RESUMO: O Direito Penal e a política criminal estão em constante evolução na busca por soluções céleres e efetivas, atendendo ao anseio social de segurança pública. Nesse sentido, surgem novos instrumentos de justiça penal negocial, descentralizando a atuação Estatal e fomentando a participação dos demais autores envolvidos em uma prática delituosa. Com isso, a partir sobretudo do Acordo de Não Persecução Penal, vislumbra-se uma possibilidade de um sistema de segurança público mais efetivo e racional, reerguendo a figura da vítima no processo penal e tutelando os direitos humanos do autor e da vítima de delitos.
Palavras-chave: direito penal, política criminal, acordo de não persecução penal, efetividade, vítima.
ABSTRACT: Criminal Law and criminal policy are constantly evolving in the search for quick and effective solutions, meeting the social desire for public security. In this sense, new instruments of negotiated criminal justice emerge, decentralizing State action and encouraging the participation of other perpetrators involved in a criminal practice. With this, mainly based on the Non-Criminal Prosecution Agreement, the possibility of a more effective and rational public security system is envisaged, restoring the figure of the victim in the criminal process and protecting the human rights of the perpetrator and victim of crimes. Criminal Law and criminal policy are constantly evolving in the search for quick and effective solutions, meeting the social desire for public security. In this sense, new instruments of negotiated criminal justice emerge, decentralizing State action and encouraging the participation of other perpetrators involved in a criminal practice. With this, mainly based on the Non-Criminal Prosecution Agreement, the possibility of a more effective and rational public security system is envisaged, restoring the figure of the victim in the criminal process and protecting the human rights of the perpetrator and victim of crimes.
Keywords: criminal law, criminal policy, non-criminal prosecution agreement, effectiveness, victim.
Introdução
Inicialmente, cabe lembrar a situação do sistema penal no Brasil, caracterizado pela a alta população carcerária e pelas péssimas condições, levando ao que a jurisprudência da Corte Colombiana denominou de Estado de Coisas Inconstitucional, termo jurídico usado para descrever uma situação em que há um conjunto amplo e sistêmico de violações de direitos fundamentais que persiste de forma generalizada e estrutural em um determinado setor ou área de atuação do Estado. Essa abordagem visa destacar não apenas casos isolados de violações, mas uma falha sistêmica e crônica nas políticas públicas ou na atuação do Estado, levando a uma inconstitucionalidade estrutural.
Essa grave situação violadora de direitos humanos foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro em uma decisão histórica de 2015 (ADPF 347/MC), ressaltando que a situação ia além de questões pontuais e exigia uma atuação mais ampla do Poder Judiciário e do Poder Executivo para corrigir as deficiências sistêmicas.
A doutrina reforça o entendimento do Pretório Excelso justificando o grande número de presos como consequência do próprio sistema adjetivo penal. Nesse sentido, aduz Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2017, p.110):
“[...]mostrar que o Sistema Processual Penal brasileiro é inquisitório é despiciendo: hoje ninguém mais, em sendo sério, duvida disso! Afinal, todos estão sofrendo na carne os resultados dele! E assim não seria, por infindáveis razões, se o sistema fosse o acusatório, de todo o compatível com a CR e encastelado nela, mas negado na prática”.
Além da necessidade de reformas dos prédios penitenciários, há se pensar em um novo modelo de sistema penal, com vistas ao cumprimento das finalidades da pena, sem que haja imposição de penas cruéis, o que é proibido expressamente pela Constituição Federal.
Nesse sentido, urge o movimento conhecido como privatização do direito penal, o qual é caracterizado pelo estímulo a acordos na seara criminal, deslocando a vítima para o centro das atenções advindos da política criminal estatal. Nesse diapasão, o fomento aos acordos penais traz diversos benefícios, ensejando a redução da população carcerária e a reparação imediata dos danos produzidos por atos ilícitos.
Evolução da justiça negocial
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), instituído no Brasil pela resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) surge como opção ao encarceramento em massa, sendo considerado como principal avanço da justiça consensual no Brasil. Trata-se de uma alternativa ao processo penal, possibilitando a resolução de delitos de médio potencial ofensivo de forma mais ágil e efetiva.
Atualmente, o Acordo de Não Persecução Penal está previsto no artigo 28 do CPP, de modo que não há mais discussão sobre sua constitucionalidade, antes alegada por aqueles que entendiam que a resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público versava sobre direito processual, exorbitando dos limites permitidos para atos infracionais, bem como ofendendo a competência privativa do congresso nacional para legislar sobre direito processual.
Não se trata de absoluta inovação na justiça penal negocial, tendo em vista que Lei 9.099/99, sobretudo com a Transação Penal, conseguiu reduzir o número de processos penais, permitindo que o Ministério Público dedique mais atenção a casos mais graves, como estupros, homicídios e latrocínios.
Todavia, como se sabe, a lei 9099/95 ficou restrita aos casos que envolvem infrações de menor potencial ofensivo, sendo um importante, mas não suficiente, avanço na busca por uma tutela penal mais célere e efetiva.
A real intenção do ANPP é tornar o sistema penal brasileiro mais inteligente, célere e efetivo. Busca-se permitir que o órgão acusador e o poder judiciário foquem em crimes mais graves, fomentando a efetividade e impedindo a impunidade intrínseca a processos judiciais demorados que levam à prescrição da pretensão punitiva.
A solução consensual é apresentada como uma resposta não apenas a anseios internos, mas também a tendências internacionais de expansão dos espaços de consenso na justiça criminal. Nessa linha, Alemanha, Itália, Argentina e França são países que adotam o modelo negocial (Langer, 2017), bem como Chile, Argentina e Uruguai.
Requisitos do ANPP
O Ministério Público pode propor o ANPP quando a pena mínima do delito for inferior a quatro anos e o crime não envolver violência ou grave ameaça. O investigado deve confessar formal e circunstancialmente a prática do delito e cumprir algumas condições, como reparar o dano à vítima.
Não pode ser o caso de arquivamento, pois deve existir justa causa, devendo o Ministério Público, se for o caso, pedir o arquivamento do inquérito policial ou investigação criminal. A infração penal não pode ter sido cometida com violência ou grave ameaça, prevalecendo que se a infração foi cometida com violência contra coisa, é possível a utilização do acordo.
Em relação à quantidade de pena, seu valor mínimo deve ser igual ou inferior a 4 anos, sendo certo que para sua aferição serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.
O ANPP deve se mostrar necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime no caso concreto, requisito de índole subjetiva, conferindo certo grau de discricionariedade do membro do Parquet, que avaliará se essa necessidade e suficiência estão presentes no caso concreto, presumindo a lei a ausência desses requisitos em caso de crimes cometidos no âmbito da violência doméstica.
Ademais, for cabível transação penal (art. 76 da Lei nº 9.099/95), o membro do MP deve propor a transação (e não o ANPP). Isso porque se trata de benefício mais vantajoso ao investigado. Por outro lado, mesmo que seja cabível a suspensão condicional do processo, ainda assim, o membro do MP pode propor o ANPP.
Por derradeiro, investigado deve ser primário, não havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, não podendo o agente ter sido beneficiado nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração com outro ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo.
Benefícios do ANPP
O ANPP apresenta-se como uma maneira consensual de alcançar resposta penal mais célere ao fato criminoso, por meio da mitigação da obrigatoriedade da ação penal, com indubitável diminuição das demandas judiciais criminais. Tem como principal escopo beneficiar a justiça criminal em sua integralidade, sem prejuízo dos interesses e garantias dos investigados.
Segundo o Ministro Rogério Schietti ((STJ - HABEAS CORPUS Nº 657165 – RJ. Rel. Min. Rogério Schietti, j. 09.08.2022):
“o Estado renuncia a obter uma condenação penal, em troca de antecipação e certeza da resposta punitiva; o réu renuncia a provar sua inocência, mediante o devido processo legal (com possibilidade de ampla defesa, contraditório e direitos outros, como o direito ao duplo grau de jurisdição), em troca de evitar o processo, suas cerimônias degradantes e a eventual sujeição a uma pena privativa de liberdade. De fato, essa solução negociada de processos acaba por implicar, de modo positivo, a efetividade de diversos princípios ou vetores processuais (v.g. celeridade, economia, eficiência e proporcionalidade), ainda que com sacrifício de outros (busca da verdade, presunção de inocência, contraditório e ampla defesa).
A extensa quantidade de processos, ausência juízes suficientes, e mesmo de recursos humanos faz com que, cada vez mais, infratores fiquem impunes. Daí a necessidade da justiça consensual como colaboradora, tanto do Ministério Público quanto do Poder Judiciário como um todo para enxugar a excessiva demanda e aplicar a lei penal no país com eficiência e efetividade.
A proposta do Acordo de Não Persecução Penal consiste em auxiliar o sistema penal brasileiro em efetivamente dar solução célere e proporcional na maioria das infrações penais a partir de uma decisão com base em uma discricionariedade regrada por parte do órgão acusador sobre a necessidade e suficiência do negócio jurídico.
O instrumento negocial incentiva a compensar os danos causados às vítimas, contribuindo para a restauração do equilíbrio social e para a reintegração do acusado à comunidade. Desse modo, atende-se aos interesses de todos os envolvidos na conduta delituosa.
Cabe expor que observar os interesses do acusado não significa dizer que o ANPP visa beneficiar quem comete crime, mas sim atender às finalidades da pena sem prejuízo do reconhecimento de um novel movimento de atração da vítima como protagonista na esfera penal.
Trata-se de uma nova perspectiva, fundada precipuamente na restauração do mal provocado pela infração penal, denominada pela doutrina Justiça Restaurativa, a qual se materializa através de conjuntos heterogêneos de iniciativas que visam criar um espaço de comunicação entre a vítima e o ofensor, como forma de buscar a reparação do delito e seus efeitos psicológicos e materiais, ou seja, visa uma reparação simbólica que vai além da dimensão meramente pecuniária.
Essa vertente parte da seguinte premissa que o crime e a contravenção penal não necessariamente lesam interesses do Estado, difusos e indisponíveis. Tutela-se com maior intensidade a figura da vítima, historicamente relegada a um segundo plano no Direito Penal, que sempre se direcionou ao criminoso e à punição como resposta à sociedade. Dessa forma, relativizam-se os interesses públicos e indisponíveis, advindos com a prática da infração penal, que de difusos passam a ser tratados como individuais, e, consequentemente, disponíveis.
Nesse sentido a punição deixa de ser o objeto principal do Direito Criminal, buscando de forma imediata restauração e reparação dos danos ocasionados pelo crime, responsabilização do agente e a reintegração de quem pratica fato delituoso à sociedade. Concretiza-se a chamada terceira via do Direito Penal, caracterizado pela reparação do dano, sob a égide do princípio da subsidiariedade do direito penal.
O ANPP é o principal instrumento desse novo paradigma da política criminal, chamado de privatização do Direito Penal. Tem o condão de permitir uma redução de pessoas presas e de fomentar a reparação do dano, além de dar uma resposta à sociedade, confirmando a manutenção da validade das regras jurídicas postas.
Atende aos preceitos fundamentais da proporcionalidade e da razoabilidade sem prejuízo das garantias e direitos fundamentais, porquanto a consensualidade é requisito do instrumento a ser controlado pelo poder judiciário.
Sem a intenção de listar todos os argumentos favoráveis à evolução da justiça penal negocial, é imperioso concluir pela suma importância do tema e de seu mais notável instrumento, garantindo a celeridade processual, reduzindo a morosidade dos casos mais complexos, economizando recursos dos erário e, principalmente, estimular a reparação de danos, contribuindo para uma política criminal efetiva, atendendo ainda aos direitos humanos das pessoas presas a partir do respeito às normas de Direito Penitenciário, notadamente no que se refere à superlotação dos presídios brasileiros.
Considerações Finais
Um processo criminal demanda organização, estrutura e esforço humano tanto no Judiciário, quanto no Ministério Público e Defensoria. O Acordo de Não Persecução Penal permite reduzir gastos públicos. O custo-benefício, do ponto de vista do combate à criminalidade, se vê ampliado a partir de uma justiça mais célere, aumentando a crença no poder judiciário e na vigência das normas.
O ANPP é mais uma tentativa de mudança que vem para somar, apresentando-se como ferramenta necessária para reduzir os números alarmantes que o poder judiciário precisa enfrentar todos os dias. Se o instituto proposto for efetivamente aplicado é possível experimentar grandes alterações na realidade brasileira a nível se segurança, pois é ineficaz o combate da violência com prisões, apenas.
A falta de estrutura impossibilita o poder judiciário e do Ministério Público de cumprir com zelo suas funções, assim como é incontestável a existência de violações a direitos das pessoas presas que ficam amontoadas em celas superlotadas, sendo certa a incapacidade de se conferir tratamento digno aos seres humanos, tampouco de atingir as finalidades da pena.
Diante de números alarmantes, é insustentável continuar a usar um modelo antigo e falido. Assim como a sociedade, o Direito precisa evoluir através de novos instrumentos aptos a dar a uma solução mais efetiva e adequada, modernizando o sistema penal e a segurança pública.
Referências Bibliográficas
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: o sistema acusatório e a reforma do CPP no Brasil e na América Latina. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Leonardo Costa de Paula, Marco Aurélio Nunes da Silveira. Florianópolis: Empório do Direito, 2017
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 14 ago. 2023.
Link para matéria: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2023/Acordo-de-n%C3%A3o-persecu%C3%A7%C3%A3o-penal-como-alternativa-ao-sistema-carcer%C3%A1rio-brasileiro © 2023 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA.
LANGER, Máximo Langer. Dos transplantes jurídicos às traduções jurídicas: a globalização do plea bargaining e a tese da americanização do Processo Penal. Rev. Delictae, vol. 2, nº 3, jul-dez, 2017.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CORREA, victor cypriano. O Acordo de não persecução penal como âmago da nova política criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2023, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64041/o-acordo-de-no-persecuo-penal-como-mago-da-nova-poltica-criminal. Acesso em: 23 dez 2024.
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