RESUMO: No presente artigo será abordada a Internação Compulsória no Brasil, seu conceito e discussões que demonstram a realidade deste Instituto no Brasil. Ademais, será importante discorrer acera da Luta Antimanicomial e da Lei nº 10.216/2001 da Saúde Mental, e como atingem direta e indiretamente os doentes mentais que dela necessitam se utilizar. Ainda, será importante demonstrar no decorrer do presente artigo, a problematização das medidas de internação compulsória promovidas pelo poder judiciário e como ela se tornou um mecanismo sociopolítico que reproduz, dia após dia, as desigualdades sociais que tanto se busca minimizar através da Luta Antimanicomial, que é um movimento social que busca resguardar os direitos das pessoas em sofrimento mental e garantir tratamento humanizado para os indivíduos portadores de doenças mentais.
Palavras-chave: internação compulsória; lei antimanicomial; doença mental.
ABSTRACT: In this article, Compulsory Hospitalization in Brazil will be addressed, its concept and discussions that demonstrate the reality of this Institute in Brazil. In addition, it will be important to discuss the Anti-Asylum Fight and the Mental Health Law nº 10.216/2001, and how they directly and indirectly affect the mentally ill who need to use it. Still, it will be important to demonstrate, throughout this article, the questioning of compulsory hospitalization measures promoted by the judiciary and how it has become a sociopolitical mechanism that reproduces, day after day, the social inequalities that so much is sought to minimize through the Anti-Asylum Fight, which is a social movement that seeks to protect the rights of people suffering from mental illness and guarantee humanized treatment for individuals with mental illnesses.
Keywords: compulsory hospitalization; anti-asylum law; mental disease.
INTRODUÇÃO
Não há uma definição objetiva para a saúde mental, sendo um termo que indica o nível de qualidade de vida cognitiva e emocional de uma pessoa. Pode-se dizer que saúde mental é a capacidade de conduzir a própria vida e as suas emoções sem perder a noção do tempo ou espaço, de forma mais direta, é a ausência de doença mental.
Na Constituição Federal do Brasil, a saúde é definida como um direito de todos e um dever do Estado, de forma que o Estado tenha que atuar reduzindo o risco de doenças e de outros agravos, e fornecendo o acesso universal e igualitário à Saúde para todos os brasileiros. Neste contexto, vislumbra-se que a saúde mental também deveria ser assegurada a todos, mas infelizmente o Sistema Único de Saúde ainda é muito insuficiente quando este é o assunto.
A internação compulsória em estabelecimento psiquiátrico é prevista no art. 9° da Lei 10.216/2001. Essa lei representou um grande avanço para a saúde mental, por prever o respeito pelos pacientes e suas vontades. De acordo com o art. 6° da referida lei, existem três tipos de internação, sendo elas a voluntária, a involuntária e a compulsória.
A internação compulsória está prevista na lei como uma necessidade de intervenção, sendo este pedido direcionado a um Juiz de Direito, motivado devido ao paciente não poder decidir pela própria vida. Quando se trata deste tipo de internação, se faz necessária a presença de médicos especialistas para darem laudo quanto ao estado de saúde desses pacientes, conforme prevê o art. 2º da Lei 10.216/01, “o paciente deve ter o direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não da sua hospitalização involuntária”, pois em muitos casos, as famílias ou autoridades que solicitam este tipo de internação, não buscam medidas alternativas e não veem a internação compulsória como medida de tratamento, mas sim, uma forma de resolução rápida de um ‘problema’.
Neste trabalho, será imperioso destacar a contradição da Luta Antimanicomial com o art. 9° da Lei 10.216/01, que preleciona o seguinte:
“A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários” (Art. 9º, Lei 10.2016/2001 - Lei de Saúde Mental).
Com o intuito de expor as contradições da Lei da Saúde Mental e da Luta Antimanicomial, serão demonstradas as pautas da luta antimanicomial, que visa o fim das internações e dos manicômios, bem como respeito e um olhar mais humano por parte do Estado para aqueles que pela lei não possuem mais capacidade mental de administrar sua vida. Ademais, o presente artigo abordará a forma que a internação compulsória é tratada no ordenamento jurídico, como uma internação involuntária, basicamente determinada pela justiça, ferindo direitos constitucionais dos indivíduos, na esfera judicial ou hospitalar.
1.INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
1.1 Medida de Segurança
No ordenamento jurídico, a medida de segurança é uma espécie de sanção penal, e em seu Art. 96, o Código Penal prevê duas medidas de segurança para quem praticou alguma conduta criminosa, mas não é passível de cumprir pena, por ser considerado inimputável ou semi-imputável.
Art. 96. As medidas de segurança são: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - sujeição a tratamento ambulatorial. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Salienta-se, que a linha de pesquisa deste artigo tende a rejeitar qualquer equiparação da medida de segurança à pena, visto que seria ilógico aplicar uma sanção com o caráter punitivo a um indivíduo que não possui discernimento para medir as consequências e o grau de reprovabilidade de seus atos.
Ademais, a definição da natureza jurídica da medida de segurança como sendo uma espécie de pena, geraria contradição com o próprio ordenamento jurídico, pois os doentes mentais são considerados inimputáveis pelo Código Penal, como é possível extrair entendimento do artigo 26 da referida lei, “in verbis”:
Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
O CID (Classificação Internacional de Doenças) possui uma relação dos transtornos mentais, e com base nessa lista, o judiciário aufere o grau de periculosidade do agente e o classifica como inimputável ou semi-imputável, levando em consideração que, o fator que gera a pena é a culpabilidade, à medida que o fator que norteia a aplicação da medida de segurança é a periculosidade, com isso tem-se que a aplicação da medida de segurança está diretamente ligada à periculosidade do agente, e seguindo por esse raciocínio, preleciona Masson (2019, p. 1211):
“Medida de segurança é a modalidade de sanção penal com finalidade exclusivamente preventiva, e de caráter terapêutico, destinada a tratar inimputáveis e semi-imputáveis portadores de periculosidade, com o escopo de evitar a prática de futuras infrações penais. Em que pese o seu aspecto curativo, revela-se como espécie de sanção penal, pois, toda e qualquer privação ou restrição de direitos, para quem a suporta, apresenta conteúdo penoso.” (Masson, 2019, p. 1211)
Portanto, vislumbra-se a impossibilidade de considerar a medida de segurança como sendo uma espécie de pena, constituindo-se esta modalidade penal diversa de uma penalidade, tendo em vista que as duas medidas, em sua essência, possuem o condão totalmente divergente. Ainda, é importante frisar que a disposição acerca da medida de segurança esteja desvinculada do Título previsto à definição legislativa das penas presente no Código Penal, por a medida de segurança ser tratada de forma distinta de uma pena.
1.2 Internação Compulsória como Medida de Segurança
No âmbito das medidas de segurança, podem ser elencados três tipos de tratamentos compulsórios para pessoas que cometeram atos que configuram crimes, porém, por possuírem doença ou problemas mentais, não podem sofrer as mesmas penas de uma pessoa mentalmente saudável. Os três tipos de internações, são a internação voluntária, internação involuntária e internação compulsória, estabelecidas pela Lei 10.216/2001, em seu art. 6°, incisos I, II e III. Frisa-se que a internação só pode ser usada após esgotados os demais tratamentos extra hospitalares e estes mostrarem-se insuficientes na recuperação do paciente.
A internação compulsória, objeto de aprofundamento deste artigo, é a única solicitada pela via judicial, após pedido formal de um médico, entretanto, para sua autorização, se faz necessária a realização de perícia médica, sendo que a internação do paciente só poderá ocorrer mediante a apresentação do laudo médico prévio e circunstanciado, e somente após a formalização desse laudo o magistrado poderá decidir em favor ou desfavor da internação, cabendo a internação compulsória apenas se o laudo da equipe de saúde apontar a doença mental, incapacidade relativa ou total do indivíduo e periculosidade do indivíduo para si ou para outrem.
Para a realização da internação compulsória, são levados em conta alguns critérios, como os direitos do paciente, o “grau” crônico de sua doença e os riscos que causa para si e para os outros. Após analisado essas questões o Estado faz a liberação da internação comunicando o Ministério Público. A internação compulsória está prevista no art. 9° da Lei N° 10.216/01:
“A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários” (ART. 9, Lei de Saúde Mental).
Ao analisar a internação compulsória como medida de segurança, subentende-se que é como uma consequência ao ato praticado pelo doente mental, pois é aplicada, em detrimento da pena, a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, quando da ausência desse, em outro estabelecimento adequado; ou sujeição a tratamento ambulatorial.
Neste tipo de internação, não existe um responsável legal pelo paciente, ficando este a total responsabilidade do Estado, uma vez que, quem cumpre o papel de responsável pela internação é o Juiz de Direito que determina a internação, dado que a equipe médica pede que a autoridade em questão supra a falta do referido responsável.
1.3 Prazo máximo para cumprimento das medidas de segurança
No que se refere ao tempo de cumprimento das medidas de segurança, o Código Penal, em seu art. 97, §1º, determina que não se pode fixar um tempo determinado, pois apenas os médicos podem determinar quando um paciente internado estará capaz de retornar a sua vida normal.
Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Prazo
§ 1º - A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Todavia, a permanência infinita de uma pessoa com deficiência mental que comete conduta prevista como crime, em um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ofende o princípio da legalidade, a garantia da segurança jurídica e o Estado de Direito, consolidando um efetivo processo de estigmatização social, ferindo completamente a dignidade da pessoa humana. Sendo um dos princípios norteadores do Direito, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana possui força e embasamento para impedir hipóteses de indeterminação no cumprimento da medida segurança, assegurando o respeito a integridade dos pacientes que estão internados por tanto tempo.
Dessa forma, o STJ já tem entendimento consolidado acerca do tema na Súmula 527 e a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, definiu como prazo máximo de duração de medida de segurança em substituição à pena corporal, a duração do período de cumprimento da pena imposta na sentença penal condenatória. (AgRg no HC 531.438/GO)
Sendo assim, não há o que falar em internação infinita no ordenamento jurídico brasileiro, devendo ser respeitado o prazo de cumprimento da medida de segurança, e não impondo anos de exclusão do paciente ora internado, sendo de responsabilidade do Poder Público promover meios de ressocializar esse indivíduo.
2. LEI DA SAÚDE MENTAL
2.1 Saúde Mental
Inicialmente, cabe descrever o que é Saúde Mental, e conforme a Organização Mundial de Saúde afirma, não existe possibilidade de conceituar oficialmente a expressão “saúde mental”, uma vez que as divergências culturais interferem diretamente em sua definição, quanto à forma de se portar perante as diferentes comunidades. Um conceito amplamente aceito sobre saúde mental, consiste na possibilidade de equilíbrio entre os comportamentos emocionais de uma pessoa em prol de um convívio social e saudável com outras pessoas da sociedade.
Impende destacar, que o desequilíbrio emocional, apesar de abrangido pela ampla conceituação ora mencionada, por si só não possui a capacidade de justificar a inimputabilidade do agente quando este comete conduta criminosa, apesar de ser possível uma justificativa para o cometimento de uma infração. Nota-se, portanto, que é necessário que a doença do agente criminoso, para que se possa justificar a aplicação da medida de segurança, deve ser oriunda de uma doença mental, e não apenas de uma perturbação emocional, que provoca simples comprometimento da saúde mental.
De acordo com o médico especialista em psiquiatria, Osiris Costeira, o termo “Doença” significa “enfermidade, moléstia, afecção; processo mórbido definido que se manifesta por uma série de sintomas e sinais mais ou menos constantes”. “Mente”, por sua vez, é “a inteligência, o espírito, o entendimento”. Doença mental, para a Medicina, portanto, pode ser conceituada como um conjunto de problemas patológicos que afetam a mente de um indivíduo, causando transtornos emocionais e amplo sofrimento psíquico.
Por conseguinte, apesar do conceito de saúde mental ser amplo, pois para alguns indivíduos é um estado de espírito subjetivo, é possível delimitar, com segurança, um conceito de doença mental para fins do presente artigo e para o ordenamento jurídico, traçando os limites de sua incidência quando da aplicação do instituto da medida de segurança. Logo, tem-se que, a doença mental é um problema patológico que atinge a mente de um indivíduo e, quando atrelada a um rompante psicótico, demonstrado em uma conduta desviante em meio a regras impostas socialmente, elencado como uma infração penal, será condição necessária e suficiente à aplicação da medida de segurança. Em situações que seguem este padrão determinado, conclui-se pela existência dos elementos essenciais à submissão do instituto em apreço, quais sejam a antijuridicidade e a inimputabilidade determinada pelo transtorno mental.
2.2 A Lei 10.2016/2001
Quando promulgada a Lei 10.216 de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, o instituto buscou redirecionar o modelo assistencial em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, apesar de não instituir mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios.
Em seu Art. 2º, a Lei 10.216 de 2001, demonstra o quanto conseguiu evoluir os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental.
Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.
Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
A busca para melhorar o modelo assistencial em saúde mental, teve como principal enfoque o fim do modelo de internação asilar em manicômios, ação que violava, e por vezes ainda viola, os mais básicos direitos humanos dos pacientes, não apresentando qualquer efetividade quanto a prevenção no tratamento do indivíduo, além de buscar mudanças no modelo que se utilizava para reabilitação, quando houvesse a reinserção social das pessoas portadoras de transtornos mentais internados na sociedade ou em suas famílias.
Todavia, passados mais de 20 anos da promulgação da referida Lei, ainda existem pacientes internados em condições inadequadas com tratamentos desumanos e que violam os direitos do paciente. O Estado, se vê diante de vários desafios, que é o encerramento das atividades de manicômios, mais verbas para o SUS destinados à Saúde Mental, mais profissionais especializados para proporcionarem melhores tratamentos aos pacientes internados, isto é, se faz necessária uma reestruturação e ampliação da rede de atenção psicossocial no País para que a Saúde Mental possa ser ofertada com qualidade e eficácia para quem dela necessita.
3. LUTA ANTIMANICOMIAL
No Brasil, à luz do século XX, ainda não se falava sobre políticas públicas que versassem sobre tratamento para doentes mentais, apenas em 1930 foi criado o Serviço Nacional de Doentes Mentais, que objetivava realizar a fiscalização dos serviços existentes e regularização dos novos. Até o ano de 1950, o tratamento dessas pessoas era com banhos quentes e frios, cadeiras giratórias, eletrochoques e medicações fortes.
O primeiro encontro da Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorreu no ano de 1987, e nele foi recomendada a priorização de investimento nos serviços extra-hospitalares e multiprofissionais como oposição à tendência hospitalocêntrica. Ao fim do mesmo ano, foi realizado o II Congresso Nacional do MTSM – Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental, no qual houve a concretização do Movimento da Luta Antimanicomial e que foi construído o lema, ‘por uma sociedade sem manicômios’, ampliando-se o sentido político conceitual do movimento.
Na trajetória da luta antimanicomial, foi construído o Projeto de Lei 3.657/89, conhecido como Lei Paulo Delgado, que abarcava três pontos importantes: deter a oferta de leitos manicomiais financiados com o dinheiro público, redirecionar os investimentos para outros dispositivos assistenciais não manicomiais e tornar obrigatória a comunicação oficial de internações feitas contra a vontade do paciente.
Em 1990, a Conferência Regional para a reestruturação da assistência psiquiátrica promovida pelas Organizações Panamericanas e Mundial de Saúde, sinalizaram a necessidade de reestruturação imediata da assistência psiquiátrica pela lei adequada dos países, de forma que impôs responsabilidades aos governantes para que assegurassem os direitos humanos e civis dos pacientes com transtornos mentais, além de que deveriam promover a reorganização dos serviços para garantir o seu cumprimento. Ademais, o ano de 1990 ficou marcado como ponto de partida inicial para a demarcação crescente tendencial e internacional de superação dos velhos modelos de psiquiatria como a reforma psiquiátrica. A partir deste período a política do Ministério da Saúde para a saúde mental começa a ganhar contornos mais definidos (Brasil, 2005).
Apesar dos grandes avanços, somente em 2001 que a Lei Paulo Delgado, Lei 10.2016 foi sancionada no Brasil, sua aprovação, no entanto, é de um substitutivo do Projeto de Lei original, que traz modificações importantes no texto normativo (Moura, 2011). A Lei Federal 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária.
É pertinente destacar que essa luta é fruto de enfrentamentos e percalços há mais de séculos, no qual ocorre a marginalização do sujeito diagnosticado com transtorno mental, taxando-lhe de louco e o remetendo à internação. A realidade brasileira exprime um quadro frágil quando se trata da doença mental, sendo que o primeiro hospício surgiu no Rio de Janeiro, em 1841, e nessa época, o paciente deveria ser retirado da sociedade e de sua família. Mas atualmente, o descaso com ambientes hospitalares ainda é tão espantoso como em 1841, cabendo aos profissionais da saúde o trabalho de lidar com um sistema de internação involuntária, cujo o reflexo da luta pelo fim dos manicômios demonstra uma carência estrutural no acolhimento e no atendimento dos pacientes.
Compreende-se que as ações da Luta Antimanicomial visam dar visibilidade no que ocorre dentro dos manicômios judiciários e discutir as práticas punitivas, segregatórias, excludentes e o cuidado com as pessoas, que hoje ainda estão nestas instituições, recebendo os mais diversos tipos de tratamentos e estando em condições extremamente precárias, contrárias ao modelo assistencial do Estado brasileiro.
Ainda que haja avanços significativos desde a promulgação da Lei da Saúde Mental, de acordo com o Ministério da Saúde (2019), apenas recentemente, o Sistema Único de Saúde, propôs implantar uma Rede de serviços aos usuários que abranja uma pluralidade de indivíduos, com doenças de diferentes graus de complexidade e que possa ser promovida a assistência integrada para diferentes demandas.
Atualmente, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), oferecem assistência às pessoas com transtornos mentais no SUS, porém, não podem, nem se quisessem, garantir uma rede de assistência segura, eficaz e humanizada aos doentes mentais, principalmente aqueles que são internados de forma compulsória, que quando dão entrada nos hospitais psiquiátricos já são tratados com preconceito pelas equipes de saúde.
Segundo Siqueira (2019), o orçamento para a saúde mental no ano de 2018 não foi distribuído de forma satisfatória no Brasil, sendo destinados dois terços do orçamento às redes privadas, que é formada pelos hospitais psiquiátricos, manicômios e comunidades terapêuticas, todavia, isso faz com que seja reforçado o modelo de saúde privada, que para Amarante (2019), corrobora com a ideia de colocar esses hospitais psiquiátricos novamente no centro da rede de tratamentos, reforçando um modelo que explora a internação e no qual as pessoas perdem o direito à cidadania e, muitas vezes, a vida”.
Ademais, no que se refere a Lei da Saúde Mental, são encontradas algumas divergências dos princípios da Luta Antimanicomial, especialmente quando se trata de cidadania, visto que durante a internação compulsória, pode ser observado que é tirado do paciente o seu direito à liberdade e, consequentemente, vedado o papel de cidadão deste, de modo que ele deixa de ser visto e considerado um cidadão, o que vai em total contradição com o que preconiza o art. 5° da Constituição Federal de 1988.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (ART. 5° - Constituição Federal de 1988)
Baseando-se nesse conceito, a luta pela cidadania do paciente na saúde mental é uma das causas da luta antimanicomial, principalmente para que possa ocorrer a desinstitucionalização psiquiátrica às pessoas com transtornos mentais, pois se faz necessário modificar o cenário da internação compulsória no país, visto que desde momentos antigos da história o aprisionamento do doente mental o impediu de participar ativamente da vida em sociedade, fazendo com que seja retirado deste a cidadania formal e atribuindo-lhe um certo grau de periculosidade.
A partir da luta da cidadania adentra-se na questão da política nacional de direitos humanos, pois pode ser observado que ela se contradiz com o que estabelece na internação compulsória, uma vez que a declaração de direitos humanos para a saúde mental dita regras e princípios para as violações do cuidado com o portador de transtorno mental, colocando o paciente de forma livre para decidir sobre querer ou não o tratamento, tendo também o direito se ser tratado com dignidade como ser humano. Este paciente com transtorno mental, muitas vezes não tem acesso a informações e principalmente aos seus direitos como cidadão, o que torna ainda mais graves as dificuldades enfrentadas por eles em ambientes psiquiátricos. Tal situação configura-se como um obstáculo para o exercício integral desses direitos, pois o desconhecimento faz com que não sejam legitimados e por vezes excluídos, ficando a margem da sociedade.
Por fim, é imperioso destacar como a Luta Antimanicomial é importante para garantir a observância dos direitos fundamentais dos doentes mentais, no âmbito jurídico principalmente, pois apesar de grandes avanços dos SUS, a saúde mental e as políticas sociais no Brasil enfrentam grandes retrocessos.
4.POLÍTICA ANTIMANICOMIAL DO PODER JUDICIÁRIO: Resolução nº 487 do CNJ
No dia 27 de fevereiro de 2023 foi publicada a Resolução nº 487, do Conselho Nacional de Justiça[1], instituindo a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelecendo procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança.
A Resolução do CNJ visa, sobretudo, efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF/88), e os direitos fundamentais à saúde, devido processo legal e à individualização da pena.
Além disso, o implemento de uma política antimanicomial se faz necessária para cumprir parte da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Ximenes Lopes vs. Brasil[2], onde se determinou que o Estado brasileiro desenvolvesse um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental.
A Resolução do CNJ estabelece procedimentos para o tratamento de pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial que estejam custodiadas, sejam investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade, em cumprimento de pena ou de medida de segurança, em prisão domiciliar, em cumprimento de alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto, objetivando conferir diretrizes para assegurar os direitos dessa população vulnerável (art. 1º).
Importante diretriz da política antimanicomial adotada pela Resolução nº 487 do CNJ diz respeito às audiências de custódia.
De acordo com o art. 5º da referida Resolução, quando apresentada em audiência de custódia pessoa com indícios de transtorno mental ou qualquer outra forma de deficiência psicossocial, a autoridade judicial deverá encaminhá-la para atendimento voluntário na Rede de Atenção Psicossocial, assegurando-se à pessoa a oportunidade de manifestar a vontade de ter em sua companhia alguém por ela indicada.
Art. 4º Quando apresentada em audiência de custódia pessoa com indícios de transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial identificados por equipe multidisciplinar qualificada, ouvidos o Ministério Público e a defesa, caberá à autoridade judicial o encaminhamento para atendimento voluntário na Raps voltado à proteção social em políticas e programas adequados, a partir de fluxos preestabelecidos com a rede, nos termos da Resolução CNJ n. 213/2015 e do Modelo Orientador CNJ.
Parágrafo único. Será assegurada à pessoa com indícios de transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial a oportunidade de manifestar a vontade de ter em sua companhia pessoa por ela indicada, integrante de seu círculo pessoal ou das redes de serviços públicos com as quais tenha vínculo, ou seja, referenciada, para o fim de assisti-la durante o ato judicial.
A Resolução também adota como política antimanicomial o encaminhamento da pessoa em crise de saúde mental à equipe de saúde da Raps para a tomada de medidas emergenciais e, caso exauridas sem êxito as tentativas de manejo da crise, caberá a autoridade judicial encaminhá-la para atendimento em saúde por meio do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou outros serviços da Raps, deixando de realizar a audiência de custódia e providenciando o registro da não realização do ato, por meio de termo do qual deverá constar:
I - a determinação para elaboração de relatório médico acompanhado, se for o caso, de informes dos demais profissionais de saúde do estabelecimento ao qual a pessoa presa em flagrante for encaminhada, a fim de documentar eventuais indícios de tortura ou maus tratos, a ser remetido ao juízo em 24 (vinte e quatro) horas;
II- a requisição imediata de informações às secretarias municipal ou estadual de saúde sobre a atual condição da pessoa e indicação de acompanhamento em saúde mais adequado, que poderá compor o PTS, com descrição de eventual tratamento que esteja em curso, a serem prestadas em 48 (quarenta e oito) horas, com a finalidade de subsidiar a tomada de decisão judicial.
Em caso de internação, a autoridade judicial poderá realizar a audiência no local em que a pessoa se encontrar, caso não receba alta médica, contudo, nos casos em que o deslocamento se mostrar inviável, a audiência de custódia somente será realizada após restabelecida a condição de saúde.
Nas situações em que não seja hipótese de relaxamento de prisão, a autoridade judicial deverá adequar a medida cautelar considerando as condições de saúde da pessoa, evitando a imposição de medida que dificulte o acesso ou a continuidade do melhor tratamento disponível.
Quando a pessoa necessitar de tratamento em saúde mental no curso de prisão processual ou outra medida cautelar, a autoridade judicial deverá reavaliar a necessidade e a adequação da prisão e outras medidas, ouvidos a equipe multidisciplinar, o Ministério Público e a defesa, atendendo-se ao disposto no art. 9º, parágrafo único, da Resolução do CNJ:
Parágrafo único. O encaminhamento para os serviços da Raps ou rede de proteção social será apoiado pelas equipes mencionadas no art. 2º, III, IV e V, considerando a interlocução entre esses serviços e os equipamentos responsáveis pelo tratamento em saúde, de modo que eventuais subsídios sobre a singularidade do acompanhamento da pessoa sejam aportados ao processo visando a priorização da saúde.
E outra política antimanicomial importante e que merece destaque adotada pela Resolução 487 do CNJ se refere às medidas de segurança, pois determina que a autoridade judicial leve em conta nas decisões que envolvam a imposição ou alteração do cumprimento de medida de segurança os pareceres das equipes multiprofissionais que atende o paciente na Raps, da Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP) ou outra equipe conectora (equipe vinculada ao Sistema Único de Saúde que exerce a função análoga à da EAP).
Ademais, a Resolução destaca que a medida de tratamento ambulatorial será priorizada em detrimento da medida de internação, cuja medida será acompanhada pela autoridade judicial a partir de fluxos estabelecidos entre o Poder Judiciário e a Raps, devendo avaliar a possibilidade de extinção da medida de segurança, no mínimo, anualmente, ou a qualquer tempo quando requerido pela defesa ou indicada pela equipe de saúde.
Quanto às medidas de segurança de internação ou de internação provisória, a Resolução aduz que ocorrerá em hipóteses absolutamente excepcionais, quando não cabíveis ou suficientes outras medidas cautelares diversas da prisão e quando compreendidas como recurso terapêutico momentaneamente adequado no âmbito do PTS (Projeto Terapêutico Singular), enquanto necessárias ao restabelecimento da saúde da pessoa, desde que prescritas por equipe de saúde da Raps (art. 13).
A política antimanicomial para os casos de medida de segurança de internação é no sentido de evitar que qualquer pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares, determinando que a internação seja cumprida em leito de saúde mental em Hospital Geral ou outro equipamento de saúde referenciado pelo Caps da Raps, com condições de proporcionar assistência integral à saúde da pessoa.
Em relação às pessoas que necessitam de tratamento em saúde mental no curso da execução da pena, a Resolução do CNJ impõe a desinstitucionalização, prevendo que, no prazo de até 6 (seis) meses, a partir da entrada em vigor da Resolução, a autoridade judicial competente revisará os processos a fim de avaliar a possibilidade de extinção da medida em curso, progressão para tratamento ambulatorial em meio aberto ou transferência para estabelecimento de saúde adequado, nos casos relativos:
I- à execução de medida de segurança que estejam sendo cumpridas em HCTPs, em instituições congêneres ou unidades prisionais;
II- a pessoas que permaneçam nesses estabelecimentos, apesar da extinção da medida ou da existência de ordem de desinternação condicional; e
III- a pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial que estejam em prisão processual ou cumprimento de pena em unidades prisionais, delegacias de polícia ou estabelecimentos congêneres.
De acordo com a Resolução, a autoridade judicial competente para a execução penal determinará a elaboração, no prazo de 12 (doze) meses contados da entrada em vigor desta Resolução, de Projetos Terapêuticos Singulares para todos os pacientes em medida de segurança que ainda estiverem internados em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, em instituições congêneres ou unidades prisionais, com vistas à alta planejada e à reabilitação psicossocial assistida em meio aberto, a serem apresentadas no processo ou em audiência judicial que conte com a participação de representantes das entidades envolvidas nos PTSs.
E, por fim, consta da Resolução do CNJ uma previsão extremamente importante para a luta antimanicomial, que é a determinação de interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, no prazo de 6 (seis) meses contados da publicação desta Resolução, com proibição de novas internações em suas dependências e, em até 12 (doze) meses a partir da entrada em vigor desta Resolução, a interdição total e o fechamento dessas instituições.
Diante de todas as recentes determinações da Resolução 487 do CNJ, acredita-se em uma luz no fim do túnel, de modo que os direitos fundamentais das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial sejam observados, e, notadamente, fazendo com que os fundamentos, os objetivos e os princípios da República Federativa do Brasil sejam respeitados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como objetivo analisar a internação compulsória no ordenamento jurídico brasileiro, e como a luta antimanicomial é uma ferramenta essencial para a garantia dos direitos das pessoas acometidas de transtornos mentais e redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental.
A proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais é uma missão fundamental para construirmos uma sociedade justa e inclusiva. A Resolução 487/2023, emitida pelo Conselho Nacional de Justiça, representa um marco significativo nesse compromisso. Ela direciona nosso modelo assistencial em saúde mental para um caminho mais humano, respeitando a dignidade e os direitos individuais.
Ao estabelecer diretrizes claras para a revisão de processos de internação psiquiátrica e ao incentivar alternativas comunitárias, essa resolução reconhece a importância de tratar as pessoas com transtornos mentais com compaixão e respeito. Ela nos lembra que cada indivíduo merece cuidados que promovam sua inclusão social e seu bem-estar.
Nossa responsabilidade como sociedade é garantir que a Resolução 487/2023 do CNJ seja implementada de maneira eficaz. Devemos continuar a trabalhar juntos para assegurar que os direitos das pessoas com transtornos mentais sejam protegidos, que tenham acesso a tratamento de qualidade e que possam viver vidas plenas e autônomas. Este é o caminho para um futuro em que a saúde mental seja tratada com empatia e compreensão, onde a estigmatização seja substituída pela inclusão e onde todos possam desfrutar de igualdade de direitos, independentemente de seu estado de saúde mental.
REFERÊNCIAS
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Bacharel em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados. Pós-graduada em Direitos Humanos pela Faculdade CERS. Assessora jurídica na Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Cinthia de Oliveira. Reflexos da luta antimanicomial na internação compulsória Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2023, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63091/reflexos-da-luta-antimanicomial-na-internao-compulsria. Acesso em: 23 dez 2024.
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