RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar como a Lei Maria da Penha pode ser aplicada para proteger os direitos das mulheres em estado gestacional ou parturientes. Os objetivos específicos consiste em descrever o conceito de violência obstétrica e suas diversas manifestações; Avaliar a eficácia da Lei Maria da Penha na proteção dos direitos das mulheres em situação de violência obstétrica; Identificar os desafios enfrentados na implementação da Lei Maria da Penha no contexto da violência obstétrica. Metodologicamente, faz-se o uso do Método Indutivo, com abordagem qualitativa, onde o procedimento é descritivo explicativo e a pesquisa é de Revisão Bibliográfica. A questão norteadora do estudo procura conhecer: Qual é o papel da Lei Marinha da Penha na prevenção e enfrentamento da violência obstétrica e na garantia da segurança e dignidade das mulheres em estado gestacional ou parturiente? A hipótese de pesquisa consiste na aplicação da Lei Maria da Penha no contexto da violência obstétrica contribui para a proteção e defesa dos direitos das mulheres grávidas e parturientes. Conclui-se que apesar da existência da Lei Maria da Penha, que amplia a proteção às mulheres vítimas de violência doméstica, seu alcance e aplicação no contexto da violência obstétrica ainda são questões que precisam ser investigadas.
Palavras-chave: Violência Obstétrica; Lei Maria da Penha; Gestação.
ABSTRACT: The present work aims to analyze how the Maria da Penha Law can be applied to protect the rights of pregnant or parturient women. The specific objectives are to describe the concept of obstetric violence and its various manifestations; Evaluate the effectiveness of the Maria da Penha Law in protecting the rights of women in situations of obstetric violence; Identify the challenges faced in implementing the Maria da Penha Law in the context of obstetric violence. Methodologically, the Inductive Method is used, with a qualitative approach, where the procedure is descriptive and explanatory and the research is Bibliographic Review. The guiding question of the study seeks to understand: What is the role of the Penha Marine Law in preventing and combating obstetric violence and guaranteeing the safety and dignity of pregnant or parturient women? The research hypothesis consists of the application of the Maria da Penha Law in the context of obstetric violence contributing to the protection and defense of the rights of pregnant and parturient women. It is concluded that despite the existence of the Maria da Penha Law, which expands protection for women victims of domestic violence, its scope and application in the context of obstetric violence are still issues that need to be investigated.
Keywords: Obstetric Violence; Maria da Penha Law; Gestation.
INTRODUÇÃO
A violência obstétrica é um tema de extrema relevância e crescente discussão nos contextos de saúde e direitos humanos. Ela se refere a uma série de práticas inadequadas, abusivas e desrespeitosas que ocorrem durante o processo de gravidez, parto e pós-parto, afetando as mulheres em um momento crucial de suas vidas. Essas práticas podem ocorrer tanto no sistema de saúde público como no privado e envolvem vários atores, como médicos, enfermeiros, parteiras, e outros profissionais de saúde.
A violência obstétrica é um termo que descreve um grave problema no campo da saúde, envolvendo práticas prejudiciais, abusivas e desrespeitosas durante o período da gravidez, parto e pós-parto. Esse fenômeno não se limita a ações físicas, mas engloba também o desrespeito à autonomia da mulher, seu consentimento informado e o direito de tomar decisões relacionadas à sua saúde reprodutiva. A violência obstétrica pode se manifestar de várias formas, incluindo intervenções médicas desnecessárias, humilhações verbais, negligência, falta de informação adequada e até mesmo abuso físico.
Um dos aspectos mais preocupantes da violência obstétrica é que muitas mulheres são frequentemente submetidas a procedimentos médicos sem seu consentimento adequado, resultando em traumas físicos e emocionais. Essa violação dos direitos reprodutivos e de autonomia das mulheres é uma manifestação de desigualdade de gênero e um reflexo da falta de respeito pela dignidade das gestantes e parturientes.
A aplicação da Lei Maria da Penha nos casos de violência obstétrica é um tema importante e complexo, que envolve questões jurídicas, de saúde e de direitos humanos. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) foi criada para combater a violência doméstica e familiar contra as mulheres, estabelecendo medidas protetivas e punitivas em casos de agressões e ameaças no contexto das relações familiares ou de intimidade. No entanto, a sua aplicação nos casos de violência obstétrica é desafiadora, principalmente devido à especificidade desse tipo de violência.
Devido a grandes casos concretos relacionados a violência, constata-se a ausência de lei específica que configura a hipótese como crime ou as circunstâncias caracterizadas em território nacional. É necessário darmos visibilidade a estes casos recorrentes, e através desse artigo pretendo verificar formas que possam dá devidamente a atenção necessárias conscientizando e incentivando a prevenção dessa violência que se torna presencialmente na vida das mulheres.
1 O CONCEITO DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E SUAS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES
A violência obstétrica, embora tenha adquirido uma nomenclatura nova, é um fenômeno que existe há muitos anos, com um número considerável de vítimas. Práticas que outrora eram consideradas normais, diferentemente do entendimento atual, não pareciam representar riscos à saúde das mulheres grávidas, o que as tornava aparentemente comuns (DUTRA, 2017).
Em tempos antigos, o parto era um evento que ocorria no ambiente doméstico, frequentemente assistido por parteiras, sem a necessidade de equipes especializadas em ambientes hospitalares (BARCELLOS, 2016 apud DUTRA, 2017). No decorrer do tempo, a prática de conduzir as mulheres grávidas para unidades hospitalares se tornou prevalente, estabelecendo um novo padrão para o nascimento de crianças (MALHEIROS, 2012 apud DUTRA, 2017).
A violência obstétrica ganhou mais destaque no ambiente médico, uma vez que as intervenções externas no corpo das vítimas se tornaram mais evidentes. Essa forma de violência pode ocorrer em várias etapas da gravidez, incluindo o parto, pós-parto e pré-natal (MARTINS et al., 2019).
De acordo com Lopes (2020), a terminologia "violência obstétrica" foi cunhada pelo Dr. Rogélio Perez D' Gregório e ganhou reconhecimento global em 2010, sendo oficialmente reconhecida pelo Ministério da Saúde em 2019. Essa mudança na nomenclatura é fundamental para a conscientização e combate a essa forma de violência, que afeta as mulheres em um momento crucial de suas vidas.
Convém detalhar sobre o que se trata a violência obstétrica:
A violência obstétrica é caracterizada pela apropriação do corpo da mulher pelos profissionais de saúde, resultando em procedimentos desumanos que prejudicam sua autonomia e capacidade de decisão sobre o próprio corpo. Embora não haja consenso científico sobre suas consequências, essa forma de violência impacta negativamente a qualidade de vida das mulheres e, por extensão, a qualidade de vida dos bebês (DUTRA, 2017, p. 14).
Apesar da ausência de uma lei federal específica para abordar a violência obstétrica no Brasil, o governo do Estado de Santa Catarina promulgou a Lei n. 17.097, em 17 de janeiro de 2017, que oferece uma definição concisa desse tipo de violência. Segundo o artigo 2º dessa lei, considera-se violência obstétrica qualquer ato praticado por médicos, pela equipe hospitalar, por familiares ou acompanhantes que ofenda, de forma verbal ou física, mulheres grávidas em trabalho de parto ou no período puerpério (BRASIL, 2017).
A Constituição Federal do Brasil demonstra, em vários artigos, a preocupação do Estado em proteger a saúde, a integridade física e mental, a vida, a liberdade e a individualidade de seus cidadãos. O artigo 5º da Constituição garante o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade para todos, sem distinção de qualquer natureza. Além disso, proíbe a submissão de qualquer pessoa à tortura ou a tratamentos desumanos ou degradantes e assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (BRASIL, 1988).
Portanto, a Constituição Federal busca garantir um mínimo de qualidade de vida, respeito e dignidade a todos os cidadãos, coibindo práticas e condutas que vão de encontro aos direitos fundamentais nela estabelecidos.
1.1 As formas de violência obstétrica.
A violência obstétrica pode se manifestar de várias maneiras, com algumas das formas mais comuns incluindo negligência, violência física, violência verbal e violência psicológica (LOPES, 2020). Cada uma delas carrega consequências prejudiciais para a saúde e a dignidade da mulher.
A negligência é caracterizada pela dificuldade no acesso a atendimento adequado durante a gestação, parto e pós-parto. Isso pode resultar em falta de cuidados necessários e acompanhamento médico insuficiente, colocando em risco a saúde da gestante e do bebê. A violência física, por sua vez, ocorre quando são realizadas intervenções desnecessárias e/ou violentas sem o consentimento informado da paciente, causando danos físicos e traumas.
A violência verbal se manifesta por meio de comentários agressivos, constrangedores e ofensivos, muitas vezes incluindo tentativas de ridicularização das escolhas da mulher em relação ao parto e à posição de dar à luz. Essas palavras cruéis podem causar danos psicológicos significativos, afetando a autoestima e a saúde mental da gestante.
A violência psicológica é caracterizada por ações que provocam sentimentos de inferioridade, abandono, medo e instabilidade emocional na mulher. Isso pode incluir ações que minam a confiança da paciente em suas próprias decisões e a fazem se sentir desamparada.
Em conformidade com Lopes (2020) aponta que algumas condutas praticadas por profissionais de saúde podem colocar em risco a vida, a integridade e a saúde da mulher. Por exemplo, intervenções médicas desnecessárias, como cesarianas não justificadas, podem expor a gestante a riscos não justificados, enquanto privam a mulher de seu direito à autonomia e ao parto seguro e respeitoso. Portanto, a violência obstétrica abrange um espectro de abusos que vão desde a negligência até a violência física e emocional, comprometendo a qualidade da atenção à saúde das mulheres:
A prática da episiotomia envolve a realização de um corte na vulva sem o consentimento da mulher, e, em alguns casos, sem a administração de anestesia. Essa intervenção visa a abertura do canal vaginal e, posteriormente, é realizada a episiorrafia, que consiste na sutura do corte. Isso pode causar dor e desconforto extremos, muitas vezes de difícil suportabilidade para a mulher.
A administração de ocitocina é outra intervenção, na qual um hormônio produzido naturalmente pelo corpo humano é utilizado artificialmente em soros. O objetivo é estimular as contrações e, consequentemente, o trabalho de parto. No entanto, o uso da ocitocina pode resultar em intensa dor para a parturiente, bem como em possíveis complicações tanto para ela quanto para o feto.
A proibição da presença de um acompanhante é uma violação dos direitos da mulher. Ela tem o direito de escolher quem a acompanhará durante o pré-parto, parto e pós-parto imediato. A lei n. 11.108, de 7 de abril de 2005, no artigo 19-J, parágrafo 1º, estabelece os direitos da parturiente a esse respeito, garantindo o seu direito de escolha de um acompanhante durante o processo de parto, in versis:
Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente. (BRASIL, 2005).
No contexto pré-natal, várias mulheres enfrentam formas de violência que incluem toques desnecessários, comentários humilhantes e a retenção de resultados de exames médicos (CARVALHO et al, 2019). Essas práticas desrespeitosas e invasivas comprometem a dignidade das gestantes e seu direito a uma assistência pré-natal adequada.
Durante o parto, relatos frequentes de violência obstétrica incluem a realização de cesarianas sem necessidade, imposição de posições inadequadas para a parturiente, assistência desqualificada, proibição da presença de um acompanhante, bem como comentários humilhantes, entre outras condutas prejudiciais (DINIZ et al, 2015 apud CARVALHO, 2019). Essas práticas violam o direito das mulheres a um parto seguro e respeitoso, causando sofrimento emocional e físico.
No caso de abortos, muitas mulheres enfrentam suspeitas, falta de esclarecimentos sobre o procedimento, longas esperas por atendimento, acusações de crime e culpabilização (CARVALHO et al, 2019). Essas experiências agravam o estigma e o sofrimento das mulheres em um momento já difícil.
Essas condutas representam exemplos de violência obstétrica, uma prática enraizada ao longo de muitos anos, cuja gravidade muitas vezes passa despercebida. É importante destacar que essas ações afetam principalmente as mulheres durante um momento tão crucial de suas vidas, o que reforça a necessidade de conscientização, educação e medidas para combater a violência obstétrica e garantir um atendimento respeitoso e humanizado a todas as gestantes.
2 EFICÁCIA DA LEI MARIA DA PENHA NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES
Considerando os dados analisados até o momento, é fundamental avaliar a eficácia da Lei Maria da Penha (LMP) na prática, conforme apresentado neste tópico. Nossa análise se baseia no estudo divulgado em março de 2015 pelo IPEA intitulado "Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha" e no dossiê publicado em fevereiro/março de 2017 na Revista Brasileira de Segurança Pública, intitulado "Lei Maria da Penha: Necessidade de um Novo Giro Paradigmático".
É indiscutível que a LMP é uma legislação amplamente reconhecida, e, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), foi considerada em 2012 a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica. Segundo o relatório "Avaliando a Efetividade da LMP", essa nova legislação ofereceu uma série de instrumentos para proteger e acolher vítimas, isolando-as dos agressores, ao mesmo tempo que criou mecanismos para garantir assistência social às ofendidas. Além disso, a lei contemplou mecanismos para preservar os direitos patrimoniais e familiares das vítimas, sugeriu melhorias e efetividade no atendimento jurídico e previu instâncias para o tratamento dos agressores (CERQUEIRA et al, 2015, p. 10).
De acordo com o mesmo relatório, a LMP impactou o comportamento tanto dos agressores quanto das vítimas de três maneiras: i) aumentando o custo da pena para o agressor; ii) empoderando e proporcionando condições de segurança para que as vítimas denunciem; e iii) aprimorando os mecanismos judiciais, permitindo que o sistema de justiça criminal atendesse de forma mais eficaz casos envolvendo violência doméstica (CERQUEIRA et al, 2015, p. 34).
A Lei Maria da Penha abordou a questão da violência contra a mulher de maneira abrangente, criando políticas públicas e medidas protetivas com o objetivo de erradicar gradualmente esse tipo de violência. No entanto, apesar das inovações introduzidas pela lei, os registros de violência contra a mulher ainda são alarmantes no Brasil. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2018), em 2017, houve um total de 221.238 casos de lesão corporal dolosa qualificados pela Lei Maria da Penha, o que equivale a 606 casos por dia. Esses números indicam que apesar dos avanços legislativos, há um longo caminho a percorrer na luta contra a violência de gênero no país.
Os índices alarmantes de violência contra a mulher, de acordo com o relatório do IPEA, podem ser explicados pela natureza nacional da Lei Maria da Penha (LMP), o que resulta em efeitos heterogêneos de acordo com a implementação dos serviços estabelecidos na lei. Em locais onde a sociedade e o poder público não se mobilizaram para implantar delegacias de mulheres, juizados especiais, casas de abrigo e outros serviços previstos na LMP, é razoável supor que a crença da população em relação ao aumento da probabilidade de punição não tenha mudado substancialmente.
Por exemplo, se esses serviços foram implantados de maneira endógena, como resultado da pressão mais forte da sociedade civil local, do maior capital social e da maior organização do sistema judiciário naquela localidade, é plausível pensar que os benefícios marginais da implementação desses serviços tenham sido menores, dado o maior controle social já existente. Nesse cenário, justamente nos locais onde a população feminina possuiria maior necessidade de acesso a mecanismos de proteção, a LMP poderia demorar a ser efetivamente implementada (CERQUEIRA et al, 2015, p. 35).
Isso indica que a eficácia da Lei Maria da Penha pode variar significativamente de uma região para outra, dependendo do comprometimento da sociedade e do poder público na implementação dos serviços e mecanismos de proteção previstos na legislação. Em áreas onde esses recursos são escassos, a efetividade da lei pode ser comprometida, refletindo-se nos alarmantes índices de violência contra a mulher.
O relatório vai além, concluindo que os dados relacionados às agressões letais representam apenas uma pequena parte do problema, frequentemente encobertos pela violência em si. Considerando os ciclos da violência, conforme já explorados neste estudo, que envolvem uma progressão gradual dos momentos de tensão até atingirem o ápice da crise, com lesões mais graves, é possível que, nesse estágio crítico, ocorram homicídios como uma consequência inesperada desses momentos de crise aguda (CERQUEIRA et al, 2015).
Nesse contexto, a eficácia da Lei Maria da Penha (LMP) na prática em relação à violência doméstica é questionada e, segundo o estudo, estatisticamente comprovada. Após a entrada em vigor da lei, houve uma redução nos homicídios cometidos contra as mulheres, principalmente relacionados à categoria de violência de gênero. No entanto, a percepção da punição do agressor é fundamental para tornar a lei eficaz na prevenção da violência doméstica. Conforme abordado anteriormente, a implementação dos serviços previstos na lei varia significativamente em todo o território nacional, o que pode levar a uma percepção de menor punição para o agressor. Portanto, o estudo conclui que os efeitos temporais e espaciais da lei não são uniformes e que sua eficácia está condicionada à implementação homogênea das políticas de prevenção da violência doméstica (CERQUEIRA et al, 2015, p. 36).
O medo, as agressões repetidas e as ameaças, inclusive de morte, são fatores que justificam a aplicação das medidas protetivas de urgência. No entanto, na prática, existem obstáculos significativos para a concessão dessas medidas, decorrentes da burocracia presente na atuação da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Sendo assim, alude a autora que:
O medo frequentemente motiva as vítimas a solicitar medidas protetivas, e a abordagem burocrática tanto das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams) quanto do sistema judiciário aumenta a possibilidade de risco para as mulheres. Nesse contexto, é crucial salientar que não deve ser responsabilidade da mulher provar que está sob risco, mas sim do Ministério Público e do judiciário fundamentar consistentemente uma negativa. A inversão desse ônus, tornando a mulher responsável por provar sua situação de risco, subverte os princípios da Lei Maria da Penha, demonstra falta de compreensão sobre a natureza da violência doméstica, trivializa seu tratamento e coloca o sistema de justiça em oposição às mulheres (CAMPOS, 2017, p. 18).
Ao confrontar os resultados da pesquisa DataSenado com as afirmações mencionadas, fica evidente que o medo é o principal obstáculo que impede as vítimas de denunciar seus agressores. Além disso, considerando o excesso de burocracia envolvido nessa questão, a pesquisa DataSenado revela que 25% das vítimas optam por não denunciar devido à percepção de impunidade (DATASENADO, 2017, p. 35). Isso significa que as vítimas acreditam que o risco de denunciar não vale a pena devido às supostas dificuldades e formalidades excessivas envolvidas no processo.
Diante desse cenário, torna-se imperativo repensar as políticas públicas voltadas para a violência doméstica e familiar contra a mulher, priorizando a prevenção e a assistência como meio de evitar futuras ocorrências de agressões. Conforme proposto por Carmen Campos, a busca por um novo paradigma que proporcione uma eficácia significativa à Lei Maria da Penha é fundamental (CAMPOS, 2017, p. 19).
3 A POSSIBLIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA EM CASOS DE VIOLENCIA OBSTETRICA
3.1. Das legislações existentes sobre a violência obstétrica
A Argentina e a Venezuela adotaram há muito tempo medidas para abordar o comportamento da violência obstétrica em seus sistemas jurídicos. A Venezuela se destacou como a primeira nação latino-americana a fazê-lo, o que remonta a 2007, com a promulgação da Lei Orgânica do Direito da Mulher a uma Vida Livre de Violência (CAVALIERI FILHO, 2020).
Recentemente, especialistas têm concentrado seus esforços em pesquisas voltadas para a humanização do parto, buscando eliminar o uso de práticas obstétricas desatualizadas. No entanto, apesar desses avanços, o Brasil ainda não possui uma legislação federal ativa dedicada ao tema.
Atualmente, o Congresso Nacional possui vários projetos de lei aguardando aprovação, incluindo o Projeto de Lei nº 7.633/2014, de autoria do ex-deputado Jean Wyllys. Esse projeto estabelece medidas para garantir o tratamento humanizado das mulheres e dos recém-nascidos durante todo o ciclo gravídico-puerperal. Além disso, o Projeto de Lei nº 8.219/17, proposto pelo deputado Francisco Floriano, visa abordar e prevenir ocorrências de violência obstétrica perpetrada por profissionais de saúde contra mulheres durante o trabalho de parto e no período puerpério.
Para proteger as parturientes da violência obstétrica, vários estados brasileiros, como Tocantins, Santa Catarina, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Goiás, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Amazonas e outros, implementaram leis em nível estadual. Importante destacar que essas leis estaduais definem principalmente as circunstâncias que configuram a violência obstétrica e estabelecem que os órgãos reguladores serão responsáveis por monitorar e aplicar medidas punitivas por meio de um processo administrativo que garanta o devido processo legal.
A ausência de disposições claras nas leis estaduais acerca das sanções a serem aplicadas aos agressores, mesmo que essas leis descrevam as condutas que caracterizam a violência obstétrica, representa um desafio significativo para a eficácia dessas legislações. A falta de clareza legal aumenta a incerteza entre as vítimas de violência obstétrica, agravando ainda mais o problema.
3.2. Da possiblidade de aplicação da Lei Maria da Penha
A elaboração de uma lei específica para lidar com a violência de gênero resultou do esforço e da mobilização dos movimentos de mulheres, com o apoio da criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. A Lei 11.340/20062, conhecida como Lei Maria da Penha, está fundamentada em normas e diretrizes consagradas na Constituição Federal, na Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
De acordo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a discriminação contra a mulher é definida como "toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objetivo ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, pela mulher, independentemente de seu estado civil, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil, ou em qualquer outro campo" (art. 1º). Em outras palavras, a discriminação refere-se a qualquer diferenciação, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou resultado de prejudicar ou impedir que a mulher exerça, em igualdade de condições com o homem, seus direitos humanos e liberdades fundamentais.
A Lei Maria da Penha aborda diversos tipos de violência cometida contra as mulheres, incluindo violência moral, psicológica, patrimonial, sexual e física. No entanto, esse rol não é exaustivo, uma vez que o próprio texto da lei, em seu artigo 7º, faz menção a "entre outras formas", indicando que existem outras maneiras de violência que podem ser consideradas.
De acordo com Maria Berenice Dias (2019), a tipificação penal da violência é bastante restrita e requer diversos requisitos além da mera existência de violência física. Portanto, não é justificável restringir o reconhecimento da violência nas relações domésticas apenas à configuração dos tipos penais correspondentes. A Lei Maria da Penha estabelece diretrizes e contextos nos quais a violência contra a mulher pode ser reconhecida, especificando que isso pode ocorrer no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto.
Portanto, é plenamente aplicável aos casos de violência obstétrica a utilização da Lei Maria da Penha, uma vez que, na relação entre paciente e médico, existe uma dinâmica profissional, muitas vezes acompanhada de uma relação de afeto, especialmente quando a mulher é assistida durante todo o período gestacional.
As medidas previstas na Lei Maria da Penha podem ser agrupadas em três principais eixos de intervenção. O primeiro eixo se concentra nas medidas de natureza criminal, visando à responsabilização dos agressores. Nesse contexto, estão incluídos procedimentos como a reabertura de inquéritos policiais, prisões em flagrante delito, prisões preventivas e penas decorrentes de condenações. Além disso, o eixo prevê a restrição da representação criminal em casos específicos e a proibição da aplicação da lei 9099/95 a qualquer crime que se caracterize como violência doméstica e familiar contra a mulher.
O segundo eixo engloba as medidas voltadas para a proteção da integridade física e dos direitos das mulheres. Esse conjunto de medidas inclui tanto ações de caráter urgente para proteger a mulher quanto medidas direcionadas aos agressores. Além disso, este eixo contempla iniciativas de assistência, garantindo que o atendimento às mulheres em situação de violência seja abrangente, abarcando o suporte psicológico, jurídico e social necessário.
Por fim, o terceiro eixo compreende as medidas de prevenção e educação. Estas são consideradas estratégias essenciais para combater a reprodução social da violência e da discriminação de gênero. Por meio dessas medidas, busca-se promover uma mudança cultural e educacional que contribua para a eliminação da violência e da desigualdade de gênero na sociedade (PASINATO, 2008, 2009).
Em conformidade com Nucci (2017) argumenta que a Lei Maria da Penha, ao proteger as relações de intimidade, vai além do espírito dos tratados ratificados pelo Brasil. Isso ocorre porque a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher define a violência doméstica de forma mais ampla.
Além disso, o estresse crônico resultante da violência pode desencadear sintomas físicos, como dores de cabeça, fadiga, dores nas costas e distúrbios do sono, que são característicos do transtorno de estresse pós-traumático. Esse transtorno é marcado por ansiedade e depressão acentuadas, a ponto de afetar significativamente a capacidade da vítima de lidar com os efeitos de um trauma grave. Como esses sintomas podem persistir ao longo do tempo, independentemente da gravidade da lesão corporal infligida, resultando em uma incapacidade de realizar atividades cotidianas por mais de 30 dias ou em incapacidade permanente para o trabalho, é possível classificar o crime como lesão grave ou gravíssima devido à continuidade do dano à saúde (DIAS, 2019).
Diante dessa nova realidade, não se pode restringir a abrangência da legislação vigente. Não importa a duração do relacionamento nem o tempo decorrido desde o seu término. O fundamental é comprovar que a agressão teve origem na relação de afeto. Mesmo vínculos afetivos que não se enquadrem na tradicional definição de família e entidade familiar não estão isentos da presença de violência. Mesmo quando as partes não compartilham o mesmo domicílio, se houver violência, a mulher deve ser amparada pela Lei Maria da Penha. Para caracterizar a violência como doméstica, é necessário estabelecer um nexo entre a agressão e a situação geradora, ou seja, a relação de afeto deve ser a causa da violência (MISAKA, 2007).
Deve-se ressaltar que a inexistência de um vínculo familiar entre as partes não impede que a violência seja abrangida pela Lei Maria da Penha. Este é mais um conceito progressista, uma vez que os vínculos afetivos não se limitam à esfera da sexualidade. Relações que resultam em hierarquias de poder e opressão têm levado à discussão doutrinária (DIAS, 2019).
Por outro lado, observa-se que alguns operadores do direito têm adotado um discurso que reflete uma espécie de apropriação inadequada das categorias de análise, conceitos e descobertas empíricas acumuladas ao longo de 30 anos de pesquisa sobre as respostas judiciais aos problemas de violência contra as mulheres. A falta de compreensão do debate teórico tem levado a afirmações cada vez mais comuns de que as mulheres não desejam a condenação de seus agressores, o que tem servido de justificativa para o arquivamento de inquéritos e processos e a suspensão de medidas protetivas.
Como resultado, mesmo que em alguns casos isso possa parecer uma abordagem renovada, o que se observa é a adoção de uma política criminal que coloca a proteção da família acima da defesa dos direitos individuais (PASINATO, 2010).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho, exploramos a complexa questão da violência obstétrica e sua relação com a Lei Maria da Penha. Demonstramos que a violência obstétrica é uma realidade perturbadora que afeta um grande número de mulheres em todo o mundo, muitas vezes passando despercebida devido a normas culturais e práticas médicas ultrapassadas. Ao analisar a Lei Maria da Penha, constatamos que essa legislação, criada para combater a violência de gênero, possui um potencial significativo para abranger casos de violência obstétrica.
A Lei Maria da Penha é uma ferramenta poderosa que busca proteger as mulheres contra a violência no âmbito das relações familiares e domésticas. Como discutido, a relação entre a paciente e os profissionais de saúde durante o parto envolve um elemento de afetividade e confiança, o que torna essa situação passível de ser enquadrada nos preceitos da Lei Maria da Penha.
Além disso, argumentamos que a violência obstétrica se encaixa em várias das categorias de violência definidas na Lei Maria da Penha, incluindo violência psicológica, moral e, em alguns casos, violência física. O sofrimento físico e emocional infligido às mulheres durante o parto e o período perinatal não pode ser subestimado, e a legislação existente deve ser usada como uma ferramenta para garantir a proteção dessas mulheres.
Apesar da falta de legislação específica abordando a violência obstétrica, observamos que a jurisprudência tem reconhecido a aplicabilidade da Lei Maria da Penha em casos relacionados a esse tipo de violência. No entanto, é fundamental que haja uma maior conscientização e educação sobre essa questão, tanto entre os profissionais de saúde quanto entre as mulheres, a fim de prevenir e combater a violência obstétrica de maneira mais eficaz.
Portanto, concluímos que a Lei Maria da Penha oferece uma base jurídica sólida para a proteção das mulheres contra a violência obstétrica, desde que sua aplicação seja adequadamente esclarecida e promovida. A conscientização, a educação e a sensibilização de todos os envolvidos são essenciais para garantir que as vítimas de violência obstétrica tenham acesso à justiça e à proteção que merecem. A luta contra a violência obstétrica é uma extensão natural da busca por igualdade de gênero e direitos humanos, e a Lei Maria da Penha pode desempenhar um papel fundamental nessa jornada.
REFERÊNCIAS
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graduanda do curso de direito pela ULBRA AMAZONAS
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMPELO, Allyce Cristinne dos Santos. A possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha em casos de violência obstétrica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2023, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64067/a-possibilidade-de-aplicao-da-lei-maria-da-penha-em-casos-de-violncia-obsttrica. Acesso em: 23 dez 2024.
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