RESUMO: O presente trabalho tem como escopo analisar, com base na legislação, doutrina e jurisprudência brasileira, a evolução do direito empresarial brasileiro, especialmente discorrendo sobre a teoria geral da empresa, bem como das vicissitudes que permeiam a configuração do explorador de atividade rural como empresário, realizando um estudo acerca da possibilidade de o empresário rural requerer recuperação judicial e seus requisitos.
ABSTRACT: The present work aims to analyze, based on Brazilian legislation, doctrine, and jurisprudence, the evolution of Brazilian business law, with a particular focus on the general theory of the company, as well as the challenges surrounding the classification of rural activity operators as entrepreneurs. It also conducts a study regarding the possibility of rural entrepreneurs filing for judicial recovery and its requirements.
PALAVRAS-CHAVE: Direito empresarial. Evolução histórica. Empresa e empresário. Empresário rural. Recuperação judicial. Requisito temporal. Inscrição na Junta Comercial. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
1 Introdução
Pode-se afirmar, com razoável segurança, que a doutrina é convergente no sentido de que o direito comercial surgiu na idade média, muito embora já houvesse diversas normas de cariz comercial antes mesmo dessa época. Ocorre que, como não existia uma mínima organização sistemática e principiológica, não se pode considerar que essa miscelânea de normas esparsas configurava um ramo autônomo do direito. No ponto, a lição de Marcelo Iacomini:
A literatura jurídica propaga que o direito comercial, como conjunto de normas organizadas, somente tomou feição na Idade Média. Conquanto isso seja verdade, pode-se afirmar que havia resquícios de regras mercantis no direito romano e, segundo alguns autores, até no Código de Hamurabi. No entanto, é sabido de todos que naquele momento histórico não se podia ainda falar em um ramo específico do direito privado, conhecido posteriormente como direito comercial, pois, segundo se depreende, não havia uma ordenação sistemática e principiológica dessas normas. Tratavam-se, na verdade, de normas esparsas regulando situações fáticas aleatórias. Foi somente na Idade Média, por volta do século XII ao XVI, que o direito comercial surgiu como um conjunto de normas ordenadas e específicas.[1]
Acerca da origem do direito empresarial, a literatura subdivide esse histórico em três fases. A primeira delas eram as Corporações de Ofício (feudalismo), nas quais quem fazia parte delas era regrado por normas especiais. Sobre essa remota fase, assim lecionou André Luiz Santa Cruz Ramos:
Durante a Idade Média, todavia, o comércio já atingira um estágio mais avançado e não era mais uma característica de apenas alguns povos, mas de todos eles. É justamente nesta época que se costuma apontar o surgimento das raízes do direito comercial. Fala-se, então, na primeira fase deste ramo do Direito. É a época do renascimento das cidades (‘burgos’) e do comércio, sobretudo o marítimo. Surgem as Corporações de Ofício, que logo assumiram relevante papel na sociedade da época, conseguindo obter, inclusive, certa autonomia em relação à nobreza feudal.[2]
Essa fase também é chamada fase subjetiva, pois para caracterização como comerciante bastava ter inscrição numa corporação de ofício. Assim, para a incidência ou não das normas específicas de direito comercial, mais interessava o sujeito que exercia a mercancia do que a atividade em si.
A segunda fase tem como principal marco histórico a revolução francesa, notadamente com a influência dos ideais de fraternidade, liberdade e igualdade, motivo pelo qual a doutrina a denomina também de fase francesa.
O início da segunda fase é marcado pelo código comercial francês, de 1807 e, no Brasil, pelo código comercial de 1850. O critério utilizado nessa fase era o da prática de atos considerados comerciais, e não mais o critério meramente subjetivo. Em razão disso, a segunda fase também é denominada fase objetiva. Novamente, a doutrina de Marcelo Iacomini esclarece:
Era considerado comerciante quem com habitualidade e, com o intuito de lucro, praticasse atos do comércio. O critério utilizado, na fase objetiva, não é o da inscrição, como na fase anterior, mas sim, a prática de atos considerados comercias. Portanto, desloca-se o elemento caracterizador da inscrição para a prática dos atos. Logo, quem praticasse certos atos de maneira habitual e visando obter vantagem econômica (lucro) era considerado comerciante, independentemente de estar inscrito na junta comercial.[3]
Essa segunda fase é representada pela chamada Teoria dos atos de comércio, atos estes que eram elencados de forma taxativa, e quem praticasse algum deles poderia ser considerado comerciante e, consequentemente, utilizar o regramento específico do direito comercial na regência de suas atividades.
Essa fase perdeu força à medida em que os atos de comércio foram sendo desenvolvidos, especialmente porque não eram considerados como atos de comércio a prestação de serviços e a venda de bens imóveis, o que demandou uma evolução da mencionada teoria a fim de incluir essas modalidades de atividade, culminando no surgimento da terceira fase do direito comercial.
A terceira fase é inaugurada pelo código civil italiano (1942), o qual deixa de adotar a teoria dos atos do comércio e passa a adotar a Teoria da Empresa. No Brasil, essa fase tem como marco o Código Civil de 2002 (CC/02), o qual adota, até os dias de hoje, a teoria da empresa.
O detalhe é que o Brasil adotou a teoria italiana, mas não adotou a unificação do direito italiano na medida em que aqui não houve a unificação do direito privado. Basta atentar-se que o código civil de 2002 não trata da insolvência empresarial (pois ela é regulamentada pela Lei 11.101/2005).
O Código Civil de 2002 só unificou a matéria de obrigações, e não todo o direito privado, além de não ter revogado por completo o código comercial de 1850, uma vez que o art. 2.045 do CC/02 só revogou expressamente a Parte Primeira daquele código[4].
E qual é o conceito de empresa? O Código Civil de 2002 não conceitua diretamente, mas apenas indiretamente, no seu art. 966, que elenca que se considera empresário (e não empresa) quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Assim, depreende-se que empresa é a atividade econômica complexa, estruturada e organizada. Empresa não se confunde com empresário, nem com estabelecimento empresarial: empresa é a atividade exercida pelo empresário (ou pela sociedade empresária).
Aqui, iniciamos uma breve reflexão acerca do cerne deste estudo: a pessoa que exerça exploração de atividade rural, habitualmente e de forma organizada, com intuito lucrativo, será empresário? Vejamos.
2 A atividade rural como exercício de empresa
Essa análise seria despicienda se não fosse pelo disposto no art. 971 do Código Civil de 2002[5], dispositivo que faculta ao empresário cuja atividade rural constitua sua principal profissão, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.
A partir do texto legal, pode-se inferir que aquele que exerça a atividade rural como sua principal profissão poderá ser equiparado a empresário caso requeira inscrição no registro público de empresas mercantis. Aqui temos a primeira diferença entre o exercente de atividade rural e o empresário “ordinário”: este tem o dever de proceder à inscrição na Junta Comercial para exercer a atividade de forma regular; já o ruralista pode proceder à mencionada inscrição, caso assim deseje.
Importante mencionar uma consequência da não inscrição do empresário na Junta Comercial: não restará descaracterizada a condição de empresário, mas tão somente de empresário regular. É dizer, caso não proceda à devida inscrição, o sujeito não deixará de ser empresário, mas não exercerá a empresa (repise-se, empresa é atividade) de forma regular.
Levando-se em consideração o regramento da Lei de Recuperação e Falências, Lei nº 11.101/2005, eis a principal consequência advinda da omissão do registro: a impossibilidade de pleitear recuperação judicial.
A recuperação judicial é um instrumento jurídico que surgiu para substituir a antiga “concordata” e tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise do devedor, a fim de permitir que a atividade empresária se mantenha e, com isso, sejam preservados os empregos dos trabalhadores e os interesses dos credores, sem a extinção da pessoa exercente da atividade. Nas palavras do Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, relator do Recurso Especial nº 1.905.573, julgado em junho de 2022:
A recuperação judicial é instrumento jurisdicional de superação da crise econômico-financeira da atividade empresarial. Revela-se como artefato viabilizador do desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental, na medida em que promove a continuidade da atividade econômica da empresa com potencial de realização.[6]
A recuperação judicial consiste, portanto, em um processo judicial, no qual será construído e executado um plano com o objetivo de recuperar a empresa que está em vias de efetivamente ir à falência.
O caput do art. 48 da Lei nº 11.105/2005 aduz que poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos (além de atender cumulativamente aos requisitos dos incisos I a IV). Contrario sensu, aquele que exerce irregularmente a atividade (como é o caso do empresário que não procedeu ao registro na Junta Comercial) não estará apto a requerer recuperação judicial.
O prazo de 2 anos, previsto no caput do art. 48 supracitado, tem como objetivo principal conceder a recuperação judicial apenas a empresários ou a sociedades empresárias que se acham, de certo modo, consolidados no mercado e que apresentem certo grau de viabilidade econômico-financeira capazes de justificar o sacrifício dos credores.
Segundo Marlon Tomazzete[7], apenas em relação a empresas sérias, relevantes e viáveis “é que se justifica o sacrifício dos credores em uma recuperação judicial. Uma empresa exercida há menos de dois anos ainda não possui relevância para a economia que justifique a recuperação. ”.
Conforme aduzido anteriormente, a inscrição na Junta Comercial é uma formalidade indispensável para a regularidade do empresário, à exceção daquele que exerça atividade rural, para quem a inscrição é meramente facultativa. Assim, surge o questionamento: o empresário rural pode pleitear a recuperação judicial, mesmo sem inscrição na junta comercial, haja visto se tratar de mera faculdade?
Ora, se a inscrição do ruralista na respectiva Junta Comercial é mera faculdade deste, não se pode dizer que ele exerça atividade de forma irregular caso não proceda ao registro. Assim, o empresário rural não pode ser prejudicado pela disposição do art. 48 da Lei de Recuperação e Falências ante a não inscrição na Junta, ou seja, não lhe pode ser excluída a possibilidade de requerer recuperação judicial tão somente pelo fato de não ter inscrição como empresário há mais de dois anos.
Assim, os efeitos decorrentes da inscrição na Junta Comercial são distintos para as duas espécies de empresário. Para o empreendedor rural, o registro, por ser facultativo, tem o efeito constitutivo de equipará-lo, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro, sendo tal efeito apto a retroagir (ex tunc), pois a condição regular de empresário já existia antes mesmo do registro.
Já para o empresário comum, o registro, que é obrigatório, somente pode operar efeitos futuros (ex nunc), pois apenas com o registro é que ingressa na regularidade e se constitui efetiva e validamente, empresário.
Isso não significa, todavia, que o empresário rural não precise cumprir o requisito temporal de exercício da atividade antes de pleitear a recuperação. O que ocorre é que, em se tratando de empresário rural, a contagem do lapso temporal de dois anos se dará de forma diferente em relação ao empresário não rural.
Diante dessa celeuma, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a decidir se o empresário rural deveria, para pleitear recuperação judicial, estar registrado há mais de dois anos. O caso foi julgado em sede de Recurso Especial Repetitivo (Tema 1145), e a tese formulada pelo STJ foi a seguinte: "Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro". Vejamos a ementa do julgado:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. PRODUTOR RURAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXERCÍCIO PROFISSIONAL DA ATIVIDADE RURAL HÁ PELO MENOS DOIS ANOS. INSCRIÇÃO DO PRODUTOR RURAL NA JUNTA COMERCIAL NO MOMENTO DO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL (LEI N. 11.101/2005, ART. 48). RECURSO ESPECIAL PROVIDO.1. Tese firmada para efeito do art. 1.036 do CPC/2015: Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro.2. No caso concreto, recurso especial provido.(REsp n. 1.905.573/MT, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 22/6/2022, DJe de 3/8/2022.)[8]
Em suma, a questão controvertida posta à análise do Superior Tribunal de Justiça consistia em definir a (im)possibilidade de deferimento do pedido de recuperação judicial de produtor rural que comprovadamente exerça atividade rural há mais de dois anos, mas que estivesse registrado na Junta Comercial há menos tempo.
Prudente ressaltar, para que fique claro, que é condição para o requerimento da recuperação judicial pelo produtor rural a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, observadas as formalidades do art. 968 do CC/02; bem como que o produtor rural que exerce atividade empresária é sujeito de direito da recuperação judicial regulada pela Lei n. 11.101/2005.
No inteiro teor do acórdão exarado pela segunda seção do STJ no Recurso Especial julgado sob o rito dos recursos repetitivos, cuja ementa foi transcrita acima, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão assim discorreu:
Com efeito, é bem de ver que a recuperação judicial é instrumento jurisdicional de superação da crise econômico-financeira da atividade empresarial. Revela-se como artefato viabilizador do desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental, na medida em que promove a continuidade da atividade econômica da empresa com potencial de realização.
Não há dúvidas de que o valor a ser protegido pelo instituto é o da ordem econômica, não sendo raros os casos em que o interesse do empresário, individualmente considerado, é sacrificado em deferência à salvaguarda da empresa, enquanto unidade econômica de utilidade social.
(...)
Com efeito, a empresa em crise não favorece a livre iniciativa nem a concorrência; não tem giro de capital, portanto não acumula riquezas; não devolve investimentos sociais; não produz balanço social; não investe na recuperação do meio ambiente; não promove educação; não propaga ética; não reflete o standard comportamental necessário (Simão Filho, A.; Pellin, D. Nova empresarialidade aplicada à recuperação judicial de empresas. Revista Paradigma, n. 18, 2011. Disponível em: http://revistas.unaerp.br/paradigma/article/view/41).
Em linha com esse entendimento, o instituto da recuperação, em substituição à concordata, expande o conceito da empresa por um cenário exógeno, a partir de um novo paradigma: uma nova teoria da preservação da unidade produtiva, em razão da função social metaindividual, em que a eficiência econômica deixa de ser a primordial preocupação (PERIN JUNIOR, Ecio. Curso de direito falimentar e recuperação de empresas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 357)
Extrai-se da conclusão da Segunda Seção do STJ que a recuperação judicial é instrumento importantíssimo para o desenvolvimento econômico do país. É nítido que a utilização desse instrumento jurídico não se limita a privilegiar a pessoa diretamente interessada (empresário ou sociedade empresária), ao revés, privilegia o próprio desenvolvimento econômico do país, principalmente por facilitar a manutenção dos empregos gerados pela atividade empresarial, além da circulação e produção de renda advindas da atividade.
A recuperação judicial visa, grosso modo, a garantir a chamada função social da empresa, pois facilita e estimula a manutenção da atividade da empresa em crise econômico-financeira.
Não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 trata da Ordem Econômica de forma destacada, em seu Título VII, e elenca, no art. 170, caput[9], que esta é fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tendo como finalidade assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social.
O inciso III do caput do art. 170 da Constituição Federal elenca a função social da propriedade como um dos princípios da ordem econômica de nosso ordenamento jurídico. Pode-se afirmar, portanto, que a função social da empresa advém da própria função social da propriedade, denotando que a empresa não é um fim em si mesma, e sua manutenção ativa não é um mero interesse privado dos seus mantenedores, mas extrapola a esfera individual da pessoa ao gerar empregos e renda. Tais fundamentos dão maior robustez à importância da recuperação judicial, que visa a garantir o funcionamento da empresa em crise financeiro-econômica.
A conclusão a que chegou o STJ, pela possibilidade de o empresário rural requerer a recuperação judicial mesmo que seu registro não seja mais antigo que o prazo de dois anos elencado no mencionado art. 48 da Lei de Recuperações e Falências, estimula a utilização e a abrangência do instrumento jurídico aqui discutido, dada a importância que a atividade empresarial (em especial, a rural) representa para o desenvolvimento econômico do Brasil.
Forçoso ressaltar que a conclusão a que chegou o STJ é convergente com a doutrina pátria, consolidada nos enunciados nº 96 e 97 da III Jornada de Direito Comercial, senão vejamos:
Enunciado 96 – A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis. (grifos nossos)
Justificativa: O art. 48, caput, da Lei n. 11.101/2005, não exige, como requisito para a impetração da Recuperação Judicial, a inscrição na Junta Comercial pelo prazo de dois anos, mas apenas que o devedor, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de dois anos. Por sua vez, o inc. V do art. 51 da mesma lei exige a comprovação de regularidade na Junta Comercial, mas não se refere a qualquer prazo. O art. 971 do Código Civil preceitua como facultativo, ao empresário rural, o registro na Junta Comercial, após o qual ficará equiparado ao empresário sujeito ao registro. Portanto, a atividade do empresário rural pode se configurar regular mesmo sem o registro na Junta Comercial. Nesse sentido, o empresário rural não necessita estar registrado na Junta Comercial há mais de dois anos para impetrar recuperação judicial.[10]
Enunciado 97 – O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido. (grifos nossos)
Justificativa: Fábio Ulhoa Coelho, em parecer sobre o tema, afirma que “considerar que a lei exige do produtor rural que explore a sua atividade e também esteja registrado na Junta Comercial há pelo menos dois anos é relegar à letra morta o § 2º do art. 48 da LRE” (COELHO, Fábio Ulhoa. Parecer proferido nos autos do processo 3067-12.2015.811.0051-97136, Comarca de Campo Verde, Estado do Mato Grosso. 13 de outubro de 2015. Fls. 776). Destaca-se, ainda, que o TJSP manifestou-se pela admissão de qualquer documento para fins comprobatórios do efetivo e regular exercício da atividade pelo biênio legal (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Agravo de Instrumento 2006737-58.2018.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 9/5/2018; Data de Registro: 11/5/2018). Assim, a prova do requisito temporal de dois anos não exige do produtor rural (seja pessoa física ou jurídica) que este esteja inscrito na Junta Comercial por prazo superior a um biênio, mas, tão somente, que o esteja na data do ajuizamento do pedido de Recuperação Judicial.[11]
Assim concluiu o Min. Relator, dando por encerrada a discussão e determinando que o empresário rural pode requerer a recuperação judicial mesmo que não inscrito há mais de dois anos, desde que exerça a atividade empresarial rural há mais de dois anos e que, no momento do pedido, esteja devidamente registrado:
Assim, quanto ao produtor rural, a condição de procedibilidade da recuperação judicial estará satisfeita sempre que realizado o registro na forma da lei e comprovada a exploração da atividade rural de forma empresarial por mais de dois anos. No que respeita à "exploração da atividade rural de forma empresarial por mais de dois anos", entendem ambas as Turmas da Segunda Seção deste Superior Tribunal que, apesar da necessidade do registro antes do pedido de recuperação, não há, por parte da legislação, exigência de que o ato registral ocorra há dois anos da formalização do pedido. É que, como visto, o registro permite apenas que nas atividades do produtor rural incidam as normas previstas pelo direito empresarial. Todavia, desde antes do registro, e mesmo sem ele, o produtor rural que exerce atividade profissional organizada para a produção de bens e serviços já é empresário.
Nessa linha, reitere-se que não há na Lei exigência temporal em relação ao registro do empresário. O art. 48 apenas exige, como condição do pedido de recuperação, que o empresário exerça sua atividade de forma regular por pelo menos dois anos.
Aliás, conforme elucida Fábio Ulhoa Coelho, um período mínimo de exploração de atividade econômica por parte do requerente da recuperação judicial precisou ser estipulado, porque o legislador considerou não consolidada a importância da empresa que atua há menos de dois anos para economia local, regional ou nacional (COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 169).
O argumento é coerente. A consolidação de uma empresa não ocorre do dia para a noite. A conquista da clientela, a fixação do ponto comercial e o desenvolvimento de técnica particular são fatores construídos com o tempo de atuação da empresa. O que a lei pretende, em verdade, é assegurar a utilização do instituto a empresas já consolidadas. A contrario sensu, uma vez comprovado, por quaisquer meios, o exercício consolidado da atividade pelo período determinado pela lei, atestada estará a relevância da empresa rural, qualificando-a, assim, ao deferimento do processamento da recuperação.
Destarte, o registro empresarial deve, sim, ser realizado antes da impetração da recuperação judicial (critério formal). Contudo, a comprovação da regularidade da atividade empresarial pelo biênio mínimo (art. 48 da Lei n. 11.101/2005) será aferida pela manutenção e continuidade do exercício profissional (critério material).[12]
A decisão do Tribunal da Cidadania não concedeu um privilegio ao empresário rural, mas tão somente deu interpretação coerente com o que já dispõe própria legislação: o art. 971 do CC/02 expressamente determina ser mera faculdade do empresário rural a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, e o art. 48 da Lei de Recuperação Judicial e Falências estipula como requisito formal o exercício regular da atividade há mais de dois anos.
Como não se pode considerar irregular o exercício da atividade pelo empresário rural pelo simples fato de não haver efetivado o registro, o qual é facultativo, outra conclusão não poderia emanar o Poder Judiciário senão a possibilidade de o empresário rural pleitear a recuperação judicial desde que exerça a atividade há mais de dois anos e esteja registrado no momento do pedido, mesmo que o registro não tenha idade superior a dois anos.
3 Conclusão
A análise da relação entre o exercício da atividade rural e o requerimento de recuperação judicial destaca a importância desse instrumento jurídico para o desenvolvimento econômico do país. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de julgamento em sede de Recurso Especial Repetitivo, esclareceu que o empresário rural pode pleitear a recuperação judicial, desde que exerça a atividade há mais de dois anos e esteja registrado no momento do pedido, independentemente do tempo de seu registro na Junta Comercial.
Essa decisão não concede um privilégio ao empresário rural, mas sim alinha-se com a legislação vigente, que prevê a inscrição na Junta Comercial como mera faculdade para esse grupo específico de empresários, diferentemente do empresário não rural, para quem a inscrição é condição sine qua non para a regularidade do exercício.
Além disso, essa conclusão encontra respaldo na doutrina jurídica nacional, conforme expresso nos enunciados nº 96 e 97 da III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal. Portanto, a decisão do STJ privilegia e reforça a importância da função social da empresa para o aprimoramento do ambiente empresarial e econômico do país, especialmente levando-se em consideração o que dispõe o art. 170, III, da Constituição Federal de 1988, ao elencar a função social da propriedade como um dos princípios da Ordem Econômica.
Essa interpretação da legislação dada pelo STJ contribui para o fortalecimento da função social da empresa, que pode ser considerado um princípio fundamental da atividade empresarial, haja visto que a manutenção do funcionamento da atividade empresarial produz benefícios sociais que ultrapassam a esfera privada de seus mantenedores. Por isso, a utilização eficaz da recuperação judicial é de suma importância, em especial para a manutenção dos empregos gerados pela atividade empresarial, bem como para o crescimento econômico do Brasil.
Referências
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.905.573, da Segunda Seção, Brasília, DF, 22 de junho de 2022. Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%27202003017730%27.REG. Acesso em 25 de setembro de 2023.
FEDERAL, Conselho da Justiça. Enunciado nº 97 da III Jornada de Direito Comercial. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2019/06-junho/iii-jornada-de-direito-comercial-e-encerrada-no-cjf-com-aprovacao-de-enunciados/copy_of_EnunciadosaprovadosIIIJDCREVISADOS004.pdf . Acesso em 25 de setembro de 2023.
IACOMINI, Marcelo Pietro. Anotações de Direito Empresarial, 1ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito comercial ou direito empresarial? – Notas sobre a evolução histórica do ius mercatorum. Revista Júris Síntese, n. 456, p. 10, 2006.
TOMAZZETE, Marlon. Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2011, p. 60
[1] IACOMINI, Marcelo Pietro. Anotações de Direito Empresarial, 1ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
[2] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito comercial ou direito empresarial? – Notas sobre a evolução histórica do ius mercatorum. Revista Júris Síntese, n. 456, p. 10, 2006.
[3] Op. Cit.
[4] Art. 2.045. Revogam-se a Lei n o 3.071, de 1 o de janeiro de 1916 - Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei n o 556, de 25 de junho de 1850.
[5] Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.905.573, da Segunda Seção, Brasília, DF, 22 de junho de 2022. Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%27202003017730%27.REG.&_gl=1*y1xjtj*_ga*NTc1NTI0MTkxLjE2ODM2NDg1ODA.*_ga_F31N0L6Z6D*MTY5NTY2NDM5NC4yMC4xLjE2OTU2NjQ3MTIuNTEuMC4w. Acesso em 25 de setembro de 2023.
[7] TOMAZZETE, Marlon. Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2011, p. 60
[8] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.905.573, da Segunda Seção, Brasília, DF, 22 de junho de 2022. Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%27202003017730%27.REG. Acesso em 25 de setembro de 2023.
[9] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
[10] FEDERAL, Conselho da Justiça. Enunciado nº 96 da III Jornada de Direito Comercial. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2019/06-junho/iii-jornada-de-direito-comercial-e-encerrada-no-cjf-com-aprovacao-de-enunciados/copy_of_EnunciadosaprovadosIIIJDCREVISADOS004.pdf . Acesso em 25 de setembro de 2023.
[11] FEDERAL, Conselho da Justiça. Enunciado nº 97 da III Jornada de Direito Comercial. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2019/06-junho/iii-jornada-de-direito-comercial-e-encerrada-no-cjf-com-aprovacao-de-enunciados/copy_of_EnunciadosaprovadosIIIJDCREVISADOS004.pdf . Acesso em 25 de setembro de 2023.
[12] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.905.573, da Segunda Seção, Brasília, DF, 22 de junho de 2022. Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%27202003017730%27.REG. Acesso em 25 de setembro de 2023.
Graduado em Direito pelo Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camilo Filho (2014) Pós Graduado em Direito Processual pela Universidade Federal do Piauí - UFPI (2018) Ex Consultor Técnico Legislativo da Câmara Municipal de Fortaleza - CE Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná - TRE/PR
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREIRE, VICTOR AUGUSTO SOARES. Análise da inscrição na junta comercial como condição para o empresário rural requerer recuperação judicial à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 set 2023, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63251/anlise-da-inscrio-na-junta-comercial-como-condio-para-o-empresrio-rural-requerer-recuperao-judicial-luz-da-jurisprudncia-do-superior-tribunal-de-justia. Acesso em: 23 dez 2024.
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