspecto individual afirma que o indivíduo busque o seu bem estar/prazer ou sua diminuição de dor, enquanto o aspecto coletivo do princípio aponta para a maximização de bem estar/prazer e minimização de dor de todos aqueles afetados por uma ação. O aspecto coletivo deve ser analisado, por exemplo, o de um governo capaz de coibir os indivíduos que geram mais dor do que prazer aos membros de uma comunidade. Assim sendo, a possibilidade da geração de dor é o próprio fim do direito e da lei penal.
Nesta linha, sobre a ética supracitada, a coação acontece quando um membro da comunidade desaprova determinada ação, pelo fato desta ter proporcionado mais dor do que prazer, no cálculo entre prazer e dor. No caso do direito, a forma de coação mais efetiva que existe é a punição legal.
Bentham entende que toda punição deva justificar sua necessidade, devendo esta resultar em um benefício ou prazer para a diminuição da dor maior à comunidade do que a dor que gera pela sua própria aplicação:
“[...] acontece, porém, que toda punição constitui um ato pernicioso; toda punição constitui, em si mesma, um mal. Por conseguinte, com base no princípio da utilidade – se tal princípio tiver que ser admitido–, uma punição só pode ser admitida na medida em que abre chances no sentido de evitar um mal maior.”
Nessa vereda, para o doutrinador, a legislação deve preservar ao máximo a liberdade das pessoas, pois esta é essencial para se buscar a felicidade. As intervenções na liberdade se mostram necessárias quando a segurança do ser humano está ameaçada e consequentemente diminuindo sua felicidade. Assim, a segurança, como meio de garantir a maior felicidade, deve ser o objeto da lei, sob o pensamento que é possível restringir a liberdade de alguém para maximizar sua felicidade.
Deste modo, percebe se que Bentham proporcionou grande contribuição à teoria da pena através do princípio da máxima utilidade que impede punições arbitrárias. Ninguém pode ser punido por uma conduta se esta não for lesiva a alguém. No mais, a punição deve ser severa o suficiente para se sobrepor aos ganhos do crime e demonstrar a certeza da punição[2].
Note que o autor defendia a punição com dupla finalidade: punir aquele que praticou a infração e prevenir que outros sejam infratores (funções retrospectiva e prospectiva).
Simultaneamente, vislumbra a importância da conciliação entre as normas penais com a utilidade que as mesmas podem proporcionar ao meio social, sendo de extrema importância sua ligação aos princípios do direito penal e suas finalidades. Conclui se assim que o crime não pode ser punido justamente por si só, pela sua existência e sim para atingir a sua utilidade de aumentar a expectativa na proteção dos interesses sociais.
Conforme dispõe Roxin:
- maior utilidade na proteção a bens jurídicos relevantes
- maior utilidade como limite de interferência do Estado na vida particular da pessoa.
Repetindo, a norma penal deve conciliar essas duas utilidades para ser válida e legitimada. Como a lei penal restringe o indivíduo em sua liberdade de agir, não se pode proibir/atuar mais do que seja necessário para que se alcance uma coexistência livre de arbitrariedades e pacífica[3].
Nesta linha, podemos concluir que o objetivo é enxergar o direito penal como a melhor forma de proteção a um bem jurídico, através de seu poder de tutela perante um conflito social. Em sua atuação, ao realizar o cálculo de utilidade, o saldo resultante fruto da equação entre os custos provocados pelo direito penal e os outros ramos do direito deve ser positivo, de maneira que comprove sua utilidade.
Os críticos do utilitarismo citam diversos problemas no cálculo utilitarista que mede a moralidade por suas consequências. Para os mesmos, percebe- se a incerteza das consequências ocasionadas haja visto que estas não são determináveis até que ela aconteça de fato, assim jamais teremos certeza de que as supostas consequências de um ato serão seus resultados reais. Outro ponto analisado são que os atos geram consequências em cadeia, se o ato A produz B, e se B causa C, então o ato A gera C indiretamente. Assim sendo, avaliar as consequências de um ato gera o problema da identificação das suas consequências: quando podemos dizer que um ato não é mais causa? Onde encerrará a cadeia de consequências? Então, presencia se a infinitude das consequências ocasionadas.
Ou seja, a dificuldade apresentada por estes críticos, como John Rawls – da utilização da teoria utilitarista benthamiana é a falta de definição do conceito de utilidade e a deficiência de critérios de mensuração de felicidade. A forte linearidade desta corrente não é capaz de dar conta da complexidade da realidade social em que se está inserido, uma ação pode engendrar consequências inesperadas e que podem retroceder afetando sua própria causa
A diversidade de fatores que podem atingir uma ação não impede que esta corrente da filosofia moral seja ineficaz, ao contrário, em muitos casos ela oferece boas respostas, no entanto deve-se observar seus limites para os casos de alta complexidade. No ponto de vista de uma teoria da justiça o ideal não é apontar o critério do utilitarismo e manejá-lo em relação aos outros, mas refletir sobre a possibilidade de articulação entre os demais parâmetros, já que sua utilização desenfreada pode resultar em decisões injustas.
O utilitarismo pressupõe que os seres humanos são capazes de separar interesses difusos e conviverem numa atitude racional, que planifica as suas escolhas e hierarquiza os seus prazeres em sintonia com a disponibilidade dos recursos escassos. Por isso, os indivíduos são tomados como seres racionais que devem agir conforme uma determinação de um cálculo de otimização de resultados. Ainda que os indivíduos possam, em vários contextos, levar em consideração o bem-estar da maioria, enquanto bem maior é interessante ressaltar a preocupação de tomar a regra do cálculo utilitário como um critério para a avaliação das ações, independentemente do contexto no qual elas ocorrem. Dessa forma, se, por um lado, o utilitarismo está de acordo com algumas intuições, ele se afasta de algumas outras intuições que se mostram fundamentais. Vale ressaltar particularmente a empatia, não apenas como um tópico de motivação moral, mas como um dos critérios de avaliação moral.
Pode se entender por empatia toda disposição para agir em sintonia com um grau de altruísmo que implica algum sacrifício do próprio interesse em nome de outro indivíduo. Em situações de dificuldade, é possível que indivíduos façam alguns sacrifícios, não propriamente em função da atitude mais racional (no sentido utilitarista), todavia, em função de um interesse difuso ou que não contribui necessariamente com a maioria. Como por exemplo em um acidente de carro, em que um pai escolhe salvar um filho em detrimento de outas pessoas alheias a sua família. A questão é que a decisão do pai não é racional (no sentido do utilitarismo), porém, é bastante compreensível do ponto de vista do vínculo afetivo familiar que ele guarda com o seu filho. Não é “errado” tomar decisões que não se pautam num cálculo racional que otimiza o bem-estar uma vez que elas podem ser sim, intuitivas.
Nessa linha, o ponto é que a empatia é uma das intuições para a motivação moral, à proporção que também serve como um dos critérios para se avaliar a ação. A ação de salvar o filho, conforme citado, é socialmente defendida e não se restringe a uma “fraqueza de vontade” individual.
A empatia não se mostra sendo o único critério para a avaliação moral, mas apenas que ela não pode ser completamente excluída como critério moral no momento de julgamento de uma ação. Se mostra necessário que o utilitarismo justifique o critério da escolha do cálculo racional, sem desconsiderar as questões apresentadas aqui referentes à presença dos sentimentos individuais morais na avaliação da ação. A corrente utilitarista se compromete com uma rígida noção racional do indivíduo, a qual nem sempre está em sintonia com a coletivização de interesses que marca a ação moral.
Percebe se que o agente moral utilitário deve agir como indivíduo desinteressado e estritamente imparcial, cuja ação deve levar em conta que a sua vida tem o mesmo valor que a dos demais agentes morais[4]. A corrente omite um fato notório, inserido no reconhecimento de que os agentes morais podem ser analisados sob diferentes contextos em que o componente da empatia ganha atenção.
Assim, o fato de todos os indivíduos possuírem um valor moral igual não resulta que, independente do contexto, estes sejam todos iguais, pois é plenamente possível que um indivíduo negue a solução proposta pelo cálculo racional em nome de uma motivação afetiva de cunho pessoal[5].
Conclui se, como já citado acima, que a atitude utilitária é composta por uma ausência de empatia quando em face do cálculo racional (único critério), como exemplificado, quando se trata de alguém com algum grau de proximidade, o indivíduo não consegue se abster de sua racionalidade, mesmo quando a quantidade de beneficiados da ação for louvável e independentemente do contexto em que ela esteja. Ao meu ver, a quantidade de beneficiados não é suficiente para justificar moralmente a utilização do cálculo racional como critério de avaliação em qualquer contexto. Neste sentido, há uma resistência da experiência quanto à adoção desenfreada do cálculo de utilidade como único critério moral.
O pensamento de Rawls foca na teoria de justificação do utilitarismo, esta, valoriza a maximização do bem-estar coletivo, em relação aos direitos de cada indivíduo, ensejando uma situação de injustiça uma vez que todos os indivíduos detém anseios e vontades particulares, desta forma, como abrir disso sem relação ao bem estar coletivo? Como hierarquizar ambições individuais sobre coletivas?[6]
Nessa vereda, cada indivíduo, em seu âmbito particular busca satisfazer seus interesses e necessidades, procedendo a um cálculo de suas perdas e ganhos, entendendo que muitas vezes é preciso sacrificar a satisfação de um determinado desejo na medida em que isso permite uma maior soma total de satisfação a longo prazo. Em suma, aquilo que cada indivíduo busca em sua vida é a máxima proporção de satisfação de seu sistema total de interesses em comparação com a proporção de interesses particulares que inevitavelmente têm de permanecer não realizados.
Assim, ele resume sua criticada seguinte forma(RAWLS,p.24):
“A questão é saber se a imposição de desvantagens a alguns pode ser compensada por uma soma maior de vantagens desfrutadas por outros; ou se o peso da justiça requer uma liberdade igual para todos e permite apenas aquelas desigualdades econômicas e sociais que representam dos interesses de cada pessoa.”
Outra crítica de Rawls se refere a estrutura da teoria moral teleológica do Utilitarismo. Para o autor, o “bem” defendido constantemente pela corrente é definido independentemente do “justo”, sendo que este “justo” é conceituado como tudo aquilo que maximiza o “bem”[7], assim sendo, para o autor a promoção da felicidade deve ser entendida como tudo aquilo moralmente bom independentemente do justo, não concordando assim com que a teoria moral teleológica da corrente seja capaz de definir o que é justo através de sua teoria do bem.
Por fim, uma grande crítica enfrentada pela corrente se atenta ao fato da resolução de conflitos culturais através do utilitarismo. Certamente, as relações interculturais não são movidas por um único ponto de vista que é capaz de guiar interesses diversos em torno de uma mesma ideia. Se a procura pelo bem estar fosse um bem moral constante e transcultural, não existiriam códigos morais diferentes, em alguns casos antagônicos.
A questão cultural está presente em cada decisão do agente como marca de sua individualidade. Por isso, não se pode definir tão facilmente os conflitos interculturais em favor da escolha do cálculo de utilidade como critério moral que privilegia a não produção de dor. A aceitação do referido cálculo já enseja a compreensão moral de que ele é a melhor e única forma de resolver conflitos culturais, no entanto, isso só pode ser estabelecido quando, de algum modo, os envolvidos no conflito se disponham a recorrer/escolher uma solução que otimize o bem-estar ou felicidade da maioria e que tenha clareza social sobre o uso desses preceitos. Todavia, para chegar a essa conclusão, os indivíduos já devem estar movidos por alguma prerrogativa moral que justifica a propensão para resolver o conflito de acordo com o cálculo de utilidade, visto que o simples cálculo não se caracteriza como uma justificativa. Por isto, é preciso antes decidir pela resolução do conflito para, em seguida, se recorrer ao cálculo, mas isso só é possível, quando a sociedade tiver uma noção semelhante do que é a felicidade.
3 O UTILITARISMO E O DIREITO PENAL
Como citado brevemente no capítulo anterior, a utilidade das normas penais deve estar ligada às finalidades e princípios do direito penal, sendo assim, o crime não pode ser punido por si só, apenas por sua essência, mas sim para alcançar uma utilidade maior, qual seja de aumentar a expectativa na proteção dos interesses sociais.[8]
Trazido por Roxin[9], a norma penal deve promover a maior utilidade na proteção a bens jurídicos relevantes e maior utilidade como limite de interferência do Estado na vida particular da pessoa conciliando essas duas utilidades para ser justificada. A soma dessas duas utilidades é o núcleo denominado “utilitarismo normativo-axiológico”. Em síntese, entende-se que o direito penal deve respeitar critérios utilitaristas do melhor saldo resultado de cálculo na proteção de bens jurídicos e maior liberdade das pessoas, sem fixar-se em conceitos puramente moralistas. O utilitarismo deve ser normativo, porque resulta na criação e execução de normas, e axiológico, na medida que há valores a serem analisados. A relação entre a norma e os valores deve ser o mais próxima possível da segurança jurídica na proteção de bens e a liberdade individual. O Estado permite, obriga ou proíbe um comportamento considerando que todos os indivíduos, ou quase todos, devam obedecer a regras estabelecidas para que, de um jeito ou de outro, seja alcançada uma utilidade de bem estar social. As normas de comportamento são elaboradas por uma perspectiva de uniformização de comportamentos para atingir uma utilidade comum.
O direito penal tem como obrigação ser a melhor proteção de um bem jurídico e somente será a melhor proteção quando as outras normas não atingirem este objetivo. Além do direito penal, o mais repressivo, existem outros meios de controle social formal e informal, porém, no cálculo entre os benefícios de cada uma das possíveis proteções a um bem jurídico, o saldo final deve ser a maior eficácia do direito penal e a pouca ou nenhuma eficácia das demais formas de proteção.
Nesta linha, importante citar a utilidade de uma incriminação, que passa pela eficácia da tutela penal perante um conflito social. A interferência em comportamentos lesivos por meio do direito penal apenas terá utilidade quando o bem a ser protegido apresentar considerável relevância. Por ser o meio mais rigoroso de resolução de conflitos, os gastos do Estado e os custos para os cidadãos gerados por um procedimento criminal devem ser supridos pelo valor do bem que se pretende proteger. E além disso, mesmo dentro do conjunto de interesses que merecem a tutela penal, é importante que a gravidade da sanção normativa seja proporcional à relevância de cada um para as expectativas de bem estar social[10].
O chamado utilitarismo jurídico-penal moderno encontra suas principais formulações no século XVIII, em especial na contribuição de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, na Itália, que publica em 1764 o seu livro Dos delitos e das penas, no qual se faz provavelmente a mais ampla e profunda crítica das práticas punitivas de seu tempo. Nesta obra já se vislumbra uma defesa da perspectiva utilitária para a fundamentação do Direito Penal, assim como a designação de uma finalidade preventivista geral negativa à pena.
Segundo Beccaria, o caráter nitidamente preventivista toma conta de sua obra, ele relaciona o direito de punir do Estado ao potencial de prevenção do delito futuro que o castigo apresentaria, fazendo com que a necessidade de barbaridade das penas apresentada na época passassem a serem questionadas.
O efeito da pena, como conceitua Beccaria, não está necessariamente no grau de sofrimento ou na gravidade da mutilação imposta pelo Estado ao infrator, mas, na certeza da punição que deveria ocorrer após o desvio criminoso. Resta claro que o erro da mentalidade absolutista, para o autor, estaria em uma apreciação equivocada sobre o potencial utilitário das práticas punitivas(Beccaria, 2008):
“A perspectiva de um castigo moderado, porém inflexível, provocará sempre uma impressão mais forte do que o vago temor de um suplício horrendo, em relação ao qual aparece alguma esperança de impunidade[11]”
A par disso, através da concepção utilitária, compreende se que seria mais útil à sociedade uma sanção leve capaz de prevenir delitos futuros do que a mais degradante e com penas severas, ou seja, carente de efeito dissuasório. A partir das constatações do utilitarismo analisado, a intimidação e tirania deixam de ser sinônimos, inclusive passando a compor polos opostos[12]. Em último caso, para que a pena não se resuma a um ato de tirania contra o cidadão, segundo Beccaria:
“deve ser, de modo essencial, pública, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei[13]”
Essa apreensão também se revela em alguns entendimentos de Bentham [14],por exemplo, quando o autor trata das premissas contrárias ao da utilidade, entre elas a simpatia e antipatia. Estas premissas ensejariam uma ideia de aprovação e reprovação das ações humanas resultando em uma concepção subjetivista, isto é, as ações não seriam aceitáveis ou condenáveis devido à sua capacidade para trazer ou destacar a felicidade, mas, sim, em razão do fato de que alguém se sente disposto a aprová-las ou reprová-las (o que, a bem da verdade, motiva o autor, não seria exatamente uma premissa, mas, sim, a ausência de qualquer princípio orientador da ação).
Nesta linha, passamos a enxergar dois lados, primeiramente estariam as doutrinas absolutas (ou retributivas) da pena, normalmente relacionadas a pensadores como George W. F. Hegel (1997) e Immanuel Kant (2003). De outro lado, as doutrinas relativas (ou utilitárias), normalmente sucedidas de uma tipologia que as divide em prevenção geral (sendo do tipo “negativo” ou “positivo”) ou prevenção especial (também negativa” ou “positiva”).
Em 1989, quase 3 séculos após o manifesto de Beccaria, surge uma grande contribuição a concepção de de revitalização da ideia de “pena útil” no sistema jurídico, com a publicação da Obra Direito e razão de Luigi Ferrajoli.
De acordo com o autor, se com o utilitarismo iluminista o Direito Penal deve observar o objetivo de perpetuar o máximo bem-estar possível aos não desviantes (termo utilizado para representar aqueles que seguem as leis), a partir de seu utilitarismo renovado, caberia levar em conta, igualmente, o mínimo mal-estar necessário aos desviantes (aqueles que descumprem as leis). Ferrajoli defende que seu modelo estaria blindado contra pensamentos autoritários, tendo em vista, as experiências totalitárias vividas na Europa, no século XX, e também contra os diversos argumentos de deslegitimação do sistema penal provenientes das doutrinas abolicionistas. O autor coloca-se em uma posição intermediária entre os que que defendem a maximização e a abolição do Direito Penal. Nesta linha, se percebe a aproximação da teoria da prevenção geral negativa, uma vez que a função do Direito Penal passa a ser prevenção de vinganças privadas e penas severas, ou seja, o mínimo mal-estar necessário aos desviantes.
Na concepção de Ferrajoli, portanto, a pena “vem ameaçada e infligida não apenas ne peccetur, mas também ne punietur. Tutela não apenas a pessoa do ofendido, mas, do mesmo modo, o delinquente contra reações informais, públicas ou privadas[15]”. Isto pois, do ponto de vista histórico, o direito penal surge não como desenvolvimento, mas como negação da vingança, justificando-se não com o propósito de garanti-la, mas sim de impedi-la.
4 DIREITO PREMIAL E CONTROVÉRSIAS
O tema colaboração premiada vem ganhando cada vez mais notoriedade no meio jurídico e repercussão nos veículos de comunicação nacionais, a previsão legal que concede benefícios ao infrator que colabora com a justiça, no intuito de se minorar prejuízos da ação delituosa, não é nova. Como já supracitado Beccaria[16], citava:
“Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande crime que trair os seus companheiros. Esse expediente apresenta certas vantagens; mas, não está isento de perigos, de vez que a sociedade autoriza desse modo a traição, que repugna aos próprios celerados […]. O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime, pois que ele não o conhece; e as leis descobrem-lhe a fraqueza, implorando o socorro do próprio celerado que as violou. Por outro lado, a esperança da impunidade, para o cúmplice que trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados. Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis, isto é, as convenções públicas, já não é fiel às convenções particulares. Parece-me que uma lei geral, que prometesse a impunidade a todo cúmplice que revela um crime, seria preferível a uma declaração especial num caso particular: preveniria a união dos maus, pelo temor recíproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos; e os tribunais já não veriam os celerados encorajados pela idéia de que há casos em que se pode ter necessidade deles”.
Pode se notar que embora tenham exceções quanto à concessão de benefícios ao infrator como uma forma de moeda de troca, importante se levar em consideração a eficácia da medida, notadamente por prevenir grandes crimes e satisfazer o anseio da população de conhecer infratores que dificilmente seriam identificados através de uma investigação comum. O autor aduz ainda que a admissão da colaboração serve para prevenir a união dos indivíduos para a prática de crimes na medida em que eles temeriam a delação por parte de seus comparsas.
Pois bem, a colaboração premiada é uma forma de acordo celebrado entre o Estado e o indivíduo coautor ou partícipe de certa infração penal que com o intuito de minimizar as consequências lesivas do ato infrator e impedir que novas infrações sejam cometidas, delata os demais partícipes, bem como produz provas necessárias à apuração da prática delituosa, em troca de benefícios como o perdão judicial e a redução de pena, desde que a colaboração tenha sido satisfatória para a investigação criminal.
Sua base histórica foi amplamente difundida na Itália, Espanha e Estados Unidos, sendo os mesmos referências na utilização do instrumento. Na Itália, a delação no direito se destacou nos anos 70, em um momento de grande necessidade de se combater atos terroristas cometidos por mafiosos, cujo auge se deu nos anos 80, quando se utilizavam da extorsão mediante sequestro para obter recursos e influenciar autoridades com o intuito de alcançar maior poderio, instaurando-se nas altas esferas do poder estatal.
Houve na época um fenômeno denominado pela imprensa italiana como pentitismo, que traduzido significa “arrependido”. A designação pentito era a forma que melhor se adequava a descrição do art. 3º da Lei Italiana nº 304/82, dado que o indivíduo o qual estava em sede de investigação criminal, confessava sua participação no ato criminoso e contribuía com as autoridades policiais acusando outros membros da mesma organização, indicando detalhes.
A colaboração premiada está previsto no artigo 289bis, do Código Penal Italiano:
“Seqüestro para fins de terrorismo ou subversão - Quem sequestrar pessoa para fins de terrorismo ou subversão da ordem democrática é punido com pena de prisão de vinte e cinco a trinta anos. [...] O competidor que, dissociando-se dos demais, toma providências para que o sujeito passivo recupere a liberdade e seja punido com pena de prisão de dois a oito anos; se o sujeito passivo morrer, em decorrência do sequestro, após a sua libertação, a pena é de reclusão de oito a dezoito anos. [...].”
Prevê o artigo 630 afirma que:
“Seqüestro para fins de roubo ou extorsão - Quem seqüestrar pessoa com a finalidade de obter, para si ou para outrem, lucro indevido como preço de libertação, é punido com pena de prisão de vinte e cinco a trinta anos. [...]. Ao concorrente que, ao dissociar-se dos demais, trabalhe para que o sujeito passivo recupere a liberdade, sem que o resultado seja consequência do preço da liberação, as penalidades previstas no art. 605. Porém, se o sujeito passivo morrer, em consequência do sequestro, após a libertação, a pena é de reclusão de seis a quinze anos. Para com o concorrente que, ao dissociar-se dos demais, envida todos os esforços, fora do caso previsto no número anterior, para evitar que a actividade criminosa se torne mais consequência ou ajude concretamente as autoridades policiais ou judiciais na cobrança de prova decisiva para a identificação ou captura de concorrentes, a pena de prisão perpétua é substituída pela de doze para vinte anos e as restantes penas diminuídas de um terço para dois terços. Ocorrendo circunstância atenuante, a pena prevista no segundo parágrafo é substituída pela pena de prisão de vinte a vinte e quatro anos; a pena prevista no parágrafo terceiro é substituída pela pena de prisão de vinte e quatro a trinta anos. Havendo circunstâncias atenuantes diversas, a pena a ser aplicada em decorrência das reduções não pode ser inferior a dez anos, na hipótese prevista no segundo parágrafo, e quinze anos, na hipótese prevista por”
Por todo exposto, vemos que os benefícios da delação premiada no direito italiano, em sua maioria, trazem os crimes de sequestro predeterminados por terrorismo, sendo contrários à liberdade individual dos indivíduos.
Na Espanha a delação premiada foi constituída em 1988, através de Lei Orgânica n. 3, no intuito de combater o terrorismo. Em 1995 o Código Penal espanhol estendeu a delação premiada aos casos de tráfico de drogas. Sobre a forma de delação adotada na Espanha destaca-se que somente se admite a delação se feita espontaneamente, sendo que a delação apenas é admitida quando por iniciativa de indivíduo solto e ele é que proponha às autoridades a colaboração, interessante tal constatação uma vez que não basta a mera voluntariedade da delação por parte de indivíduo que esteja preso ou que aceite proposta das autoridades persecutórias.
Outra questão é que apenas a palavra do colaborador possui força probante capaz de ensejar uma condenação. No direito espanhol faz-se a dita valoração complexa da palavra do colaborador, de modo que se sua palavra estiver embasada em evidências que lhe confiem credibilidade, apresentando probabilidade, é possível haver condenação mesmo sem a presença de outras provas autônomas.
Nos Estados Unidos da América o plea bargain é constantemente utilizado por conta da forte influência da ideia de justiça criminal negociada. Segundo o exemplo de colaboração estadunidense o instrumento pode dar-se de modo explícito, sendo a colaboração formalizada através de um contrato, ou de modo implícito, não formalizado, baseando-se apenas na lealdade das autoridades em efetivar os benefícios prometidos. Segundo dados do Jornal Estado de São Paulo[17], os acordos na justiça criminal americana correspondem a 95% dos casos nos Estados Unidos, desta forma, 9 em cada 10 casos são resolvidos antes de serem levados a julgamento. O acusado se responsabiliza pelo crime, ou abre mão de contestar a acusação através de um acordo com os promotores, a reportagem ainda analisa que na metade da década de 1980, cerca de 20% dos casos iam a julgamento, porém houve uma considerável queda na porcentagem que hoje se encontra entre 5% e 3% atualmente.
Os acordos são fundamentais na justiça americana como uma forma de desafogar o judiciário tendo em vista a alta demanda, mas têm sido apontados como uma das causas do número elevado de população carcerária no país e fator que pode levar inocentes a admitir o cometimento de crimes para evitar um processo criminal. sendo esta a maior crítica do instrumento.
O projeto inocência, organização não governamental criado nos Estados Unidos em 1992, tem como objetivo justamente auxiliar a defesa de pessoas inocentes que em face a pressão exercida dos órgãos de persecução aceitam acordos com medo e receio de enfrentar um julgamento e receber penas maiores, mesmo quando tem plena ciência de sua inocência.
Temos como exemplo o caso Bordernkirsher vs. Hayes em que o Ministério Público ofereceu ao réu uma pena de 5 anos de prisão por ter falsificado um cheque no valor de 88 dólares e 30 centavos. Para persuadi lo a aceitar seu acordo, o promotor advertiu que, caso não concordasse com o plea bargaining proporia a aplicação de uma pena de prisão perpétua uma vez que o réu seria reincidente. O réu então recusou a aceitar a oferta de acordo apresentada pelo promotor e optou por ser julgado perante o Tribunal do Júri. O Ministério Público então inseriu na acusação um agravante em virtude da reincidência supracitada, clamando pela aplicação da pena de prisão perpétua ao acusado. A Suprema Corte norte-americana, em decisão inédita declarou inválido o plea bargaining, por considerar que, nesse caso específico, a adesão do réu ao acordo não foi voluntária, tendo ocorrido ameaça acusatória.
É notória a tendência de promotores, motivados pelos anseios populacionais por condenações além da pressão midiática, agirem de maneira agressiva ao conduzir determinados casos, nesta linha, RONALD WRIGHT[18] aduz a existência de uma síndrome do jovem promotor, “Um promotor novato pode agravar a superlotação de processos judiciais e sujeitar réus, vítimas e testemunhas a dramas e atrasos desnecessários no tribunal. Tal promotor pode se sentir tentado a contornar as obrigações de divulgação ou pode usar categorias excessivamente amplas para fins de sentença, quando um julgamento mais individualizado poderia realizar mais”.
Contudo, há considerável tensão jurídica, tendo em vista que presenciam se diversos casos em que não são respeitados direitos e garantias fundamentais, notadamente o contraditório, a ampla defesa e a proporcionalidade das penas, além de ofender o princípio da indisponibilidade da ação penal. Pavanelli Neto[19] defende que haveria certa incompatibilidade entre as ferramentas de persecução penal fundados na lógica utilitarista com as garantias individuais fundamentais, in verbis: “As organizações criminosas, em razões de suas características especiais, mostram-se resistentes aos instrumentos de direito penal e processual penal empregados no trato da criminalidade comum, pelo que exigem do legislador de ferramentas próprias, especialmente desenhadas para o trato dessa forma de criminalidade. Ocorre que isso termina por criar um subsistema penal de exceção, de caráter utilitarista, em detrimento dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, próprios do Estado de direito.”
Realmente, há uma tensão entre a ideia de direitos e garantias individuais e o pensamento utilitarista. Contudo, a delação não se constitui propriamente numa conquista para uma conduta nobre e altiva. Mas, efetivamente, numa premiação para o acusado de uma infração penal. Acusado esse que, por sua deslealdade para com os demais coautores, receberá um benefício judicial, com a redução de pena, o perdão judicial ou a substituição por pena restritiva de direitos. Em que pese uma almejada eficiência desse instrumento de “combate à criminalidade”, mormente aquela de caráter econômico, o fato é que a popularização desse instituto acaba por resultar em diversas distorções.
No Brasil, a primeira Lei do Crime Organizado, Lei 9.034/05, dispõe que nos crimes praticados em organização criminosa, a pena seria reduzida, de um a dois terços, se a colaboração espontânea do acusado levasse ao esclarecimento dos elaborados esquemas contraventores e sua autoria. A Lei 9.034/05 então foi expressamente revogada pela Lei 12.850/13, que aumentou os prêmios concedidos e previu procedimento específico para a aplicação do instrumento.
A par disso, como já discutido neste trabalho, é fato que em nome da eficiência desse instrumento, o suspeito seja literalmente direcionado à delação/colaboração premiada face as investidas do Ministério Público. Presenciam se inúmeros casos em que a prisão se prolonga no tempo apenas com o intuito de forçar o acusado a ceder as alegações, não possuindo qualquer motivação cautelar que fundamente sua necessidade afastando a espontaneidade da delação. Tudo isto, realizado através de prisões preventivas e temporárias arbitrárias como forma de pressão psicológica e ao mesmo tempo atender a vontade condenatória da mídia e população afastando de certo o direito ao contraditório.
Trata-se, de um instituto de mão dupla, típico pensamento utilitarista que se dá através de uma relação de custo benefício no processo penal, no qual são “beneficiados” o delator e também o acusador, que poderá atingir os objetivos acima referidos. Se percebe uma política de auto preservação, em que o delator, com o objetivo de atenuar sua responsabilidade, em forma de colaboração, negocia informações e atos supostamente realizados por terceiros, conforme traz Zaffaroni:[20]
"... O Estado está se valendo da cooperação de um delinqüente, comprada ao preço de sua impunidade para "fazer Justiça" o que o Direito Penal repugna desde os tempos de Beccaria..."
A par disso, presencia se a oficialização da traição como instrumento indispensável na luta contra o crime, um ato reprovado pelo ordenamento jurídico e utilizado no exercício punitivo.
Nesta linha, também se ressalva o direito ao contraditório e ampla defesa, o acusado deve saber sobre todos os elementos acusatórios que recaem sobre sua pessoa a ponto de poder utilizar todos os instrumentos recursais que possibilitem a contraposição dos fatos imputados e resistência à pretensão acusatória. Entretanto, vislumbra se que o estado sob o argumento de buscar a “toda a verdade” sobre determinado ato criminoso tenta legitimar o desrespeito a princípios e garantias fundamentais. É fato, por exemplo, que mesmo com a presença de defensor nos atos de negociação, não há participação dos corréus durante as tratativas, prejudicando o equilíbrio processual e o princípio contraditório assegurado ao corréu.
O conteúdo produzido probatório produzido pelo colaborador constitui elemento de prova unilateral pela acusação com forte caráter vinculativo (art. 4º, § 11, Lei das Organizações Criminosas) sem jamais ser submetida a uma comprovação de sua veridicidade. Conforme BITTENCOURT[21] conclui:
“É no mínimo arriscado apostar em que tais informações, que são oriundas de uma traição, não possam ser elas mesmas traiçoeiras em seu conteúdo.Certamente aquele que é capaz de trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, não terá escrúpulos em igualmente mentir, inventar, tergiversar e manipular as informações que oferece para merecer o que deseja.”
A par disso, é importante ter ciência que a prova negociada por si só é insuficiente para produzir conteúdo condenatório, não apenas do colaborador, como também dos delatados. A colaboração premiada não pode ser a maior prova no processo penal sem ser submetida ao contraditório e ampla defesa apenas pela justificativa da morosidade processual.
De outra parte, são problemáticos os impedimentos da utilização de recursos e habeas corpus pelo delator. Cercear direitos constitucionais para viabilizar a eficácia de delações é um expediente perigoso aos princípios da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição e, inclusive, do acesso à Justiça, tendo em vista que a delação poderá não atingir todos os objetivos pretendidos pelo delator, como o perdão judicial ou o a redução de pena. Se mostra claramente ilegal, pois viola o princípio da legalidade, a introdução de benefícios não previstos na lei, como se tem visto diversas vezes.
Por fim, importante discutir o art. 7º, § 2º e 3º, o mesmo aponta que o acesso aos autos será restrito ao juiz, ao delegado de polícia e ao Ministério Público, como forma de garantir o sucesso das investigações, assegurando ao defensor do acusado amplo acesso ao conteúdo probatório que tenha relação ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento e que o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia.
É notória, a tentativa de tolher um direito já garantido pelo Supremo Tribunal Federal, na súmula vinculante nº 14, que dispõe sobre o acesso do advogado aos autos do inquérito. A lei atual dispõe que o advogado do acusado terá acesso aos autos, nos termos da súmula vinculante nº 14, “devidamente precedido de autorização judicial”, uma regra abusiva sem qualquer nexo visando exclusivamente desrespeitar o direito a informação do defensor.
5 CONCLUSÃO
Por todo exposto, se mostrou clara a discussão jurídica existente na jurisprudência no que diz respeito ao instituto da colaboração premiada que se torna centro de amplos debates e críticas. Tratando se de uma legislação ainda em discussão quanto a sua matéria, se mostram necessárias tais discussões na busca por soluções às omissões existentes que melhor se adequem aos pressupostos constitucionais.
O instrumento recebe atenção em um momento em que o atual sistema criminal se mostra em crise ante a carência dos meios hábeis de produção de prova. Em uma ocasião marcada pela complexidade das organizações, com elaborada estrutura e divisão hierárquica. O Estado frente a necessidade do sistema processual penal em buscar soluções diferentes ao modelo tradicional, buscando maior eficiência para satisfazer a demanda processual contesta direitos e garantias fundamentais dando margem a plausíveis fundamentações quanto a legitimidade do instituto e sua conformidade com princípios típicos do Estado de Direito.
É possível notar que a colaboração premiada surgiu como alternativa do Estado para situação de grave crise democrática, o que serviu de justificativa para a adoção da concessão de benefícios pessoais em troca da colaboração do acusado. Analisando, que o discurso do medo e da necessidade de combate ao crime é dirigido ao Poder Judiciário através da pressão midiática, exigindo uma postura menos garantista e predominantemente condenatória.
Como já discutido, deve se equilibrar a balança das garantias e da eficiência sem desprezar a defesa de uma racionalidade de princípios, pois estes, são às únicas premissas capazes de limitar os excessos do Estado e atingir a Justiça dentro do processo penal. Assim sendo, o artigo em análise teve o objetivo de evidenciar os instrumentos da colaboração premiada e delação premiada como meio de alcance ao fim desejado do devido processo legal.
6 REFERÊNCIAS
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BENTHAM, Jeremy, Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação
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BULLA, Beatriz,https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,acordos-na-justica-criminal-dos-eua-chegam-a 95,70002699933#:~:text=WASHINGTON%20%2D%20Os%20acordos%20na%20justi%C3%A7a,num%20acordo%20com%20os%20promotores.
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WRIGHT, Ronald e LEVINE, Kay, A cura pra jovens promotores, https://arizonalawreview.org/wright-levine/ - https://arizonalawreview.org/pdf/56-4/56arizlrev1065.pdf
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Crime Organizado: uma categoria frustada. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, 1996, p. 45
[1] BENTHAM, Jeremy, Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação, 1789, cap.4,p.1
[2] BENTHAM, Jeremy, Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação
[3] ROXIN, Claus. ROXIN, Claus. Que comportamentos pode o Estado proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais. . In: http://www.ielf.com.br/webs/ielfnova/cursos/pdf/lfg_que_comportamentos_roxin.pdf. p. 33
[4] MILL, Utilitarismo, Cap. II
[5] MILL, Utilitarismo, Cap. II
[6] Cf. A Theory of Justice
[7] Cf. A Theory of Justice, p.24
[8] BRANDT, Richard B. op. cit. p. 412
[9] ROXIN, Claus. ROXIN, Claus. Que comportamentos pode o Estado proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais. . In: http://www.ielf.com.br/webs/ielfnova/cursos/pdf/lfg_que_comportamentos_roxin.pdf. p. 33
[10] BRANDT, Richard B. op. cit. p. 411
[11] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p.64
[12] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 36. ed. Petrópolis:Vozes, 2009, p.61
[13] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p.107
[14] BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores, XXXIV), p. 15
[15] ERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Vários Tradutores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.268
[16] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p.29
[17] BULLA, Beatriz,https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,acordos-na-justica-criminal-dos-eua-chegam-a
[18] WRIGHT, Ronald e LEVINE, KAY https://arizonalawreview.org/wright-levine/ -
https://arizonalawreview.org/pdf/56-4/56arizlrev1065.pdf
[19] PAVANELLI NETO, João. A efetividade da delação premiada como instrumento de controle do crime organizado transnacional,2009, p.04.
[20] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Crime Organizado: uma categoria frustada. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, 1996, p. 45
[21] BITENCOURT, Cezar Roberto & BUSATO, Paulo César. Comentários à lei de organização criminosa – Lei 12.850/2013, p.117
Advogado com formação na Universidade Pontífica Universidade Católica de Campinas/São Paulo/SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, FLAVIO MANOEL. Utilitarismo e Colaboração Premiada/Delação Premiada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2023, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61602/utilitarismo-e-colaborao-premiada-delao-premiada. Acesso em: 26 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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