ANDRÉ DE PAULA VIANA
(Orientador)
RESUMO: O presente artigo tem como foco principal apresentar uma análise no que diz respeito ao procedimento de reconhecimento de pessoas em sede inquisitorial, destacando a importância das formalidades desse ato, tendo como cenário a inobservância dos requisitos previstos em lei, considerando ainda existência de fatores internos e externos que influenciam na qualidade e eficácia do ato. O trabalho desenvolve-se a partir da análise da falha em sede policial no que tange ao reconhecimento pessoal e fotográfico e da possibilidade de ser considerado meio idôneo de prova. Em vista disso, no presente estudo far-se-á, primeiramente, uma análise de algumas noções fundamentais da prova no âmbito do processo penal, de modo a se elucidar alguns conceitos, construindo uma base que permite uma melhor compreensão do tema que vem a ser abordado no decorrer do trabalho e posteriormente, o ato de reconhecimento será detalhadamente analisado, bem como os fatores que podem influenciar nesse procedimento, desde a inobservância à lei, como também o fenômeno das falsas memórias e da seletividade penal. Por fim, serão apresentadas medidas que, se adotadas resultarão em um rito adequado, tal como previsto, e poderão reduzir, expressivamente, os erros provenientes dessa prova.
Palavras-chave: Reconhecimento de pessoas. Sede inquisitorial. Falha. Rito adequado.
ABSTRACT: The main focus of this article is to present an analysis with regard to the procedure for recognizing people in an inquisitorial setting, highlighting the importance of the formalities of this act, having as a scenario the non-compliance with the requirements provided for by law, also considering the existence of internal and external factors. external factors that influence the quality and effectiveness of the act. The work is developed from the analysis of the failure in police headquarters regarding personal and photographic recognition and the possibility of being considered a suitable means of evidence. In view of this, in the present study, an analysis will be made, firstly, of some fundamental notions of proof in the context of criminal proceedings, in order to elucidate some concepts, building a base that allows a better understanding of the theme that comes to light. be addressed in the course of the work and later, the act of recognition will be analyzed in detail, as well as the factors that can influence this procedure, from non-compliance with the law, as well as the phenomenon of false memories and criminal selectivity. Finally, measures will be presented that, if adopted, will result in an adequate rite, as foreseen, and may significantly reduce the errors arising from this test.
Keywords: People recognition. Inquisitorial seat. Failure. Proper rite.
Para análise do reconhecimento de pessoas no processo penal brasileiro, é indispensável uma breve análise inicial sobre as noções gerais das provas no sistema acusatório.
O processo penal possui o objetivo de reunir elementos suficientes a demonstrar ao julgador a ocorrência ou não de um fato delitivo, por meio da análise de dados passados demonstrados a partir dos componentes da prova. Ocorre, todavia que se criou a ideia de que os fatos delituosos poderiam ser reproduzidos fielmente no processo penal, no entanto, essa busca incessante pela chamada “verdade real” acarretou diversas ações arbitrárias do Estado.
Em vista disso, o atual sistema acusatório pressupõe a substituição do princípio da verdade real pela busca de um ato de convencimento, que se dará através do devido processo legal e dos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Sobre o tema, são preciosas as lições de Gustavo Henrique Badaró:
No entanto, retirar a verdade do trono em que reinava absoluta no processo penal não significa desterrá-la. Se a verdade não é o centro do processo penal, não há como negar, por outro lado, que a verdade exerce um papel importante no processo. Não se trata de eliminá-la, mas de deslocá-la do lugar de centralidade, até então ocupado, para um ponto diverso, secundário. A verdade não é o fim último do processo penal e, sua busca não pode se dar a partir de uma premissa de que os fins justificam os meios. No caso em que uma limitação à descoberta da verdade se justifique para fazer prevalecer outro valor, como o respeito à dignidade humana, à proteção da intimidade, à preservação da imparcialidade do julgador, igualmente ou mais relevante para que se profira uma decisão justa, é de admitir a adoção de regras legais antiepisiêmicas, desde que fundamentais para preservar o outro valor em jogo (BADARÓ, 2015, p. 374).
O exercício do direito de punir Estatal, o chamado jus puniendi, por estar vinculado aos direitos e interesse individuais, deve ser precedido de um processo baseado em preceitos que possibilitem uma adequada verificação dos fatos.
2 PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NO ESTUDO DAS PROVAS
O processo penal brasileiro deve ser estudado no contexto dos princípios e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal. Assim sendo, no que diz respeito ao estudo das provas, há limites legais existentes, que servem para proteger cada indivíduo em sua particularidade. Em vista disso, a seguir serão apresentados aspectos gerais de alguns princípios e garantias que norteiam o estudo acerca do reconhecimento como meio de prova.
2.1 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
A Constituição Federal foi a primeira a apresentar formalmente o princípio da presunção de inocência em seu artigo 5º, inciso LVII, que se relaciona com a ideia de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, sendo assim, uma maneira de tratamento do réu durante o curso da persecução criminal, impossibilitando que ele seja identificado como um condenado definitivo, bem como que sofra medidas restritivas de direitos em razão do processo ainda em curso.
2.2 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Previsto no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Esse princípio é uma base de efetivação dos direitos fundamentais do réu, sendo um alicerce à visão garantista do processo penal.
2.3 PRINCÍPIO DA GARANTIA DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO
O princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, advém da condição imposta pela Constituição Federal em seu artigo 93, inciso IX, de que todas as decisões judiciais deverão ser fundamentadas, devendo assim, o juiz julgar apreciando livremente as provas produzidas no processo e de acordo com elementos concretos dos autos. Na esfera do Processo Penal, está descrito no artigo 155, caput, do Código de Processo Penal, bem como no artigo 381, inciso III, do Código de Processo Penal que exige que sejam indicados na sentença os motivos de fato e direito em que se fundou a decisão.
2.4 PRINCÍPIO DA GARANTIA DO CONTRADITÓRIO
Este princípio está disposto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, e garante que ambas as partes do processo terão o direito de se manifestarem sobre qualquer fato ou prova produzida pela parte contrária. Em regra, deve-se garantir o contraditório no momento da produção da prova, entretanto, em algumas situações ocorrerá o “contraditório diferido”, que é a possibilidade de admissão de um contraditório posterior quando determinados atos são praticados sem a ciência das partes.
2.5 PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO
É um princípio constitucional que deriva da presunção de inocência, ampla defesa e direito ao silêncio, estabelecendo que o acusado não deve ser obrigado a produzir provas que o prejudique, podendo dessa forma se negar a participar de atos que eventualmente possa prejudicar a sua defesa.
3 RECONHECIMENTO DE PESSOAS E SEU PROCEDIMENTO
O reconhecimento, pode ser descrito como um meio de prova irrepetível, tendo em vista que não pode ser repetido de forma idêntica. Sendo também, um meio de prova urgente, já que por estar exposto à fatores relacionados à memória, deve ser realizado de forma antecipada obedecendo a previsão legal e garantindo o contraditório e a ampla defesa.
Assim, explica Guilherme de Souza Nucci:
O juiz jamais deve condenar uma pessoa única e tão somente com base no reconhecimento feito pela vítima, por exemplo, salvo se essa identificação vier acompanhada de um depoimento seguro e convincente, prestado pelo próprio ofendido, não demovido por outras evidências (NUCCI, 2020, p.898).
Assim sendo, se realizado em sede de investigação, não pode ser usado como único fundamento para basear uma decisão judicial, visto que nessa fase não há o que se falar em apreciação do contraditório e da ampla defesa. Da mesma maneira, mesmo que o reconhecimento seja realizado em sede de instrução, o magistrado também não deverá fundamentar uma sentença somente com base no reconhecimento da vítima.
O reconhecimento de pessoas e coisas consiste em um meio de prova previsto no ordenamento jurídico, que permite a busca da reconstrução do fato delituoso a partir da identificação de suspeitos e instrumentos relacionado a determinado fato delitivo e tem sua previsão legal nos artigos 226 e seguintes do Código de Processo Penal, sendo dividido em quatro fases que serão apresentadas a seguir.
3.1 PRIMEIRA FASE DO RECONHECIMENTO
Conforme prevê o Código de Processo Penal, primeiramente a pessoa que fará o reconhecimento deverá descrever a pessoa a ser reconhecida. Guilherme de Souza Nucci reforça:
Essa providência é importante para que o processo fragmentário da memória se torne conhecido, vale dizer, para que o juiz perceba se o reconhecedor tem a mínima fixidez (guarda o núcleo central da imagem da pessoa que pretende identificar) para proceder ao ato. Se descrever uma pessoa de dois metros de altura, não pode, em seguida, reconhecer como autor do crime um anão. É a lei da lógica aplicada ao processo de reconhecimento, sempre envolto nas naturais falhas de percepção de todo ser humano (NUCCI, 2020, p.895).
Essa fase consiste em uma oportunidade de obter do reconhecedor informações acerca do contato que ele teve com o suspeito e confrontar o grau de certeza que ele tem, pois o contato posterior aos fatos com o suspeito – seja pessoalmente ou até mesmo pela mídia – pode influenciar significativamente na sua memória e fazer com que haja uma identificação equivocada.
3.2 SEGUNDA FASE DO RECONHECIMENTO
Diz respeito a fase de comparação, sendo necessário que a pessoa a ser reconhecida seja posicionada juntamente com outras com quem se possua semelhança.
Nesse ponto, Aury Lopes Jr. destaca dois aspectos quanto ao número de pessoas e as semelhanças físicas. A respeito do número de pessoas ele acredita que, como o Código é omisso, é recomendável que o número não seja inferior a 5 (cinco), ou seja, quatro pessoas mais o imputado, para maior credibilidade do ato e redução da margem de erro. Já no que tange às semelhanças físicas necessárias entre a pessoa a ser reconhecida e as demais. Entende-se que não basta qualquer semelhança, mas sim um conjunto de dados semelhantes.
3.3 TERCEIRA FASE DO RECONHECIMENTO
Fase em que o reconhecedor deverá identificar a pessoa envolvida no crime, dentre os sujeitos que lhe são apresentados. Todavia, é preciso ter cautela, a fim de evitar que a pessoa que vai realizar o ato de reconhecimento normalmente tenha gerado a sensação de obrigatoriedade de apontar alguém como autor do delito.
3.4 QUARTA FASE DO RECONHECIMENTO
Momento em que, após a realização do ato de reconhecimento, consoante a previsão das fases anteriores, há a transcrição e documentação do ato, elaborando-se um auto pormenorizado, que permite observar as falhas existentes ou o respeito total ao rito procedimental. Por isso, sem a devida documentação, o reconhecimento não terá qualquer validade.
A não adoção rigorosa do disposto no artigo 226, do Código de Processo Penal é alvo de crítica por doutrinadores, como Aury Lopes Jr:
Tais cuidados, longe de serem inúteis formalidades, constituem condição de credibilidade do instrumento probatório, refletindo na qualidade da tutela jurisdicional prestada e na própria confiabilidade do sistema judiciário de um país (LOPES JR, 2020, p. 773).
Em suma, a primeira fase resulta da necessidade de se ativar a memória do reconhecedor e, por meio dela, constata-se o grau de atenção do sujeito ativo; a segunda fase evita sugestionamentos no ato, pois a colocação de outras pessoas de características semelhantes serve para produzir outros elementos de comparação e constatar o grau de certeza do reconhecedor; a terceira fase é justamente o momento em que o reconhecedor vai indicar, entre as pessoas ali expostas, qual seria a envolvida e a quarta fase documenta todas as anteriores.
4 A INOBSERVÂNCIA DA FORMA
Feitas as considerações iniciais acerca do ato de reconhecimento, importante esclarecer como este ato deveria, em tese, ocorrer e o modo como há, na prática, a inobservância da forma prevista na lei pela autoridade que realiza.
Conforme leciona Aury Lopes Jr., o ato de reconhecimento consiste em uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa que – em matéria processual penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer “reconhecimentos informais”, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado.
Nesse cenário, fato é que este ato ainda é encarado como um ato repetível, de modo que a realização feita em sede policial, normalmente, não ocorre de acordo com a produção antecipada de provas, precisando, desse modo, ser repetida em juízo para adquirir o status de prova.
Acerca da formalidade necessária no ato do reconhecimento, Aury Lopes Jr. sustenta:
É ato formal que visa a confirmar a identidade de uma pessoa ou coisa. O problema é a forma como é feito o reconhecimento. (...) Logo, não é reconhecimento quando o juiz simplesmente pede para a vítima virar e reconhecer o réu (único presente e algemado...), pois descumpre a forma e é um ato induzido. Contudo, os juízes fazem a título de “livre convencimento”, com sério risco de nulidade processual (ilicitude da prova) na medida em que viola o sistema acusatório (gestão da prova nas mãos das partes); quebra a igualdade de tratamento, oportunidades e fulmina a imparcialidade; constitui flagrante nulidade do ato, na medida em que praticado em desconformidade com o modelo legal previsto; e, por fim, nega eficácia ao direito de silêncio e de não fazer prova contra si mesmo.( LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 496.)
No mesmo sentido, Tourinho ministra:
É comum, entretanto, nas audiências, o Juiz solicitar à vítima ou à testemunha que, olhando o réu ali sentado, proceda ao seu reconhecimento. Observa-se que indagar da testemunha se reconhece o réu ali sentado como sendo o autor do crime não é, tecnicamente, um reconhecimento, mas um prolongamento do seu depoimento. (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 673-674.)
Como já explicitado, o juiz regido pelo livre convencimento motivado, deve fundamentar suas decisões apreciando livremente as provas produzidas no processo e de acordo com elementos concretos dos autos, sobretudo observando a formalidade prevista em lei. Outrossim, o reconhecimento repetido em juízo é extremamente problemático, uma vez que é muito difícil reiterar o ato de reconhecimento em sede judicial com as mesmas pessoas presentes no reconhecimento realizado em sede policial.
Ademais, insta esclarecer que a interpretação da lei deve ser restrita, pois somente desta forma estar-se-á garantindo a observância das regras processuais.
5 O RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO
Há que se falar na inobservância também em sede policial, quando da realização do chamado “reconhecimento fotográfico”.
Em suma, o reconhecimento por fotografia é um meio de prova atípico, já que não apresenta previsão legal. Por isso, deve seguir o procedimento de prova análogo, qual seja, o reconhecimento presencial.
Nesse sentido, sabe-se que o reconhecimento fotográfico “é um perigoso meio de prova e que tem dado causa a inúmeros casos de erro judiciário, sendo assim, há que se falar que a fotografia – mostrada em sede policial ou, eventualmente, veiculada pela mídia – consiste em uma percepção que pode ser fomentadora de erros, uma vez que “quanto mais repetida a percepção, mais complexa e mais precisa ela será.
Nesse contexto, importante ainda falar do “efeito compromisso”, este ocorre quando há uma identificação incorreta, por exemplo, quando a pessoa analisa muitas fotografias e identifica o sujeito incorreto e, posteriormente, ao realizar o reconhecimento pessoal presencial, devido à tendência de manter o compromisso anterior, ela mantém a escolha acerca da identificação, mesmo que haja dúvidas.
Dito isso, insta destacar que a situação se agrava ainda mais quando observamos que os atos de reconhecimento realizados no Brasil, em sua grande maioria, são feitos sem a presença do advogado do suspeito e sem oportunizá-lo a recusa à participação no ato. E mais, no caso de recusa do investigado e admissibilidade da sua recusa, muitas vezes, realiza-se o reconhecimento fotográfico, em clara violação ao direito de silêncio e de não produzir provas contra si do investigado.
Diante do que fora explanado, há que se considerar que os tribunais superiores brasileiros vêm admitindo essa espécie de reconhecimento, desde que observadas as formalidades contidas no artigo 226 do Código de Processo Penal, ou, mesmo que não observadas em sede policial, as irregularidades fossem sanadas em juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, considerando a independência formal entre inquérito e processo.
6 FATORES QUE INFLUENCIAM NA FRAGILIDADE DO RECONHECIMENTO COMO PROVA
Tendo em vista a complexidade do tema discutido no presente trabalho, faz-se necessária uma análise acerca da interdisciplinaridade entre o processo de reconhecimento e a memória humana em seu viés psicológico e biológico.
Como discorrido, a prova obtida através do reconhecimento de pessoa é uma prova muito frágil e também falha, isto é, para além das falsas memórias, diversos fatores podem influenciar no ato, tais como o transcurso do tempo, a inobservância de algum dos requisitos formais previstos, o fato de uma fotografia de um “suspeito” ter sido mostrada antes do reconhecimento presencial, o anseio punitivo de encontrar o culpado pelo crime praticado, o tempo da exposição da vítima ao crime e ao contato com o agressor, a gravidade do fato (memória está intimamente ligada à emoção), o intervalo de tempo entre o delito e a realização do reconhecimento, as condições ambientais (visibilidade, aspectos geográficos), as condições psíquicas da vítima (memória, estresse, nervosismo), as características do agressor (mais ou menos marcantes) e a natureza do delito (com ou sem o emprego de violência física, o grau da violência psicológica empregada).
Além de tudo que fora exposto acerca dos aspectos capazes de influenciar negativamente o ato de reconhecimento, há ainda que se tratar do risco do reconhecedor ser influenciado a reconhecer uma das pessoas que lhe são apresentadas, uma vez que há uma grande pressão psicológica sofrida, que faz com que o reconhecedor se sinta na obrigação de reconhecer uma das pessoas, para não decepcionar a autoridade judiciária e por temer as consequências caso não identifique nenhuma daquelas pessoas.
Acerca dessa pressão sofrida pelo reconhecedor, Aury Lopes Jr. acrescenta que:
Elementar que a confiabilidade do reconhecimento também deve considerar a pressão policial ou judicial (até mesmo manipulação) e a inconsciente necessidade das pessoas de corresponder à expectativa criada, principalmente quando o nível sociocultural da vítima ou testemunha não lhe dá suficiente autonomia psíquica para descolar-se do desejo inconsciente de atender (ou de não frustrar o pedido da “autoridade”). (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 502.)
Por tal razão, resta incontroverso que o reconhecimento não pode ser o único elemento para fundamentar o juízo de certeza quanto à autoria delitiva, uma vez que consiste em um meio de prova extremamente frágil e falho.
6.1 AS FALSAS MEMÓRIAS
As falsas memórias diferenciam-se da mentira, tendo em vista que naquelas o agente crê honestamente no que está relatando, pois, a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente).
Nesse seguimento, Aury Lopes Jr expõe:
A prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado no processo penal brasileiro (especialmente na criminalidade clássica) e, ao mesmo tempo, o mais perigoso, manipulável e pouco confiável. Esse grave paradoxo agudiza a crise de confiança existente em torno do processo penal e do próprio ritual judiciário (LOPES JR, 2014).
As testemunhas possuem grande importância para a ação penal. Assim, é preciso reconhecer a importância do estudo do impacto das falsas memórias na produção da prova testemunhal.
A falibilidade da prova testemunhal decorre de que a mesma pode ser repleta de erros e alterada por atos voluntários, como por exemplo, a mentira, e atos involuntários (falsa memória).
6.2. A SELETIVIDADE PENAL
O sistema penal seria “o conjunto das agências que operam a criminalização (primária e secundária), formada pelo Poder Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Polícia, Sistema carcerário e demais agências – como as de comunicação social, já que as mídias exercem um papel decisivo no processo de construção das noções de delito e de criminoso na atualidade.
Ocorre que o sistema jurídico penal brasileiro – desde a abordagem policial, passando pelo ato de reconhecimento do suspeito, toda instrução probatória, até o momento de ser proferida a sentença – é conduzido por um racismo estrutural. O levantamento nacional de informações penitenciárias – INFOPEN, divulgado em dezembro de 2017, acerca de dados colhidos em 2016, que demonstra que a população carcerária brasileira contava com 726.712 presos, levando o Brasil a assumir o terceiro lugar no ranking de países que mais prendem no mundo, sendo o público-alvo desse sistema prisional bem definido, trata-se de jovens negros de baixa escolaridade, acusados de tráfico e crimes patrimoniais. Os dados revelam que 55% dos presos têm até 29 anos, mas considerando até 34 anos, a fração se eleva para 74%. No total, 64% dos presos são negros e se considerarmos apenas a população do sistema penitenciário federal, sobe para 73%.
Os dados apresentados só evidenciam o que vem sendo explanado: os estereótipos culturais – como cor e classe social – têm sim uma grande influência na percepção dos delitos. Por conta dessa influência, pode-se dizer que vítimas e testemunhas têm uma tendência de reconhecer em função desses estereótipos, em que a raça e perfil socioeconômico são estruturantes de um verdadeiro estigma.
Isto posto, nota-se que a seletividade penal do sistema de justiça brasileiro é mais um dentre os diversos fatores que influenciam no ato de reconhecimento, fazendo com que essa prova, por si só, não seja confiável a ponto de lastrear sentenças condenatórias.
7. RECONHECIMENTO PESSOAL E FOTOGRÁFICO E A JURISPRUDÊNCIA
Em 2020 uma decisão história do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou não ser suficiente para condenação o reconhecimento de pessoas por foto:
“De todo urgente, portanto, que se adote um novo rumo na compreensão dos Tribunais acerca das consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal de pessoas; não se pode mais referendar a jurisprudência que afirma se tratar de mera recomendação do legislador, o que acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças”. (HC n. 598.886-SC, Rel. Ministro Rogério Schietti, 6a T. 27/10/2020).
O caso que movimentou essa decisão do Ministro Rogério Schietti trata-se de um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública de Santa Catarina em favor de dois pacientes, que foram acusados e condenados em primeira instância por roubo.
Essa condenação se baseou, unicamente, no reconhecimento de pessoa, feito na sede da polícia, mas sem obedecer às formalidades do Artigo 226 do Código de Processo Penal, quando foram apresentadas fotografias dos acusados às vítimas, que por sua vez, os reconheceram, mas acabaram mencionando outras circunstâncias, como uso de capuz e altura do suspeito.
A partir dessa fala do Ministro Rogério Schietti, o cumprimento das formalidades para o ato de reconhecimento, que até então era uma mera recomendação, teve confirmado seu status de condição necessária para que um reconhecimento de pessoa possa configurar como prova. Essa decisão do ministro se torna, portanto, um verdadeiro divisor de águas para a proteção de inocentes e direito de defesa.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme foi desenvolvido no presente estudo, a memória possui uma grande fragilidade, tendo em vista que diversos fatores internos e externos podem influenciar em seu processo de aquisição, retenção e recuperação, dando origem assim, às falsas memórias.
A finalidade do presente trabalho foi introduzir uma reflexão crítica acerca do valor probatório do reconhecimento de pessoas no ordenamento jurídico brasileiro diante da informalidade com a qual ele é tratado, bem como alertar quanto aos riscos decorrentes das falsas memórias. Outrossim, em breve análise, no tocante à seletividade penal demonstrou-se, de outras formas, a influência que recai sobre o ato de reconhecimento de erros provenientes da memória e dos estereótipos criados dentro da sociedade.
A não observância dos preceitos processuais presentes no artigo 226, do CPP, resulta em um meio de prova ineficaz, frágil e precário, pois a partir do momento em que uma prova ilegítima é aceita, a mesma não está indo de encontro com os ditames constitucionais e processuais, concluindo pela nulidade processual decorrente da inobservância dos requisitos previstos.
Conclui-se, com o presente artigo que, é de suma importância a análise e o estudo de um regime processual democrático, tendo em vista que, um Estado preocupado com a tutela de direitos fundamentais, impõe-se uma sustentação por elementos objetivos e racionais, desvinculados de qualquer incerteza. É certo também que, essas mudanças urgentes no campo probatório penal, não podem se limitar apenas ao âmbito teórico ou normativo, mediante projetos de lei, devendo ser pensadas em diferentes níveis operacionais da Justiça criminal. Especificamente, em relação ao Direito Processual Penal, nota-se a necessidade de uma mudança de aplicação da lei pelos operadores do Direito, no que diz respeito a tutela de direitos fundamentais, desde a fase de investigação até o trânsito em julgado do processo, falando-se em estratégias concretas que possibilitem a devida instrução e a correta execução de protocolos técnicos de reconhecimento pessoal nos diferentes âmbitos da justiça criminal brasileira.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940, Código Penal. 28ª Edição. São Paulo: Editora Rideel, 2022.
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LOPES JR., Aury. Direito Processual e a sua Conformidade Constitucional. v. I. 8ª ed. Porto Alegre: Lumen Juris, 2011
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LOPES JÚNIOR, Aury, Direito Processual Penal. 20ª edição Saraiva, 2023.
LOPES JUNIOR, Aury. Você confia na sua memória? Revista Consultor Jurídico, 2014. Parte 2. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2014-out03/limite-penal-voce-confia-memoria-infelizmente-processo-penal-dependedela-parte>. Acesso em 27 fev. 2023.
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SEIXAS, Claudia. STJ firma decisão sobre reconhecimento de pessoas por foto. Disponível em: https://claudiaseixas.adv.br/stj-firma-decisao-sobre-reconhecimento-de-pessoas-por-foto-nao-e-suficiente-para-condenacao/. Acesso em: 01 de mai. de 2023.
Advogada- OAB/SP Graduada em Direito pela Universidade Brasil. Campus Fernandópolis/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARMO, Rafaela Silva do. Reconhecimento pessoal e fotográfico: falhas decorrentes de irregularidades em sede inquisitorial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jun 2023, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61674/reconhecimento-pessoal-e-fotogrfico-falhas-decorrentes-de-irregularidades-em-sede-inquisitorial. Acesso em: 25 dez 2024.
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