VERÔNICA DO PRADO DISCONZI [1].
(orientadora)
RESUMO: Um dos maiores atentados referentes à dignidade de crianças e adolescentes é o abandono. Dentre as várias formas de abandono, encontra-se o por meio digital. Esse tipo de abandono é caracterizado pela ausência de supervisão dos pais, ou seja, a falta da obrigação do cuidado, zelo e proteção dos filhos no espaço digital. Diante desse cenário, esse estudo teve o objetivo de discorrer sobre os efeitos do abandono digital de crianças e adolescentes, além de analisar as consequências jurídicas advindas desse ato. Na metodologia, tratou-se de uma revisão da literatura, baseada em artigos científicos, doutrina jurídica, jurisprudência e legislação vigente. A coleta de dados se deu por meio do banco de dados da Scielo e Google Acadêmico. Nos resultados encontrados por esse estudo, ficou evidente constatar que o acesso ilimitado e constante de crianças e adolescentes aos conteúdos encontrados no meio digital traz danos perigosos a esses indivíduos. Quando esse contato é aliado a falta de supervisão dos pais, os seus efeitos são ainda maiores, em razão das inúmeras situações de vulnerabilidade e risco a que estes estão expostos.
Palavras-chave: Abandono. Digital. Efeitos jurídicos. Responsáveis.
The Digital abandonment of children and adolescents in Brazil: the consequences of the lack of surveillance by those responsible
ABSTRACT: One of the greatest attacks on the dignity of children and adolescents is abandonment. Among the various forms of abandonment is the digital through. This type of abandonment is characterized by the absence of parental supervision, that is, the lack of the obligation of care, zeal and protection of children in the digital space. Given this scenario, this study aimed to discuss the effects of digital abandonment of children and adolescents, as well as analyze the legal consequences arising from this act. In the methodology, it was a literature review, based on scientific articles, legal doctrine, jurisprudence and current legislation. Data collection was through the Scielo and Google Academic database. In the results found by this study, it was evident that the unlimited and constant access of children and adolescents to the contents found in the digital environment brings dangerous damage to these individuals. When this contact is allied to the lack of parental supervision, its effects are even greater, due to the numerous situations of vulnerability and risk to which they are exposed.
Keywords: Abandonment. Digital. Legal effects. Responsible.
Sumário: 1. Introdução. 2. Autoridade Parental. 3. A proteção a crianças e aos adolescentes no meio ambiente virtual. 4. A responsabilidade parental no abandono digital. 5. Considerações Finais. 6. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Cada vez mais as crianças e adolescentes tem uma facilidade de acesso à Internet. A título de exemplo, em pesquisa realizada pela TIC Kids Online Brasil, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) apontou que o número de crianças e adolescentes do Brasil com acesso à internet cresceu no ano de 2021. Na presente pesquisa, mostrou que 93% das crianças e adolescentes do país entre 9 e 17 anos são usuárias de internet, o que corresponde a cerca de 22,3 milhões de pessoas conectadas nessa faixa etária (CRUZ, 2022).
Apesar desse crescimento, muito tem-se discutido de que forma esse acesso em demasia pode afetar o desenvolvimento desse público, principalmente no que concerne ao seu crescimento educacional, psicológico, familiar e social. Algo que é extremamente relevante para auxiliar nas escolas, também é um dos que causam mais incidentes relacionados ao acesso de conteúdo impróprio.
Neste cenário, o que se tem percebido nas últimas décadas é que o acesso ilimitado à internet feito por crianças e adolescentes em grande parte é causada pelo abandono digital. Conceitualmente, Ruiz (2022) explica que esse instituto corresponde à ausência dos pais na observação e zelo com os filhos no campo digital. Ou seja, os pais, estão negligentes nos cuidados dos seus filhos quando estes acessam livremente a internet. Dessa feita, pode-se considerar que o maior fator relacionado ao abandono de crianças e adolescentes na internet, é em decorrência da negligência dos adultos, pois são obrigados a proteger os menores perante o Estado.
Portanto, o legislador, por esses e outros casos, observou que era necessário desenvolver regras para o resguardo dos menores na sociedade. Ao logo dos anos, são criadas cada vez mais políticas governamentais em favor da criança. Tem-se como basilar de tais proteções o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelecesse seus direitos e obrigações, além de outras normas infraconstitucionais.
Mesmo com todo o amparo jurídico já existente, cada vez mais o abandono digital vem se tornando uma situação recorrente. Assim, observa-se que se deve analisar sempre a criação de ações para combater ou mitigar o abandono, como orientações sobre a utilização de todos os meios da Internet, carecem de autorização governamental especial para menores, cabe, portanto, ao responsável legal fiscalizar toda a atividade gerada pelo navegador (internet).
O destaque do abandono digital, principalmente no que se tange o cenário pandêmico (COVID-19) e pós pandemia, foi o tempo que esses menores ficavam em casa, dando brecha então para que o ambiente virtual fosse o mais utilizado para o entretenimento por parte desses menores. Percebeu-se que a utilização desse meio virtual ocorria e permanece ocorrendo, sem supervisão de um adulto ou informações necessárias sobre o que eles estão fazendo, sem norte de certo ou errado no mundo digital.
Frente a esse cenário, o presente estudo teve o objetivo de discorrer sobre os efeitos do abandono digital de crianças e adolescentes, além de analisar as consequências jurídicas advindas desse ato.
Para discutir o presente assunto de forma clara e desembaraçada, o método de pesquisa utilizado é o qualitativo, onde foi elaborada a pesquisa através das formas bibliográfica e descritiva, com base na legislação, doutrina, artigos científicos virtuais, etc.
Sob a ótica de nossa comunidade judiciária, a pesquisa sobre este tema tem o direito de olhar para a responsabilidade civil em relação a esses casos, pois cada caso e circunstância que ocorre deve ser analisado exaustivamente.
2. AUTORIDADE PARENTAL
Antes de adentrar na discussão central desse estudo, é necessário entender primeiramente o conceito de criança. Para isso, tem-se o Estatuto da Criança e do Adolescente que traz em seu texto explicitando que é considerado criança a pessoa com até 12 anos incompletos de idade (BRASIL, 1990). Essa delimitação é oriunda do fato de que se entende que esse período, o cérebro de uma criança ainda está em desenvolvimento, assim como o seu aspecto físico, psicológico, social e familiar. São também, para fins jurídicos, considerados pessoas vulneráveis, ou seja, não possuem o total discernimento para a vida adulta (VATANABE, 2017).
É também nessa faixa etária, que o desenvolvimento intelectual está em constante crescimento, onde a busca pelo conhecimento e pelo saber fazem parte desse momento. Dessa forma, Vatanabe (2017) afirma que é no período infantil que se desenvolvem aptidões, valores e crenças, muitas delas influenciadas pelos pais, que devem a todo momento estarem presentes.
É nesse ponto que se adentra a autoridade parental. Preliminarmente, a autoridade parental pode ser vista como um conjunto de direitos e obrigações relacionados à pessoa e aos bens dos menores e dos filhos não liberados, destinados a promover o pleno desenvolvimento de sua personalidade. Há quem diga que a autoridade parental pode ser chamada de “função”, considerando que, embora seja exercida pelos pais, também é em benefício dos filhos (FILHO, 2021).
O poder familiar, portanto, decorre não apenas da relação natural entre pais e filhos, mas também da relação jurídica, que é inalienável e eterna. As obrigações que cria são muito pessoais. Além de fornecer assistência material, essas obrigações também incluem a obrigação de apoiar o desenvolvimento das crianças em indivíduos úteis e membros da sociedade (MIRANDA, 2020).
As autoridades responsáveis, em ambiente digital, por meio do monitoramento do acesso às plataformas de internet, estão diretamente relacionadas ao seu dever de cuidar e proteger as crianças e adolescentes, no entanto, este continua sendo um tema pouco discutido, pois muitos pais desconhecem a falta de conscientização dos filhos. A vigilância do uso da internet por adolescentes pode levar ao abandono digital, permitindo a exposição de dados pessoais do público, que sem dúvida são vulneráveis, deixando-os suscetíveis a fraudes e outros riscos psicológicos e emocionais (MENDES; SANTOS, 2022).
Nas palavras de Alves e Santana (2022, p. 13) os pais são responsáveis socialmente e juridicamente. Dessa forma, eles possuem o dever de vigiar os filhos, que no caso prático “também seria saber com que eles estão, como estão e onde estão, principalmente no meio digital, que é um local onde os filhos menores nos dias atuais, frequentam constantemente”.
Desta forma, os deveres de guarda são essenciais para realizar a vigilância necessária. Sendo o progenitor civilmente responsável pelo comportamento do filho menor, o poder de tutela faz vigorar o poder de orientar a formação moral do menor.
3. A PROTEÇÃO A CRIANÇAS E AOS ADOLESCENTES NO MEIO AMBIENTE VIRTUAL
No caso presente, o que se pode constatar e que é uma situação bastante caracterizada na sociedade, indo além de várias questões inerentes aos ambientes virtuais, visto a brevidade, não há menção legal explícita de possíveis penalidades para a renúncia digital de configurações. Diante disso, faz-se necessária uma construção que utilize as possíveis sanções já prescritas em outras situações de exposição de crianças e adolescentes.
Segundo Pereira (2008) o abandono digital é uma falha da obrigação de informação, onde os pais deveriam supervisionar seus filhos e são responsáveis por quaisquer danos causados.
O texto legal menciona, ainda que de forma breve, que os pais ou responsáveis legais devem exercer o poder familiar sobre os filhos menores e são responsáveis por seus atos perante terceiros, além de emitir juízos sobre a responsabilidade dos pais em relação aos filhos menores. Na internet, vale destacar que quando o próprio Estado deixa de fiscalizar seu acesso, as crianças e adolescentes não são os autores dos atos ilícitos, mas as vítimas, e não há regras sobre a responsabilidade dessas pessoas. ao mundo virtual (TIBÚRCIO, 2018).
Gonçalves (2020) dispõe que o abandono digital, objeto desse estudo, se caracteriza pela imprudência e omissão dos pais quanto à segurança dos filhos em ambiente virtual, momento este, que se agravou principalmente no período de pandemia da Covid-19.
A Covid-19 é uma doença contagiosa que adentrou no cenário mundial mais precisamente em meados do fim do ano de 2019, na China. Desde então se espalhou ao redor do mundo, tornando-se uma pandemia. Com a pandemia, a sociedade, principalmente nos anos de 2020 a 2021 teve-se que se adaptar a uma nova realidade. Milhares de escolas, comércios, indústrias, e demais estabelecimentos tiveram que ser fechados, em decorrência do crescimento do contágio da doença, que é mortal (ALVES; SANTANA, 2022).
As medidas de segurança impostas foram principalmente o isolamento e o distanciamento social. É nesse contexto, que muitas crianças e adolescentes, estando temporariamente integrados em seus domicílios em tempo integral ficaram mais suscetíveis ao contato ilimitado à internet. Com isso, houve uma crescente onda de uso da internet e tudo o que nela pode aparecer (ALVES; SANTANA, 2022).
A Covid-19, muito além da doença, também impactou as relações familiares. Muitos pais acabaram por “abandonarem” seus filhos no período em que poderiam ter uma maior proximidade e convivência. Com isso, deixaram que eles utilizassem cada vez mais a internet ou outro aparato tecnológico, configurando assim, o abandono digital.
Sobre esse aspecto, cita-se:
O bloqueio das atividades cotidianas da sociedade por muitos meses, ocasionou impactos econômicos e consequentes altos custos para a vida das populações, assim como também a mudança da maioria dos trabalhos para o home office, trazendo ainda mais mudança na vida da população e das crianças, com o teletrabalho dos pais, em que todos passaram a trabalhar de casa, trazendo assim uma sobrecarga de trabalho e rotina sobretudo para a maioria dos pais, que tiveram o acúmulo desordenado das atividades relacionadas à profissão, compromissos com as tarefas do lar, tendo que dar suporte também às atividades escolares dos filhos. Nesse momento, pais e familiares queriam maior privacidade para realizar suas funções e com isso as crianças poderiam estar agitadas e para acalmá-las entregavam aparelhos celulares, tablets e outros meios virtuais para que assim pudessem ficar calmas e permitir maior concentração nas atividades laborais, momento ao qual, não monitoravam ou realizavam a devida e imprescindível vigilância necessária do que os menores estavam acessando, ademais, muitos pais também precisaram compartilhar um mesmo aparelho celular com seus filhos para poder acompanhar as atividades escolares (ANDRADE et al., 2020, p. 11).
Andrade et al. (2020) ao discutirem sobre esse tema, continuam explicando o que são os principais riscos que as crianças e adolescentes podem ter ao terem acesso ilimitado à internet e sem supervisão dos pais. Os autores citam por exemplo, a divulgação de materiais inapropriados, tais como como pornografia ou de cunho violento e de práticas ilícitas; vídeos e imagens de agressões físicas contra terceiros; dentre outros.
Do mesmo modo, abre-se possibilidade de os próprios compartilharem informações sigilosas ou pessoais dos próprios pais ou de outros, gerando prejuízos de imagem e financeiro. Ou ainda de cometerem delitos, como por exemplo, a compra com cartões de créditos de terceiro, sem a anuência do titular (ANDRADE et al., 2020).
Com a possibilidade de perigo e de prejuízos nesse âmbito, a legislação brasileira vem nos últimos anos editando normas jurídicas que buscam regular de forma mais incisiva e direta as práticas abusivas e ilícitas no campo digital. A título de exemplo, destaca-se a Lei nº 12.965/2014, mais conhecida como o Marco Civil da Internet, que traz definições, penalizações e demais aspectos relacionados a essa matéria.
Pereira (2020) nos explica que o Marco Civil da Internet veio na esteira de normatizar o uso da internet no Brasil. É uma lei que visa limitar o uso desse mecanismo, bem como penalizar os seus agentes que a utiliza para cometimento de crimes. No entanto, apesar de ser de suma importância para a temática, para fins da discussão desse estudo, ela ainda é vaga, uma vez que ela não traz especificamente a regulamentação nos casos de cyberbullying, xenofobia, pedofilia, assalto virtual, roubo de identidade, entre diversas ofensas, aliciamento de menores e a briga pelo direito autoral, relacionado ao tema aqui em análise.
Dessa forma Maciel (2018) acredita que a supracitada lei, apenas traz conceitos e termos técnicos, não fazendo um aprofundamento sobre os efeitos que o mundo digital pode trazer a criança e ao adolescente nesses espaços. Ou seja, não amplia a temática para alcançar esse público, que vem a cada ano se tornando o mais usual nesse campo.
Paralelo a essa norma, adentrou-se no ordenamento jurídico brasileiro a Lei nº. 13.709/2018, denominada de Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Tal norma veio trazer um pouco mais de segurança a respeito dos males que o meio digital pode trazer aos menores. Aqui, frisa-se a importância do consentimento específico dos pais ou responsáveis legais quanto ao tratamento dos dados pessoais das crianças. Desta forma, para que seja criada uma conta na internet, é preciso antes de tudo, a permissão dos responsáveis, para que o acesso seja permitido, gerando maior segurança no uso das ferramentas online (YANDRA; SILVA; SANTOS, 2020).
A LGPD em seu art. 14 § 1º traz exatamente a necessidade de consentimento dos pais ao acesso da internet realizado pelos filhos. Contudo, esse texto é considerado frágil, haja vista que não menciona os adolescentes. Isso se destaca em razão do fato de tanto crianças quanto adolescentes utilizam da internet quase que diariamente e são suscetíveis a cometerem qualquer delito indireto e de serem influenciados negativamente em razão da exposição ao qual se sujeitam nesse meio (BRASIL, 2018).
De todo modo, é evidente constatar que o abandono digital gera enormes efeitos. Alves e Santana (2022) ao analisarem as consequências desse tipo de abandono, explicam que ele pode trazer efeitos psicológicos, em especial nas crianças (devido ao seu desenvolvimento intelectual), que são vulneráveis e “fáceis” de serem manipuladas ou de serem vítimas de abuso. Uma vez se tornado vítimas, muitas crianças acabam adquirindo transtornos psicológicos e traumas que podem repercutir na fase adolescente e adulta.
Por conta disso, é obrigação dos pais e responsáveis realizar um acompanhamento contínuo para que o crescimento saudável da criança ou do adolescente seja garantido e eficaz. Esse zelo deve ser feito inclusive no meio digital, principalmente quando se é sabido que esse ambiente pode oferecer perigos que podem afetar o desenvolvimento destes. Em situação contrária, eles deverão ser responsabilizados. Sobre essa questão, apresenta-se o tópico seguinte.
4. A RESPONSABILIDADE PARENTAL NO ABANDONO DIGITAL
A questão do abandono digital e as consequentes responsabilidades dos pais ou responsáveis ainda não são legalmente regulamentadas especificamente no ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, a ausência dessa norma não os exime da responsabilidade civil por seus atos, podendo ser aplicadas as normas existentes.
Não há dúvida de que os pais têm a responsabilidade de monitorar as atividades de seus filhos no mundo virtual e educá-los sobre os danos que o mundo digital pode causar à saúde mental das pessoas. Os pais têm a complexa tarefa de alocar tempo de qualidade às crianças e adolescentes sob suas responsabilidades e poderes como um porto seguro de situações difíceis que possam surgir, seja no mundo físico ou digital.
A Lei da Criança e do Adolescente também inclui disposições que tratam das responsabilidades familiares, conforme estabelecido na Lei da Criança e do Adolescente em seu art.4º.
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
(BRASIL, 1990)
Assim, consequências do abandono digital de uma criança ou adolescente são configurações negligentes por parte de seus pais ou responsáveis. Essa negligência configura-se como uma atitude negligente dos pais que não têm interesse em participar ou verificar as atividades de seus filhos no mundo virtual.
Criança conectada à Internet sem a supervisão de um adulto é um menor abandonado digital. Por isso, os responsáveis precisam estar mais presentes na vida dos filhos, ouvindo e conhecendo suas aventuras no mundo on-line, sabendo de que e com quem os filhos estão brincando, inclusive no ambiente digital. Isso o fará se sentir acolhido, facilitando maior proximidade e controle sobre o que faz quando está conectado (CRUZ JÚNIOR, 2020, p. 10).
De acordo com Gonçalves (2020) o abandono digital infantil está ligado diretamente ao consumo ilimitado e exacerbado das crianças na internet sem que se tenha a supervisão dos pais ou responsáveis, ao ponto de que os efeitos nocivos que esse ato pode gerar não seja levado em consideração pelos pais.
Klunck e Azambuja (2020) ao estabelecer o que o abandono digital afirmam que é uma forma de negligência parental, porque é oriunda da desatenção dos pais no que tange a segurança dos filhos no espaço virtual, expondo-os a uma série de riscos.
Sabendo-se que a internet é um campo vasto e ao mesmo tempo nocivo, os pais devem estar atentos ao que seus filhos consomem nesse ambiente. Quando não há um acompanhamento nesses casos, configura-se o abandono digital.
No campo jurisprudencial, ainda que pouco, já existem julgados nessa linha entendendo que a ausência de supervisão dos pais no uso contínuo da internet pelos filhos, pode ensejar a eles a responsabilização civil. Nesse ponto, destaca-se a seguinte jurisprudência:
APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. INTERNET. USO DE IMAGEM PARA FIM DEPRECIATIVO. CRIAÇÃO DE FLOG – PÁGINA PESSOAL PARA FOTOS NA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES. RESPONSABILIDADE DOS GENITORES. PÁTRIO PODER. BULLYING. ATO ILÍCITO. DANO MORAL IN RE IPSA. OFENSAS AOS CHAMADOS DIREITOS DE PERSONALIDADE. MANUTENÇÃO DA INDENIZAÇÃO. PROVEDOR DE INTERNET. SERVIÇO DISPONIBILIZADO. COMPROVAÇÃO DE ZELO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE PELO CONTEÚDO. AÇÃO. RETIRADA DA PÁGINA EM TEMPO HÁBIL. PRELIMINAR AFASTADA.DENUNCIAÇÃO DA LIDE. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS. Apelo do autor [...] VI. Aos pais incumbe o dever de guarda, orientação e zelo pelos filhos menores de idade, respondendo civilmente pelos ilícitos praticados, uma vez ser inerente ao pátrio poder, conforme inteligência do art. 932, do Código Civil. Hipótese em que o filho menor criou página na internet com a finalidade de ofender colega de classe, atrelando fatos e imagens de caráter exclusivamente pejorativo. Incontroversa ofensa aos chamados direitos de personalidade do autor, como à imagem e à honra, restando, ao responsável, o dever de indenizar o ofendido pelo dano moral causado, o qual, no caso, tem natureza in re ipsa. VIII. Quantum reparatório serve de meio coercitivo/educativo ao ofensor, de modo a desestimular práticas reiteradas de ilícitos civis. Manutenção do valor reparatório é medida que se impõe, porquanto harmônico com caráter punitivo/pedagógico comumente adotado pela Câmara em situações análogas. APELOS DESPROVIDOS (Apelação Cível, Nº 70031750094, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em: 30-06-2010). (grifo meu)
Com base no julgado acima, verificou-se que a ausência dos pais no acompanhamento do filho como usuário da internet, fez com que o mesmo criasse uma página na internet com o intuito de ofender um colega de classe, o que mostra claramente que esse é um campo ao qual se deve ter toda uma atenção.
Neste cenário, surge uma questão: de que forma se responsabiliza o abandono digital infantil, uma vez que esse tema é recente e sem uma legislação específica?
Alves e Santana (2022) entendem que caso os pais ou responsáveis legais sejam leigos quanto ao uso da tecnologia e suas atribuições, caberá ao Estado proporcionar a eles, políticas públicas que tragam dados e informações, quanto ao uso da internet, a fim de evitar, que os pais sejam omissos aos filhos no poder de guardiões, em relação ao uso exacerbado da internet e das redes sociais, evitando assim que os filhos sejam expostos aos perigos do mundo virtual.
Portanto, neste sentido, uma vez configurada a situação de abandono digital, é imperativa a intervenção do Estado para salvaguardar os direitos dos grupos vulneráveis nesta situação. No entanto, por se tratar de uma realidade recente, ainda não há uma definição clara das sanções aplicáveis em tais casos de renúncia (LOPES, 2022).
No mais, já existem algumas ações que podem ajudar os pais no processo de cuidado e zelo aos filhos nesse campo. Como exemplos, cita-se primeiramente a ferramenta do Google Family (Family link), onde através deste aplicativo tem-se a possibilidade de controlar o conteúdo que os filhos baixam (além da exigência de senha dos responsáveis para permitir o seu uso), e o tempo que usam cada app, como WhatsApp e jogos. Outra alternativa é o Youtube Kids, que funciona como um filtro para selecionar o conteúdo que as crianças podem acessar (CAMPOS, 2020). Dessa forma, é possível que os pais possam de forma segura evitar que o uso da internet se torne um problema para seus filhos e para si mesmos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O advento da Internet trouxe ao mundo novos modelos sociais de convivência, comunicação, consumo, aprendizado e convívio. Não há dúvidas de que as conexões entre pessoas das mais diversas regiões do mundo foram fomentadas e ampliadas. No entanto, essa globalização para o mundo digital, juntamente com seus muitos benefícios, também traz perigos para a saúde dos seres humanos, especialmente crianças e adolescentes.
A verdade é que muitas pessoas passam a maior parte do tempo na Internet, seja nas redes sociais, usando e-mail, pesquisando, trabalhando, estudando ou apenas por diversão.
Uma preocupação hoje é o fato de muitas crianças e adolescentes estarem expostos ao mundo digital por horas, fato que pode prejudicar o aprendizado, a concentração, o humor e até expô-los a crimes cibernéticos como cyberbullying, redes de pedofilia, crimes sexuais e outras práticas que prejudicam não apenas crianças e jovens, mas famílias inteiras.
É fundamental compreender que nem sempre as crianças e os adolescentes são protegidos e reconhecidos como titulares de direitos, pois o reconhecimento do conceito de criança e a santificação do princípio da prioridade absoluta, traz a proteção necessária a essas pequenas e vulneráveis vidas.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, passaram a receber atenção especial do Estado, da família e da sociedade pela falta de cuidado e descaso com o seu desenvolvimento humano.
Assim, o abandono digital é caracterizado pela negligência dos pais em restringir, censurar e direcionar o uso da Internet pelas crianças. Tal negligência pode prejudicar crianças e adolescentes influenciados pela autoridade parental e de terceiros. Crianças e adolescentes cujos pais são responsáveis por cuidar, prover e acolher seus filhos, tendo em vista que tanto o Código Civil quanto o Estatuto estabelecem sua obrigação de cuidar, prover e acolher seus filhos, uma vez constatado o abandono e o dano à saúde é causado.
Ainda não existem normas específicas em nosso ordenamento jurídico sobre a questão da responsabilidade parental por abandono digital, mas isso não pode e não deve ser ignorado, dada a análise sistemática da Constituição Federal, da Lei da Criança e do Adolescente e do Código Civil.
Concluindo, é importante cultivar a função social da família contemporânea, que não mais possui características puramente econômicas, mas deve ser encarada como um ambiente saudável e propício ao bom desenvolvimento de quem nela vive, principalmente das crianças e jovens, santificando assim os direitos fundamentais de qualquer pessoa e a dignidade da pessoa humana.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Docente do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – UnirG. E-mail: veronicadesconzi@gmail.com.
Graduando em Direito pela Universidade de Gurupi.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Gabrielle Camargo Matias. O abandono digital de crianças e adolescentes no Brasil: as consequências da falta de vigilância por parte dos responsáveis Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2023, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61832/o-abandono-digital-de-crianas-e-adolescentes-no-brasil-as-consequncias-da-falta-de-vigilncia-por-parte-dos-responsveis. Acesso em: 23 dez 2024.
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