Resumo: O presente artigo analisa a particular noção de suspeita construída em torno da figura do “vadio” em nosso Código de Processo Penal. Partindo da constatação da vigente tipificação da vadiagem e da presunção de periculosidade que a acompanha, verifica-se a aproximação da norma à ideia de direito penal para inimigos. Faz-se apanhado da legislação criminal editada do Império aos dias atuais acerta da tipificação do delito de “vadiagem”, para, por fim, aduzirmos a insustentabilidade dessa reserva normativa em face dos direitos e garantias individuais.
Palavras-chave: Periculosidade – Suspeita – Vadiagem – Processo Penal
Introdução
Para o exercício da atividade policial, notadamente o policiamento ostensivo (CF/88, art. 144, § 5º), uma noção é recorrentemente mobilizada pelos agentes policiais: a noção de suspeita. O conceito, contudo, é indeterminado, pois, ao remeter à desconfiança do cometimento de um delito, em especial para as práticas ostensivas de prevenção criminal, deve ser construído no caso concreto individualizado.
A fim de compreender o significado atribuído à noção de suspeita, propõe-se neste trabalho uma retrospectiva do significado historicamente atribuído a esse termo em nossa legislação penal e processual penal. A partir da positivação expressa da presunção de periculosidade dos ébrios habituais e dos condenados por vadiagem ou mendicância na Lei de Contravenções Penais (art. 14), e, até 2011, na orientação de prisão preventiva do indiciado que fosse tido como vadio (redação original art. 313 do Código de Processo Penal), verifica-se no direito brasileiro a positivação de tipos a priori suspeitos e a normatização de uma particular atenção do aparato penal a esses estados comportamentais ou de fato existenciais, sem correlação com uma suspeita construída em uma situação concreta e particularizada.
Nesse panorama, o presente artigo objetiva analisar como a noção de suspeita foi historicamente tratada em nossa legislação penal e processual penal, inclusive a fim de que se possa compreender a noção no direito atual.
Suspeita e vadiagem: uma retrospectiva histórica da legislação penal brasileira
A atribuição do rótulo da periculosidade a determinados sujeitos se assenta na assunção de estereótipos forjados em algo como a natureza do indivíduo, em suas prováveis e pretensas características existenciais intrínsecas e exteriormente perceptíveis. Estranhos e indesejáveis seriam determinados pela simples manifestação de suas condições existenciais, na percepção mais imediata da representação exterior que lhe é atribuída e no consecutivo juízo do que venha a ser sua possível índole ou caráter natural, em sua natureza mesmo, pretensamente não política, isto é, não individualizada por um ato do poder soberano, dando contornos a uma categoria ôntica de inimigo[1].
Os critérios de periculosidade e suspeita permearam nosso direito penal da década de 40 do século passado. Na redação original do Código Penal, a verificação da periculosidade, quando não presumida por lei, deveria ser reconhecida pela análise da personalidade, antecedentes, motivos e circunstâncias do crime, que autorizavam, a seu turno, a suposição de que o indivíduo viesse ou tornasse a delinquir, podendo ser verificada ainda em elementos como a torpeza, malvadez, cupidez ou insensibilidade moral na prática do fato tipo (antigo artigo 77 do Código Penal).
O sistema veio a ser complementado pela Lei das Contravenções Penais, em 1941, que positivou a presunção de periculosidade dos inimputáveis por razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, dos ébrios habituais, dos vadios e mendigos e dos exploradores de jogos de azar, em especial do jogo do bicho, estando vigentes ainda as presunções relativas aos ébrios, vadios e mendigos.
O Código Criminal do Império, Lei de 16 de Dezembro de 1830, editado em contexto de exploração escravocrata das pessoas negras, dedicava sua quarta parte ao que denominava “crimes policiaes”, práticas entendidas como atentatórias à civilidade e aos bons costumes, estando tipificados como delitos desse tipo a vadiagem e a mendicância (respectivamente, artigos 295 e 296), sendo configurada a vadiagem pela ausência de ocupação honesta e útil que garantisse ao indivíduo os meios para a sua subsistência.
Em 16 de novembro de 1889, a monarquia foi derrubada em um golpe militar e substituída por um governo de matiz republicano. Mas, antes mesmo da promulgação da Constituição de 1891, um novo código criminal foi editado pelo poder militar insurgente, publicado pelo Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890. A despeito das mudanças de ordem social e política, mantiveram-se no campo penal as preocupações com o controle social do negro, particularmente por meio da tipificação da prática da capoeira, equiparada à vadiagem, previstas que estavam (capoeiragem e vadiagem) em um mesmo capítulo do Código (capítulo XII - dos vadios e capoeiras).
Atualmente, vige a tipificação prevista no art. 59 da Lei das Contravenções Penais – Decreto-Lei n. 3.688/41 – que reputa vadio o alguém que se entrega à ociosidade, sendo válido para o trabalho, não tendo renda suficiente que lhe garanta a subsistência, ou que provenha o próprio sustento mediante ocupação ilícita.
Além disso, a sistemática penal inaugurada na década de 1940 positivou expressamente a presunção de periculosidade dos tipos vadios. A imposição da periculosidade feita pelo artigo 14 da Lei das Contravenções Penais normatiza tipos a priori suspeitos e os coloca como objetos de permanente atenção dos aparatos de submissão administrativa direta, dispensando-lhes tratamento coercitivo diferenciado, que os acompanha em razão de um estado virtualmente perigoso.
Nesse contexto, a vadiagem configura um estado permanente de flagrância, o que, conjugado com a suspeita latente que acompanha o indivíduo, coloca-o em um estado constante vigilância pelo estado.
Conclusão: a insustentabilidade da tipificação da presunção de periculosidade
A leitura do arcabouço legislativo historicamente construído em torno da categoria do vadio ou vagabundo aponta uma particular noção de suspeita esboçada em torno dessa figura em nosso direito. Tradicionalmente, essa singular noção de suspeita se faz em torno da assunção de presunções e pressuposições comportamentais quanto à pessoa que como vadio seja identificado. Faz-se desse tipo uma ameaça, um perigo social, em razão de sua simples condição existencial, legitimando o uso da tecnologia jurídica como meio de exclusão dos identificados como má-vida, desviantes, errantes e indesejáveis, racionalizando uma lógica do inimigo no direito.
A imposição de um título de periculosidade veiculada na legislação penal, singularmente no que tange aos vadios e mendigos, calca-se numa lógica determinista e encontra seu fundamento em movimento de segregação de estranhos e indesejáveis e diferenciação entre amigo/inimigo, marcante do positivismo criminológico, que notadamente engendra esforços em uma teorização sobre tipos aprioristicamente suspeitos, merecedores de coerção direta por serem percebidos como essencialmente perigosos.
As construções jurídicas em torno da figura do vadio se fundam no senso comum da função dignificante do trabalho honesto e no papel que este desempenha na construção do coletivo, e, particularmente na esfera penal, as teorizações sobre a vadiagem operam, sobretudo, no plano das presunções.
A positivação da presunção de periculosidade dos tipos vadios, que se faz em termos eminentemente estereotipados, engendra uma lógica determinista na sistemática penal, colocando no espaço do direito positivo a assunção de que a vadiagem comporta uma tendência criminosa, um estado de latência delitiva, assumindo de antemão que a pessoa que se encontre nessa condição será impelida a delinquir para garantir a sua subsistência.
Essas posições, contudo, não sobrevivem a uma leitura democrática do ordenamento jurídico e à força estruturante operada pelos direitos e garantias fundamentais. O próprio direito penal e direito processual penal devem ser lidos como garantias do indivíduo, e não como um recanto de salvaguardas da sociedade e de concepções de bem geral, não podendo prosperar, em uma prática penal verdadeiramente democrática, qualquer outra presunção que não a de inocência, sob o risco de legitimar-se o arbítrio no âmbito do estado de direito.
Referências bibliográficas
BRASIL. Lei de 16 de Dezembro de 1830. Manda Executar o Codigo Criminal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm
_______. Decreto-lei n. 3.688, de 3 de Outubro de 1941. Lei de Contravenções Penais.
_______. Decreto-lei n. 3.689, de 3 de Outubro de 1941. Código de Processo Penal
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 3.ed. Tradução de Sérgio Lamarão. Revan: Rio de janeiro, 2011
[1]“Para o positivismo [criminológico], o inimigo ou estranho não era alguém assinalado como tal pelo poder, mas sim pela natureza, pretendendo desse modo a existência ôntica do inimigo; o estranho do positivismo não é um inimigo político no sentido que assume esse caráter em função de um ato de individualização política ou de poder, mas sim um inimigo ôntico.” (ZAFFARONI, 2011, p. 93) (grifos no original)
Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Júlio César Marques da. Quem é o suspeito? Uma análise da presunção de periculosidade do “vadio” do Código Criminal do Império ao Código de Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2023, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63511/quem-o-suspeito-uma-anlise-da-presuno-de-periculosidade-do-vadio-do-cdigo-criminal-do-imprio-ao-cdigo-de-processo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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