RESUMO: O presente trabalho é destinado ao estudo da inaplicabilidade do princípio do in dubio pro societate, em especial após a Constituição de 1988, em que se consagrou o princípio do in dubio pro reo e o princípio da presunção de inocência. Em que pese haver entendimentos jurisprudenciais e doutrinários contrários, a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal já reconhece a não aplicação do in dubio pro societate, especialmente no âmbito do Tribunal do Júri. O objetivo principal é buscar ampliar e reconhecer que, se em algum período histórico do ordenamento jurídico brasileiro foi aceito o in dubio pro societate, certamente, a partir da promulgação da Constituição de 1988 não é mais possível aplicá-lo a qualquer procedimento penal ou fundamentar qualquer decisão judicial, sentença condenatória ou pronúncia.
PALAVRAS-CHAVE: In dubio pro societate; in dubio pro reo; princípio da presunção de inocência; Tribunal do Júri.
1. INTRODUÇÃO
O princípio do in dubio pro societate é conhecido e muitas vezes associado ao Tribunal do Júri, em especial a determinadas sentenças de pronúncia que fundamentam uma pronúncia e submissão de um réu ao julgamento pelo plenário daquele tribunal mesmo sem fundamentação suficiente. Entretanto, mesmo que ele ainda seja utilizado na prática e defendido por parcela da doutrina, o in dubio pro societate é contrário ao ordenamento jurídico brasileiro e ao princípio fundamental da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição da República de 1988.
Nesse sentido, segundo mandamento constitucional, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Ou seja, na dúvida ou sem condenação por sentença penal transitada em julgado, todos são inocentes:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;[1]
Assim, após a Constituição da República de 1988, é imperioso aplicar-se o princípio do in dubio pro reo, da presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade, e não mais utilizar-se da dúvida para submeter uma pessoa a uma pronúncia ou até mesmo condenação penal.
O presente trabalho tem como objeto de estudo o princípio do in dubio pro societate, a sua vedação no ordenamento jurídico brasileiro e a aplicação in dubio pro reo como regra necessária e indiscutível. Com fundamento em doutrina e jurisprudência dos Tribunais Superiores é possível concluir-se que a presunção de inocência não é um princípio restrito a determinados procedimentos penais ou a determinadas decisões, mas a todas as decisões e sentenças no âmbito do processo penal, inclusive às decisões de pronúncia.
2. O PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE E O PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO
O princípio do in dubio pro societate não foi recepcionado pela Constituição de 1988 e é contrário ao princípio da presunção de inocência expressamente previsto nela. Não bastasse a contrariedade ao direito interno, a Convenção Americana de Direitos Humanos também prevê, em seu art. 8º, o referido princípio da presunção de inocência e, por consequência, rechaça a regra do in dubio pro societate.
Ora, segundo o princípio da presunção de inocência, em caso de dúvida sobre a materialidade ou autoria, na ausência de lastro probatório mínimo, de standard probatório e de justa causa para sustentar uma denúncia, uma pronúncia ou uma sentença condenatória, prevalece a inocência e a absolvição. Assim, havendo dúvida ou ausência de certeza, não deve haver pronúncia, condenação e até mesmo, em casos em falta a mínima justa causa, denúncia, pois não se aplica o in dubio pro societate no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido:
É costume doutrinário e mesmo jurisprudencial o entendimento segundo o qual, nessa fase de pronúncia, o juiz deveria (e deve) orientar-se pelo princípio do in dubio pro societate, o que significa que, diante de dúvida quanto à existência do fato e da respectiva autoria, a lei estaria a lhe impor a remessa dos autos ao Tribunal do Júri (pela pronúncia). Na essência, é mesmo assim. Mas acreditamos que por outras razões. Parece-nos que tal não se deve ao in dubio pro societate, até porque não vemos como aceitar semelhante princípio (ou regra) em uma ordem processual garantista.[2]
Além disso, não se aplica o referido princípio durante todo o processo penal e depois desse referido processo, após o trânsito em julgado, havendo vedação da revisão pro societate:
Com os olhos postos na necessidade de segurança jurídica e no adequado e regular funcionamento das instituições públicas responsáveis pela administração da Justiça, a vedação da revisão para a sociedade impede que alguém possa ser julgado mais de uma vez por fato do qual já tenha sido absolvido, por decisão passada em julgado.
Isso ocorrerá ainda que a aludida absolvição tenha ocorrido em razão de erro judiciário no julgamento, decorrente de equívoco na apreciação das provas e dos fatos, por injustiça ou qualquer outro vício possível, incluindo incompetência absoluta.
A razão de ser da vedação da revisão pro societate fundamenta-se na necessidade de se preservar o cidadão sob acusação de possíveis desacertos – escusáveis ou não –, encontráveis na atividade persecutória penal, atuando o princípio, também, como garantia de maior acuidade e zelo dos órgãos estatais no desempenho de suas funções (administrativas, investigatórias, judiciárias e acusatórias).[3]
Assim, não é admitido tanto no âmbito do ordenamento jurídico interno, conforme a Constituição de 1988, quanto no âmbito internacional, de acordo com Convenção Americana de Direitos Humanos, a aplicação do princípio do in dubio pro societate. Aplica-se, por outro lado, o princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo como reflexo de uma ordem jurídica garantista e que expressamente o adota como princípio e, mais ainda, como garantia.
2.1. A INAPLICABILIDADE DO IN DUBIO PRO SOCIETATE SOB A ÓTICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Sobre a necessidade de fundamentação e de um lastro probatório consistente para se condenar ou submeter um acusado ao Tribunal do Júri, afastando-se o princípio do in dubio pro societate, assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Informativo nº 935:
Na fase de pronúncia deve-se adotar a teoria racionalista da prova, na qual não deve haver critérios de valoração das provas rigidamente definidos na lei, no entanto, por outro lado, o juízo sobre os fatos deve ser pautado por critérios de lógica e racionalidade, podendo ser controlado em âmbito recursal ordinário.
Para a pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a condenação. Contudo, a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias.
STF. 2ª Turma. ARE 1067392/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 26/3/2019 (Info 935).[4]
Nesse sentido, assim leciona o Ministro Gilmar Mendes nesse referido julgado sobre a inaplicabilidade do princípio do in dubio pro societate no ordenamento jurídico brasileiro:
3. Do standard probatório para a decisão de pronúncia e a incongruência do in dubio pro societate
Em seu acórdão, o TJ consignou que “a decisão vergastada trouxe argumentos plausíveis a absolvição dos apelados”, mas também afirmou que “ali se admitiu que havia outros elementos que apontavam para a culpabilidade dos réus”, reconhecendo assim claramente uma situação de dúvida . Entretanto, em lugar de considerar a motivação do juízo de primeiro grau, formada a partir de relatos de testemunhas presenciais ouvidas em juízo os quais afastaram a participação dos pacientes nas agressões, o TJ optou por dar maior valor a depoimento de ouvir-dizer e declarações prestadas na fase investigatória e não reiteradas em juízo com respeito ao contraditório. Ou seja, diante de um estado de dúvida, em que há uma preponderância de provas no sentido da não participação dos acusados nas agressões e alguns elementos incriminatórios de menor força probatória, o Tribunal optou por alterar a decisão de primeiro grau e pronunciar os imputados. Considerando tal narrativa, percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto “princípio in dubio pro societate”, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia.
[...]
Ainda que se considere os elementos indicados para justificar a pronúncia em segundo grau e se reconheça um estado de dúvida diante de um lastro probatório que contenha elementos incriminatórios e absolutórios, igualmente a impronúncia se impõe. Se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII, CF), convencionais (art. 8.2, CADH) e legais (arts. 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro.[5]
Assim, conforme jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal, em que pese haver decisões anteriores em sentido contrário, inclusive de outros Tribunais, é certo que houve o reconhecimento de que o in dubio pro societate é incongruente com a Constituição e com a Lei, sendo inaplicável no ordenamento jurídico brasileiro. Se não há justa causa, não deve prevalecer a denúncia, se não há standard probatório suficiente, não deve haver pronúncia ou sentença condenatória. Na dúvida, prevalece a presunção de inocência e o in dubio pro reo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trata-se de uma discussão relevante e que ainda permeia os estudos, as análises jurídicas e a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Mas é inegável que a recente decisão do Supremo Tribunal Federal no Informativo nº 935 é paradigmática e corrobora com o entendimento majoritário de não-recepção do princípio do in dubio pro societate.
Não apenas a Constituição de 1988 e o ordenamento jurídico brasileiro são contrários ao princípio do in dubio pro societate, mas também Tratados de Direitos Humanos que o Brasil é signatário e se obrigou a cumprir, como a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica.
Dessa forma, aplicar o princípio do in dubio pro societate em qualquer fase do processo penal é desconsiderar princípios basilares do ordenamento jurídico e afastar garantias inafastáveis. É aplicar o sistema inquisitorial e colocar em dúvida o próprio sistema acusatório e garantista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Diário Oficial da União, Brasília-DF, 5 de outubro de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 05/11/2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. ARE 1067392/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 26/3/2019. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753158094> Acesso em 06/11/2023.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Críticas ao princípio do in dubio pro societate na fase da pronúncia. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em:<https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/0b7a9d54deeb611edc4540d286e9a042>. Acesso em: 05/11/2023
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Diário Oficial da União, Brasília-DF, 5 de outubro de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 05/11/2023.
[2] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 722-723.
[3] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 49.
[4] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Críticas ao princípio do in dubio pro societate na fase da pronúncia. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/0b7a9d54deeb611edc4540d286e9a042>. Acesso em: 05/11/2023
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. ARE 1067392/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 26/3/2019. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753158094> Acesso em 06/11/2023
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Penal pela Faculdade Internacional Signorelli. Pós-graduanda em Arbitragem, Conciliação e Mediação pela Faculdade Integrada Instituto Souza - FaSouza. Advogada OAB/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, Ana Flávia Rezende. A inaplicabilidade do princípio do in dubio pro societate no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2023, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63808/a-inaplicabilidade-do-princpio-do-in-dubio-pro-societate-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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