RESUMO: O presente artigo abordará o Tema 990 do Supremo Tribunal Federal - Possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário, bem como o alcance da tese fixada na referida Repercussão Geral à luz dos supervenientes precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: sigilo fiscal; compartilhamento de dados fiscais; (des)necessidade de autorização judicial.
ABSTRACT: This article will discusse the Theme 990 of the Federal Supreme Court - Possibility of sharing with the Public Ministry, for criminal purposes, the bank and tax data of the taxpayer, obtained by the Federal Revenue in the legitimate exercise of its duty to inspect, without prior authorization from the Power Judiciary, as well as the scope of the thesis established in the aforementioned General Repercussion in the light of supervening precedents of the Superior Court of Justice.
Keywords: tax secrecy; tax data sharing; need (or not) for court authorization.
1.INTRODUÇÃO
A garantia dos sigilos bancários fiscais é corolário do direito fundamental previsto no art. 5º, X, da Constituição Federal, que preconiza que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Todavia, é lição basilar no direito que não possuem “caráter absoluto a garantia dos sigilos bancário e fiscal, sendo facultado ao juiz decidir acerca da conveniência da sua quebra em caso de interesse público relevante e suspeita razoável de infração penal” (AI 541265 AgR, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 04/10/2005).
A própria legislação infraconstitucional prevê a possibilidade de quebra de sigilo bancário quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes: I – de terrorismo; II – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra o sistema financeiro nacional; VI – contra a Administração Pública; VII – contra a ordem tributária e a previdência social; VIII – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores; IX – praticado por organização criminosa (art. 1º, § 4º, Lei Complementar n.º 105/2001).
Por sua vez, o Código Tributário Nacional prevê determinadas hipóteses de relativização do sigilo de dados fiscais dos contribuintes, especialmente para fins de: I – representações fiscais para fins penais; II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública; III - parcelamento ou moratória; e IV - incentivo, renúncia, benefício ou imunidade de natureza tributária cujo beneficiário seja pessoa jurídica (art. 198, § 1º, do CTN).
Acerca do tema, AMÉRICO BEDÊ JÚNIOR teve oportunidade de lecionar que “a privacidade é um importante direito fundamental, mas não pode servir de proteção para a prática de crimes. Não se devem criar barreiras desnecessárias ou equivocadas ao dever-poder investigativo do Estado. O princípio da proibição de proteção insuficiente serve para impedir atuações legislativas ou interpretações doutrinárias ou judiciais que inviabilizem uma proteção efetiva do Estado para com os bens penais” (BEDÊ JR., Américo. A retórica do direito fundamental à privacidade. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 83 - grifei).
O Supremo Tribunal Federal, desde longa data, já consolidou os pressupostos necessários à relativização desse direito fundamental:
[...] A primeira é que se exigem, ao lado dos requisitos da motivação (a) e da pertinência temática com o que se investiga (b), outros de não menor peso. Um deles é a necessidade absoluta da medida (c), no sentido de que o resultado por apurar não possa advir de nenhum outro meio ou fonte lícita de prova. Esta exigência é de justificação meridiana, suscetível de ser entendida por toda a gente, pela razão óbvia de que não se pode sacrificar direito fundamental tutelado pela Constituição - o direito à intimidade -, mediante uso da medida drástica e extrema da quebra de sigilos, quando a existência do fato ou fatos sob investigação pode ser lograda com recurso aos meios ordinários de prova. Restrições absolutas a direito constitucional só se justificam em situações de absoluta excepcionalidade. O outro requisito é a existência de limitação temporal do objeto da medida (d), enquanto predeterminação formal do período que, constituindo a referência do tempo provável em que teria ocorrido o fato investigado, seja suficiente para lhe esclarecer a ocorrência por via tão excepcional e extrema. [...] Ou seja - para que se não invoque nenhuma dúvida ao propósito -, a Constituição da República não tolera devassa ampla de dados da intimidade do cidadão, quando, para atender a necessidade legítima de investigação de ato ou atos ilícitos que lhe seriam imputáveis, basta seja a quebra de sigilos limitada ao período de tempo em que se teriam passado esses mesmos supostos atos. (MS 25812 MC, Decisão monocrática do Min. Cezar Peluso, julgado em 17/02/)
Portanto, a quebra de sigilo fiscal exige, como regra, a intervenção do Poder Judiciário. Passaremos a abordar a evolução do entendimento dos Tribunais Superiores acerca dos requisitos e hipóteses para o “compartilhamento” daqueles dados para fins criminais, junto aos órgãos de persecução penal.
2. DA EVOLUÇÃO DO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
2.1 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 2.859/DF
Ainda no ano de 2016, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da ADI nº 2.859/DF, ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, que impugnava normas federais que possibilitam a utilização, pela fiscalização tributária, de dados bancários e fiscais acobertados por sigilo.
Na referida ação, foi alegada ofensa aos artigos 5º, incisos X (inviolabilidade da vida privada e da intimidade), XII (inviolabilidade do sigilo de dados), XXXV (inafastabilidade da jurisdição) e LIV (princípio do devido processo legal) e 145, § 1º, todos da Constituição Federal. Eis os principais fundamentos alegados pelo autor daquela ação:
[...] a) a jurisprudência deste STF consolidou-se no sentido de não caber ao Poder Executivo determinar, sem interferência do Poder Judiciário, a quebra do sigilo bancário e fiscal;
b) sendo os sigilos bancário e fiscal desdobramentos do direito à privacidade, o qual tem estatura constitucional, somente podem ser flexibilizados mediante ordem judicial devidamente fundamentada;
c) a inviolabilidade do sigilo de dados, prevista no art. 5º, inciso XII, é absoluta, sendo relativa somente aquela concernente ao sigilo das comunicações telefônicas, que admite quebra por decisão judicial;
d) a possibilidade do contribuinte acionar o Poder Judiciário apenas em momento posterior ao acesso aos dados bancários pela administração tributária viola o direito à inafastabilidade da jurisdição;
e) embora as garantias fundamentais estabelecidas na Constituição possam ter exceções regulamentadas por leis infraconstitucionais, a legislação deve observar limites, tais como o respeito ao núcleo essencial e o respeito ao princípio da razoabilidade. As normas impugnadas violariam o princípio da razoabilidade, visto que a supressão da intimidade dos contribuintes, por meio do monitoramento de suas operações financeiras, não é medida indispensável à eficiente fiscalização tributária;
f) muito embora se reconheça a inexistência de direitos absolutos em face do interesse público, este não se confunde com o interesse da Fazenda Pública, colocando-se as garantias constitucionais como medidas de proteção das liberdades das pessoas contra o arbítrio do Estado;
g) os preceitos violam a garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, uma vez que promovem a quebra automática de sigilo de dados financeiros, sem a ocorrência de justa causa ou de indícios de irregularidades;
Para compreender o cerne da discussão, vale a pena destacar o seguinte trecho do voto condutor do acórdão, lançado pelo Ministro Dias Toffoli:
[...] Como salientei, mantenho o entendimento que em outras ocasiões já externei: para se falar em “quebra” de sigilo bancário pelos dispositivos impugnados, necessário seria vislumbrar, em seus comandos, autorização para a exposição das informações bancárias.
Consoante assinalou o Procurador-Geral da República em seu parecer, “a afronta à garantia do sigilo bancário, como dito, compreendida no âmbito de proteção do inciso X do artigo 5º da Carta da República, não ocorre com o simples acesso a esses dados, mas verdadeiramente com a circulação desses dados”.
A previsão de circulação dos dados bancários, todavia, inexiste nos dispositivos impugnados, que consagram, de modo expresso, a permanência do sigilo das informações obtidas com espeque em seus comandos. É o que expressam o § 5º do art. 5º e o parágrafo único do art. 6º.
Como se vê, o envio de informações financeiras à administração tributária da União nos moldes da Lei Complementar nº 105/2001 não configura quebra de sigilo fiscal, mas sim mera “transferência de sigilo” entre as instituições, garantido a inviolabilidade da vida privada, da intimidade e do sigilo de dados, já que deve permanecer hígida a garantia de que tais informações não sejam publicadas indiscriminadamente e sem controle pelos órgãos competentes.
Nesse sentido, esclareceu ainda o eminente Ministro Dias Toffoli:
[...] Soma-se a isso o art. 10 da própria lei complementar, que estabelece que a divulgação de informações bancárias pelas instituições financeiras fora das hipóteses previstas na lei constitui crime, o qual é apenado com reclusão, de um a quatro anos, e multa. Além disso, a lei fixa, no art. 11, a responsabilização civil do servidor público que “utilizar ou viabilizar a utilização de qualquer informação obtida em decorrência da quebra de sigilo de que trata esta Lei Complementar” , respondendo “pessoal e diretamente pelos danos decorrentes, sem prejuízo da responsabilidade objetiva da entidade pública, quando comprovado que o servidor agiu de acordo com orientação oficial”.
A determinação de sigilo se estende, ainda, pela legislação tributária, apontada nos dispositivos questionados.
Observe-se que o Código Tributário Nacional, no art. 198, “[veda] a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”.
Questiono, então: de que tratam todos esses dispositivos, senão do sigilo das informações? Na percuciente definição da eminente Ministra Ellen Gracie, exposta durante o julgamento da AC nº 33, “o que ocorre não é propriamente a quebra de sigilo, mas a ‘transferência de sigilo’ dos bancos ao Fisco. Os dados, até então protegidos pelo sigilo bancário, prosseguem protegidos pelo sigilo fiscal.
Com base nessas premissas, portanto, a Suprema Corte julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.859/DF. Eis as principais conclusões do julgado:
[...] 4. Os artigos 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001 e seus decretos regulamentares (Decretos nº 3.724, de 10 de janeiro de 2001, e nº 4.489, de 28 de novembro de 2009) consagram, de modo expresso, a permanência do sigilo das informações bancárias obtidas com espeque em seus comandos, não havendo neles autorização para a exposição ou circulação daqueles dados. Trata-se de uma transferência de dados sigilosos de um determinado portador, que tem o dever de sigilo, para outro, que mantém a obrigação de sigilo, permanecendo resguardadas a intimidade e a vida privada do correntista, exatamente como determina o art. 145, § 1º, da Constituição Federal.
5. A ordem constitucional instaurada em 1988 estabeleceu, dentre os objetivos da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Para tanto, a Carta foi generosa na previsão de direitos individuais, sociais, econômicos e culturais para o cidadão. Ocorre que, correlatos a esses direitos, existem também deveres, cujo atendimento é, também, condição sine qua non para a realização do projeto de sociedade esculpido na Carta Federal. Dentre esses deveres, consta o dever fundamental de pagar tributos, visto que são eles que, majoritariamente, financiam as ações estatais voltadas à concretização dos direitos do cidadão. Nesse quadro, é preciso que se adotem mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal, sendo o instrumento fiscalizatório instituído nos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/ 2001 de extrema significância nessa tarefa.
6. O Brasil se comprometeu, perante o G20 e o Fórum Global sobre Transparência e Intercâmbio de Informações para Fins Tributários (Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes), a cumprir os padrões internacionais de transparência e de troca de informações bancárias, estabelecidos com o fito de evitar o descumprimento de normas tributárias, assim como combater práticas criminosas. Não deve o Estado brasileiro prescindir do acesso automático aos dados bancários dos contribuintes por sua administração tributária, sob pena de descumprimento de seus compromissos internacionais.
7. O art. 1º da Lei Complementar 104/2001, no ponto em que insere o § 1º, inciso II, e o § 2º ao art. 198 do CTN, não determina quebra de sigilo, mas transferência de informações sigilosas no âmbito da Administração Pública. Outrossim, a previsão vai ao encontro de outros comandos legais já amplamente consolidados em nosso ordenamento jurídico que permitem o acesso da Administração Pública à relação de bens, renda e patrimônio de determinados indivíduos.”
2.2 Tema 990 DE REPERCUSSÃO GERAL - Possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário.
O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.859/DF restringiu-se à questão da transferência do sigilo de dados das instituições financeiras para a Administração Tributária, sem chegar a uma conclusão definitiva acerca da questão do compartilhamento de tais informações, para outras instituições e sem prévia autorização judicial, a exemplo dos órgãos de persecução criminal.
A controvérsia então foi dirimida com a fixação da tese de repercussão geral no tema 990 nos seguintes termos:
[...] 1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.
O voto condutor para a fixação da tese foi proferido pelo Min. Alexandre de Moraes. Merece destaque o seguinte trecho do voto, com os fundamentos pelos quais se chegou àquela conclusão:
[...] Não há, portanto, nenhuma ilegalidade no compartilhamento, entre Receita e Ministério Público, de todas as provas, todos os dados necessários, imprescindíveis, para conformação e lançamento do tributo.
Entendo que, por serem provas lícitas produzidas pela Receita e absolutamente necessárias para constituir a materialidade na infração penal material tributária, nos termos da Súmula Vinculante 24, podem ser compartilhados todos os dados, todas as provas, todas as informações necessárias que a fizeram chegar ao lançamento definitivo do tributo.
Se houver excesso, o excesso deve ser combatido, até porque - faço questão de salientar isso - sempre haverá uma supervisão posterior judiciária.
Essa interpretação coincide com o art. 198, § 3º, inciso I, ao dizer que não é vedada a divulgação de informações relativas a representações fiscais, ou seja, tudo que embasou o lançamento do tributo, tudo que embasou o procedimento administrativo.
3. DO ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA APÓS A TESE DO TEMA 990
O Direito, como ciência social, inevitavelmente sofre influências dos fenômenos sociais. Não se está a dizer que assim deveria ser, mas como as coisas são.
Ao tentar ponderar os interesses antagônicos postos em discussão, o Direito está sujeito, portanto, às influências dos atores que participam do debate jurídico. A esse fenômeno alguns doutrinadores denominam movimento “pendular” do Direito. O papel da Justiça é, portanto, equilibrar na balança o peso desses interesses antagônicos.
No âmbito do Direito Penal, esses interesses antagônicos podem ser resumidos, grosso modo, como o interesse punitivista e o modelo garantista.
No ponto em discussão, não há dúvidas de que os julgados do Supremo Tribunal Federal ampliaram o leque e poder de investigação e fiscalização dos órgãos persecutórios. A tendência natural desses órgãos, dada suas naturezas, é interpretar os julgados da maneira mais favorável à investigação e persecução penal.
De fato, a prática forense tem se deparado com algumas práticas que extrapolaram a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo de requisições de dados fiscais genéricas pelo Ministério Público, sem qualquer tipo de controle, esvaziando a direito fundamental ao sigilo fiscal.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a solucionar em caso envolvendo requisição direta de dados fiscais pelo Ministério Público junto ao Fisco, chegando à seguinte conclusão no bojo do RHC n. 83.233/SP:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTELIONATO MAJORADO, FALSIDADE IDEOLÓGICA E USO DE DOCUMENTO FALSO. OBTENÇÃO DE DADOS FISCAIS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DIRETAMENTE À RECEITA FEDERAL SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. QUESTÃO NÃO COMPREENDIDA NO JULGAMENTO DO TEMA 990 PELO STF. ACESSO DIRETO PELO ÓRGÃO DA ACUSAÇÃO, QUE NÃO SE CONFUNDE COM A REPRESENTAÇÃO FISCAL PARA FINS PENAIS, PREVISTA LEGALMENTE E RECONHECIDAMENTE POSSÍVEL PELA CORTE SUPREMA. COMPARTILHAMENTO QUE OCORRE, DE OFÍCIO, PELA RECEITA FEDERAL, APÓS DEVIDO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO EM QUE, POSTERIORMENTE AO LANÇAMENTO DO TRIBUTO, VERIFICA-SE A EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DA PRÁTICA DE CRIME. ILEGALIDADE CONFIGURADA. RECONHECIMENTO DA ILICITUDE DOS DADOS OBTIDOS PELO ÓRGÃO DA ACUSAÇÃO E OS DELES DECORRENTES.
1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 1.055.941/SP, em sede de repercussão geral, firmou a orientação de que é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional (Tema 990).
2. Da leitura desatenta da ementa do julgado, poder-se-ia chegar à conclusão de que o entendimento consolidado autorizaria a requisição direta de dados pelo Ministério Público à Receita Federal, para fins criminais. No entanto, a análise acurada do acórdão demonstra que tal conclusão não foi compreendida no julgado, que trata da Representação Fiscal para fins penais, instituto legal que autoriza o compartilhamento, de ofício, pela Receita Federal, de dados relacionados a supostos ilícitos tributários ou previdenciários após devido procedimento administrativo fiscal.
3. Assim, a requisição ou o requerimento, de forma direta, pelo órgão da acusação à Receita Federal, com o fim de coletar indícios para subsidiar investigação ou instrução criminal, além de não ter sido satisfatoriamente enfrentada no julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.055.941/SP, não se encontra abarcada pela tese firmada no âmbito da repercussão geral em questão. Ainda, as poucas referências que o acórdão faz ao acesso direto pelo Ministério Público aos dados, sem intervenção judicial, é no sentido de sua ilegalidade.
4. Hipótese dos autos que consiste no fato de que o Ministério Público Federal solicitou, diretamente ao Superintendente da Receita Federal, as declarações de imposto de renda da recorrente, de seus familiares e de diversas pessoas jurídicas, ou seja, obteve-se diretamente do referido órgão documentação fiscal sem que tenha havido qualquer espécie de ordem judicial.
5. A possibilidade de a Receita Federal valer-se da representação fiscal para fins penais, a fim de encaminhar, de ofício, os dados coletados no âmbito do procedimento administrativo fiscal, quando identificada a existência de indícios da prática de crime, ao Ministério Público, para fins de persecução criminal, não autoriza o órgão da acusação a requisitar diretamente esses mesmos dados sem autorização judicial.
6. Recurso provido para reconhecer a ilicitude dos dados (fiscais) obtidos pelo Ministério Público por meio da Receita Federal na Ação Penal n. 0003084-80.2016.4.03.6126, sem autorização judicial, devendo todos os elementos de informação e os deles decorrentes ser desentranhados da ação penal, cabendo ao Juízo de Direito da 3ª Vara Federal de Santo André/SP identificá-los, verificar em quais ações penais foram utilizados e analisar, pormenorizadamente, se as ações penais se sustentariam sem esses indícios.
(RHC n. 83.233/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 9/2/2022, DJe de 15/3/2022.)
De fato, da leitura da ementa do julgado, chega-se à conclusão de que ao órgão de acusação seria peremptoriamente vedado requisitar diretamente dados coletados no âmbito do procedimento administrativo fiscal encerrado ou não, para fins de persecução criminal.
Todavia, entendemos que o ordenamento jurídico deve ser interpretado de maneira sistêmica. Nesse contexto, se a própria legislação impõe como um dever do fisco o encaminhamento da representação fiscal ao Ministério Público, depois de proferida a decisão final na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente, não há razão lógica para entender pela ilegalidade do envio dos dados quando ocorre a requisição direta pelo Parquet.
A controvérsia é tanta, que registraram votos divergentes os Ministros Laurita Vaz, Rogerio Schietti Cruz e Ribeiro Dantas por ocasião do RHC n. 83.233/SP:
[...] (VOTO VENCIDO) (MIN. RIBEIRO DANTAS) "No caso em que não houver Procedimento Administrativo Fiscal, ou de outra natureza, mas a Fazenda tiver informações que possam ser úteis para fazer prova em situação de claro interesse público, já sob exame judicial, tanto que o próprio fisco estaria juridicamente respaldado a fazer o respectivo compartilhamento com o Ministério Público, esse pode fazer, quanto a tais dados específicos, afastada, portanto, a hipótese de 'fishing expedition', um pedido direto ao órgão de administração fazendária, caracterizando-se, no caso, não quebra, mas mera transferência de sigilo, com todas as consequências daí decorrentes". (VOTO VENCIDO) (MIN. LAURITA VAZ) "[...] a requisição direta de dados sigilosos, feita no contexto de apuração de fatos ainda não judicializados, amparada em relevante interesse público concreta e objetivamente delimitado e realizada através de comunicação formal que possibilite a identificação do agente responsável, assim como a apuração de eventuais abusos através dos órgãos de controle interno e externo, resguarda o direito à privacidade e, ao mesmo tempo, confere aplicabilidade concreta aos dispositivos legais que autorizam o compartilhamento ou a requisição, independente de autorização judicial". (VOTO VENCIDO) (MIN. ROGERIO SCHIETTI CRUZ)
"[...] o sigilo pode ser transferido para diversas autoridades sem necessidade de autorização judicial, em razão da dimensão do interesse público envolvido [...]". "[...] o raciocínio quanto à transferência dos dados ficais e à obrigação de manutenção de sigilo pode ser também aplicado para o caso em que há requisição pelo Parquet, notadamente diante da prática de crimes que denotem a presença de relevante interesse público objetivo, que não pode ser confundido com o interesse público geral inerente à persecução penal do Estado por qualquer crime ou mesmo como interesse público secundário". "[...] entendo que a requisição direta dos dados fiscais feita pelo MP prescindiria de autorização judicial.". "[...] a requisição deve ser compreendida não como quebra de sigilo, mas como a transferência dele, do mesmo modo que ocorre com o compartilhamento". "[...] também nas requisições em casos específicos como o dos autos e com a finalidade de dar um tratamento isonômico à forma de aquisição e conhecimento do conteúdo dos dados fiscais, o Ministério Público há de ter acesso a essas informações, ainda que sem autorização judicial, mormente porque já de posse de todos os dados bancários, cujo acesso foi deferido judicialmente".
Aliás, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça em ocasião posterior, entendeu como regular a requisição direta dos dados fiscais pelo Ministério Público após o encerramento do processo administrativo fiscal, com a devida constituição do crédito tributário. Confira-se:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. COMPARTILHAMENTO DE PROCEDIMENTO FISCALIZATÓRIO DA RECEITA FEDERAL. TEMA N. 990 DO STF. ACOMPANHAMENTO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. EXAURIMENTO. CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO. OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. SÚMULA VINCULANTE N. 24. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. Nos termos do entendimento consolidado desta Corte, o trancamento da ação penal, inquérito policial ou procedimento investigativo por meio do habeas corpus é medida excepcional. Por isso, será cabível somente quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito.
2. A tese de repercussão geral fixada no julgamento do RE 1.055.914/SP, em 4/12/2019, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (Tema 990) é a seguinte: é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional.
3. In casu, o Ministério Público, ao realizar pesquisas no Sistema de Administração Tributária (SAT) - amparado em Acordo de Cooperação Técnica entre o Poder Executivo e o Ministério Público - constatou a existência de notificação fiscal que, até então, apontava suposta infração administrativa e que, em tese, poderia configurar delito de sonegação fiscal. Houve instauração de notícia-fato em procedimento interno do Ministério Público e mero acompanhamento do processo administrativo conduzido pela Fazenda Pública, até que sobreveio a informação da constituição definitiva do crédito tributário, requisito essencial para o oferecimento da denúncia em crimes dessa espécie, nos termos da Súmula Vinculante n. 24, segundo a qual "[n]ão se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo".
4. O envio de informações ao Ministério Público decorre de dever legal imposto à autoridade fazendária de comunicar às autoridades competentes a ocorrência de crime contra a ordem tributária após o exaurimento da via administrativa e à constituição definitiva do crédito tributário. Sendo assim, as informações chegariam ao conhecimento do Ministério Público de qualquer maneira, por força do art. 83 da Lei n. 9.430/1996 e do art. 198, § 3º, do CTN.
5. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no RHC n. 178.668/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 29/5/2023, DJe de 2/6/2023.)
Desse modo, consoante registrado pelo Ministro Ribeiro Dantas por ocasião do seu voto no referido julgamento, não há qualquer ilegalidade no procedimento adotado, já que “o envio de informações ao Ministério Público decorre de dever legal imposto à autoridade fazendária de comunicar às autoridades competentes a ocorrência de crime contra a ordem tributária após o exaurimento da via administrativa e à constituição definitiva do crédito tributário. Sendo assim, as informações chegariam ao conhecimento do Ministério Público de qualquer maneira, por força do art. 83 da Lei n. 9.430/1996 e do art. 198, § 3º, do CTN.”
4.CONCLUSÃO
Portanto, não há qualquer ilegalidade quando o Ministério Público requisita diretamente à Administração Fazendária processo administrativo fiscal encerrado, com crédito tributário devidamente constituído, para que possa adotar as medidas criminais que entender cabíveis. Por outro lado, não pode o Parquet, sem qualquer crédito tributário constituído, solicitar diretamente ao Fisco informações fiscais sigilosas detalhadas sobre determinada pessoa, sem a prévia autorização judicial.
REFERÊNCIAS
BEDÊ JR., Américo. A retórica do direito fundamental à privacidade. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 83.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É ilegal a requisição, sem autorização judicial, de dados fiscais pelo Ministério Público. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/17f5e6db87929fb55cebeb7fd58c1d41>. Acesso em: 05/09/2023
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (plenário). ADI 2.859/DF. Ação direta de inconstitucionalidade. Julgamento conjunto das ADI nº 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859. Normas federais relativas ao sigilo das operações de instituições financeiras. Decreto nº 4.545/2002. Exaurimento da eficácia. Perda parcial do objeto da ação direta nº 2.859. Expressão “do inquérito ou”, constante no § 4º do art. 1º, da Lei Complementar nº 105/2001. Acesso ao sigilo bancário nos autos do inquérito policial. Possibilidade. Precedentes. Art. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001 e seus decretos regulamentadores. Ausência de quebra de sigilo e de ofensa a direito fundamental. Confluência entre os deveres do contribuinte (o dever fundamental de pagar tributos) e os deveres do Fisco (o dever de bem tributar e fiscalizar). Compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de compartilhamento de informações bancárias. Art. 1º da Lei Complementar nº 104/2001. Ausência de quebra de sigilo. Art. 3º, § 3º, da LC 105/2001. Informações necessárias à defesa judicial da atuação do Fisco. Constitucionalidade dos preceitos impugnados. ADI nº 2.859. Ação que se conhece em parte e, na parte conhecida, é julgada improcedente. ADI nº 2.390, 2.386, 2.397. Ações conhecidas e julgadas improcedentes. Requerente: Partido Trabalhista Brasileiro. Relator: Min. Dias Toffoli, 24 de fevereiro de 2016. Disponível em: <http:// https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=11899965>. Acesso em: 05 set. 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (plenário). Recurso Extraordinário 1.055.941/SP. Repercussão geral. Tema 990. Constitucional. Processual Penal. Compartilhamento dos Relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal para fins criminais. Desnecessidade de prévia autorização judicial. Constitucionalidade reconhecida. Recurso ao qual se dá provimento para restabelecer a sentença condenatória de 1º grau. Revogada a liminar de suspensão nacional (art. 1.035, § 5º, do CPC). Recorrente: Ministério Público Federal. Recorridos: H.C.H e T.J.H. Relator: Min. Dias Toffoli, 4 de dezembro de 2016. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754018828>. Acesso em: 05 set. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC nº 83.233/SP. Processual penal. Recurso em habeas corpus. Estelionato majorado, falsidade ideológica e uso de documento falso. Obtenção de dados fiscais pelo ministério público diretamente à receita federal sem autorização judicial. Questão não compreendida no julgamento do tema 990 pelo stf. Acesso direto pelo órgão da acusação, que não se confunde com a representação fiscal para fins penais, prevista legalmente e reconhecidamente possível pela corte suprema. Compartilhamento que ocorre, de ofício, pela receita federal, após devido procedimento administrativo em que, posteriormente ao lançamento do tributo, verifica-se a existência de indícios da prática de crime. Ilegalidade configurada. Reconhecimento da ilicitude dos dados obtidos pelo órgão da acusação e os deles decorrentes. Recorrente: Helena Plat Zukerman. Recorrido: Ministério Público Federal. Relator: Min. Sebastião Júnior, 9 de fevereiro de 2022. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201700833385&dt_publicacao=15/03/2022>. Acesso em: 05 set. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC nº 178.668/SC. Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus. Crime contra a ordem tributária. Trancamento da ação penal. Compartilhamento de procedimento fiscalizatório da receita federal. Tema n. 990 do STF. Acompanhamento do procedimento administrativo pelo ministério público. Exaurimento. Constituição definitiva do crédito. Oferecimento da denúncia. Súmula vinculante n. 24. Agravo regimental desprovido. Agravante: S DE S. Agravado: Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Relator: Min. Ribeiro Dantas, 29 de maio de 2023. Disponível em: <http://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202301005333&dt_publicacao=02/06/2023>. Acesso em: 05 set. 2023.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, ANDRÉ AFONSO DE MOURA SOUZA. Do compartilhamento de dados fiscais entre o Fisco e os órgãos de persecução penal e a (des)necessidade de prévia autorização judicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 set 2023, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63030/do-compartilhamento-de-dados-fiscais-entre-o-fisco-e-os-rgos-de-persecuo-penal-e-a-des-necessidade-de-prvia-autorizao-judicial. Acesso em: 25 dez 2024.
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