Resumo: O objetivo do trabalho é apresentar a tragédia de Antígona, sob uma perspectiva histórica. Mostrar como a justiça, interpretada à luz de seu tempo, pode ser influenciada por disputas de poder. Nesta peça teatral, o crime é visto sob óticas distintas e submetido a julgamentos: pela lei dos deuses ou pela lei dos homens, o que determina diferentes sentenças e destinos
Palavras-chave: Antígona; julgamento; poder.
Abstract: The aim of this work is to present the tragedy of Antigone, from a historical perspective. Show how justice, interpreted in the light of its time, can be influenced by power struggles. In this play, the crime is seen from different perspectives and subjected to judgment: by the law of the gods or the law of the men, which determines different sentences and fates.
Keywords: Antigone; judgment; power.
Sófocles[1], no início do século V (430 a.C), escreve a história trágica do personagem Édipo Rei. A lenda do rei de Tebas, cujo nome está para sempre relacionado a crimes, causou pavor e repulsa aos gregos na Antiguidade – parricídio e incesto. Esta obra prima dá origem à trilogia Édipo em Colona e a Antígona.
O destino trágico dos personagens une essas peças teatrais, deixando o legado da desgraça para Édipo e seus quatro filhos: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismênia. Antígona (442 a.C), encena a tragédia da boa filha, que morre por obedecer aos mandamentos divinos, em contraposição à vontade despótica de um tirano. Sófocles, pensa o homem como o centro do mundo, mas, também, crê na predestinação e no poder dos deuses.
A peça Antígona apresenta a ambição de dois irmãos, Etéocles e Polinices, pelo trono de Tebas. Eles se digladiam pelo poder e lutam até a morte um do outro. Com isso, assume o reinado Creonte, irmão de Jocasta, que fora a esposa de Édipo[2]. O primeiro édito de Creonte diz respeito aos funerais de seus sobrinhos, Etéocles e Polinices.
Fica decretado que, o corpo de Etéocles receberá o cerimonial devido aos mortos e aos deuses. Já Polinices, terá destino diferente. Seu corpo será largado a esmo, sem direito a sepultamento, deixado às aves de rapina e aos cães para os dilacerarem.
Creonte entende, que este ato serve de exemplo para todo aquele que pretenda intentar contra o governo de Tebas. Isto porque, Polinices quando ataca a cidade para tirar o governo do irmão, interrompe a política de revezamento do poder, previamente acordada entre as partes. Ao saber do édito, Antígona afirma não permitir que o corpo do irmão permaneça sem os ritos sagrados, mesmo que tenha de pagar com a sua própria vida. Assim, mostra sua insubmissão às leis humanas, por estas irem de encontro às leis divinas: “desonra os mortos e despreza as leis divinas”. (SÓFOCLES, 2002, p.85)
No primeiro episódio, Creonte é informado por um guarda, que o corpo de Polinices recebe uma camada de pó; com isso sua palavra é desrespeitada e sua autoridade colocada à prova. Creonte se enfurece ainda mais, e, então, o coro interroga e questiona a participação divina no destino dos homens. Então, entra o primeiro estásimo2, quando o coro exalta a capacidade do homem.
No segundo episódio, o guarda descobre que a rebeldia provém de Antígona, e a conduz até o rei Creonte. Trava-se, em seguida, um duelo entre ideias e ideais: de um lado a ré – em sua defesa, sustenta o cumprimento às leis dos deuses, às quais são mais antigas e, segundo ela, superiores às terrenas.
Do outro lado, o inquisidor mostra que ela incorre em erro, explica os seus motivos e suas razões, mas cada um continua impávido em suas próprias crenças. Creonte manda chamar, nesse momento, a outra irmã da ré – Ismênia –, que mesmo sem concordar com o ato de Antígona, confessa o crime que não cometera. Mesmo assim, não recebe a admiração da irmã, única e real transgressora, e terminam ambas condenadas à morte.
O segundo estásimo reflete sobre as maldições que se acumulam na dinastia dos Labdácidas. O diálogo travado entre Creonte e seu filho Hemon – futuro marido de Antígona –, já no terceiro episódio explicita a honradez do jovem rapaz e a sua submissão às ordens paternas. Contudo, traz argumentos concretos a favor da defesa de sua amada, exalta a contestação do édito pelo povo nas ruas, mostrando o quanto a cidade de Tebas está de acordo e apoia o feito dela.
Nesse ponto, o autor mostra que a vaidade e o poder tomam conta de Creonte, quem acredita ser o único a ordenar e a governar aquele país: “A cidade, acaso, me dirá como devo agir?” (SÓFOCLES, 1999, p.55, linha 734) e “A cidade não pertence a quem governa?” (p. 56, linha 738). O filho tenta trazer o pai à razão, dizendo-lhe que o seu soberano poder está desrespeitando as honras devidas aos deuses. A discussão se acalora, e chega ao auge: Hemon ameaça se matar, caso o pai não revogue a condenação. Creonte entende esta fala do filho como uma intimidação, e com sua tirania decide tornar ainda mais cruel a pena de Antígona – aprisionada numa caverna com poucos alimentos, para ter um lento final de vida.
O quarto episódio mostra as lamentações de Antígona. Percebe-se tentativa de insuflar o povo a se revoltar contra o governo autoritário de Creonte, mas, outrossim, mostra sentimentos de autocomiseração, como as encontradas na seguinte fala:
Eis-me, cidadãos da minha pátria,
a trilhar o derradeiro caminho,
a contemplar os últimos raios de sol.
Este é o fim. A acolhedora
morte me leva viva [....]
Noiva serei de Finados. (SÓFOCLES, p. 62-63, linhas 810-815)
Nesse momento, o coro, no quarto estásimo, faz comparações com outros personagens mitológicos, também emparedados.
No quinto episódio, entra em cena Tirésias, adivinho conhecido e respeitado. Adverte Creonte do mal que irá se abater em sua vida, pois devido à sua teimosia os deuses estão furiosos. Mas, ele se mantém irredutível. Após a partida de Tirésias, é, finalmente, convencido pelo coro a libertar Antígona e a sepultar Polinices.
Porém, quando Creonte tenta restaurar a ordem na cidade e revogar seus atos, permitindo o enterro de Polinices com as honrarias necessárias, ele se depara com o suicídio de Hemon, ao lado de Antígona, também morta. Após esta nova tragédia, Creonte ainda encontra mais outro suicídio, o de sua mulher, em virtude da morte do filho.
Tese da defesa de Antígona
Para defender a postura de Antígona, deve-se contextualizar a época em que a peça é escrita e encenada. A sociedade na Grécia antiga é machista, portanto, apenas homens participam da vida pública. Desse modo, não é de se estranhar o fato de uma mulher ser desrespeitada e não ouvida, ponto importante para entendimento do caso. Cabe a reflexão: numa civilização machista e patriarcal, em que o papel da mulher se resume a trabalhos domésticos, permite-se ou leva-se a sério uma mulher lutar contra um decreto de um tirano?
Outro ponto a ser entendido são as crenças locais, da época da tragédia. O povo grego é apegado aos seus deuses e os respeitam, os amam e os temem. Antígona se utiliza dos deuses para justificar sua insubordinação ao édito de Creonte. Na linha 519, Sófocles escreve “A lei do Reino dos Mortos é igual para todos”. (1999, p.40) Assim, ela sustenta sua posição de apego às leis dos deuses, em preferência à lei dos homens.
Esse pensamento, remete ao debate sobre os direitos naturais. Pode-se dizer que à época, o direito natural, em quase sua totalidade são constituídos por leis religiosas, consideradas mais importantes e preservadas do que as normas humanas. Os gregos, apegados à mitologia, reverenciam todos os seus 12 deuses. A religião grega só é superada com o surgimento da filosofia, a qual emerge posteriormente à peça. Logo, Antígona está correta ao exigir o cumprimento da lei, que, teoricamente, é anterior e mais importante do que o édito de Creonte.
Além dessas questões, é possível entender que embora haja pequenas manifestações contra o Tirano, ocorrendo em Tebas, como expostas nas linhas 690 à 695 por seu filho Hemon, Creonte segue intimidando o povo, que aceitava calado a suas ordens,
“Tua imagem intimida o homem do povo
que não se atreve a pronunciar palavras
[que não te agradariam.
Eu, no entanto, ouço, às escondidas,
como a cidade lamenta a sorte desta jovem,
de todas as mulheres a que menos merece
morte extremamente aviltante
[por ação inquestionavelmente bela.” (SÓFOCLES, 1999, p.52-53)
Entende-se, pois, que o povo está contra a posição de Creonte, mas por temerem seu poder, não se rebelam. O medo da população é real, em função da brutalidade com a qual Creonte lida com problemas. Uma dessas atitudes despóticas é descrita na linha 325 até a linha 327, quando ameaça, sem provas e levianamente, um guarda por aceitar dinheiro para o sepultamento de Polinices: “O que julgo não é da tua conta. Se não me apresentardes os culpados, vereis que o lucro desonesto traz desgraça”. (SÓFOCLES, 1999, p.27-28)
Ao olhar às tradições e costumes das sociedades em determinadas épocas, é possível entender e valorizar a atitude de Antígona, bem como de toda a civilização humana. Esta é marcada por atitudes heróicas individuais ou de grupos minoritários, aos quais representam a vontade reprimida do coletivo. Como exemplo dessas atitudes, temos Nelson Mandela, Martin Luther King, Mahatma Gandhi, os movimentos abolicionistas ao redor do mundo durante os séculos XVIII e XIX, os movimentos sociais que combateram as ditaduras na América do Sul e outras centenas de nomes e de grupos, que como Antígona enfrentaram e enfrentam a opressão em busca de valores éticos e por justiça.
No final da peça, Creonte reconhece que seu édito estava equivocado e visa restaurar a ordem em Tebas. Porém, ao voltar atrás e permitir o enterro de Polinices, é tarde demais.
Diante dos fatos apresentados, depreende-se que, Antígona é inocente por ser vítima do machismo, numa sociedade em que a mulher não tem voz, e, também, por defender as leis mais importantes da Grécia antiga, as leis divinas. Antígona é mártir do povo oprimido, obrigado a respeitar à contra gosto, os caprichos e a tirania de seu rei.
Tese da acusação de Antígona
Ao acusar Antígona, deve-se entender os motivos pelos quais Creonte não permite que seu irmão, Polinices, fosse enterrado com as honras devidas. Para isso, é preciso relembrar a narrativa: Édipo sai de Tebas e o reino passa a ser disputado por seus dois filhos, Polinices e Etéocles. Polinices se casa com a filha de Andrastos, rei de Argos, e juntos atacam Tebas na chamada expedição dos "Sete contra Tebas". Esta guerra, “não deu em nada”, e os dois irmãos decidem por um combate entre eles, em que ambos morrem.
Com a morte dos irmãos, o trono é herdado por Creonte, tio deles, que faz todas as honras fúnebres para Etéocles e deixa Polinices largado, no local onde morreu, proibindo qualquer um de tocá-lo. Pergunta-se, como pode Creonte ser generoso com um sobrinho e cruel com o outro? Simples a resposta. Polinices, considerado traidor da pátria por se aliar a um povo inimigo, pensa apenas em causa própria e almeja o trono de Tebas. Logo, Antígona não tem razão ao defender o irmão, em atitude movida por sentimentos fraternais, sem levar em conta a ética e a justiça. Ao burlar o édito de Creonte, Antígona foi de encontro à ordem de Tebas, mantida por decreto do governante.
A argumentação usada por Antígona, baseada nas leis dos deuses, apesar de ser comum à época, não pode ser mais relevante do que as leis de Creonte. O povo delegou os poderes a ele, e assim o tirano pode fazer o que bem lhe provém, pois assim funcionam os sistemas políticos na Grécia antiga, com exceção da democracia ateniense. A ordem da cidade é mantida pelo rei, e ao desacatar um decreto seu, Antígona provoca a desordem unicamente por um desejo pessoal.
Logo, nota-se que Antígona se comporta de maneira egoísta, ao transgredir uma norma estatal, se valendo de princípios metafísicos e de valor menor que as leis elaboradas por quem realmente governa a cidade. Por isso, Antígona é culpada por incitar a desordem pública e desacatar a ordem da autoridade constituída, por pensar, exclusivamente, no que ela julgava ser o certo, sem se importar com o que pensava toda a população de Tebas.
Sentença final do caso
O caso de Antígona continua sendo estudado e debatido, por diversas correntes de pensadores ao longo dos séculos. À polêmica em torno de argumentos favoráveis, tanto da acusação quanto da própria defesa, pode-se chegar à posição de julgá-la inocente.
Os aspectos principais, que faz interpretar sua atitude como correta, são: a perspectiva da época, em que a lei dos deuses deve ser respeitada acima de qualquer outra. Ainda naquela época, o machismo faz com que a heroína seja desrespeitada e desvalorizada. Esses dois pontos, somados à intolerância e ao despotismo de Creonte, vêm corroborar a sua inocência.
Além disso, a tese da acusação quanto Antígona ser egoísta, por insubordinamento ao édito de um tirano, é inválida como premissa verdadeira e universal. Se isso fosse verdade, ninguém poderia se rebelar contra nenhuma lei que não julgasse justa. Por exemplo, seria egoísmo se alguém desrespeitasse às leis nazistas?
Por fim, o fato de Creonte voltar atrás em sua decisão, e decidir enterrar Polinices, trata-se de admissão de erro. Há, entretanto, de se valorizar os argumentos da acusação e conclui-se que as teses apresentadas pela defesa são mais consistentes, precisas e sustentáveis.
Referências bibliográficas
GOYARD-FAVRE, S. Os Princípios Filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Editora
Martins Fontes, 2002.
SABADEL, A.L. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma Leitura Externa do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
SÓFOCLES. Édipo&Antígona. São Paulo: Editora Martins Claret. Trad. Sir Richard Jebbs, 2002.
SÓFOCLES. Antígona. Trad. Donaldo Schüler, Porto Alegre: L&PM Pocket, 1999.
Graduado em direito na UFRJ e pós-graduado em direito público e privado na EMERJ .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAY, Guilherme Abramovitch. Antígona e seu julgamento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 out 2023, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63427/antgona-e-seu-julgamento. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
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