RESUMO: O artigo aborda a Lei Estadual nº 7.753/2017 do Rio de Janeiro, que instituiu a exigência de implantação do Programa de Integridade nas contratações públicas, enfrentando dúvidas que alguns de seus dispositivos geram na prática, do que é exemplo o art. 1º, que traz os valores de alçada para fins de implementação do Programa. Tais valores devem ou não sofrer atualização pelo Decreto federal n° 9.412, de 18 de junho de 2018? Outra questão abordada é se a exigência do Programa pode ser estabelecida contratualmente, mesmo em contratos abaixo do valor de alçada trazido pelo da lei. Enfrenta-se, ainda, qual o valor a ser considerado para fins de alçada: se de um contrato isolado ou da soma daqueles existentes com o mesmo contratado. O artigo também enfrenta a aplicação dos prazos para implantação do Programa de Integridade e eventual possibilidade de sua prorrogação no caso concreto. Por fim, é tratado o regramento trazido pela Nova Lei de Licitações e Contratos.
O presente artigo tem como nascedouro e pano de fundo consulta apresentada e enfrentada no âmbito da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Casa Civil.
Em linhas gerais, o que se colocou naquela ocasião foram dúvidas pertinentes a respeito da então novel Lei Estadual nº 7.753/2017, que trouxe, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a instituição do Programa de Integridade.
A lei em tela foi editada visando o aprimoramento de governança no âmbito do Estado, dado o contexto político e institucional vivenciado à época, com a eclosão da operação denominada Lava Jato.
Com o advento da Lei Federal nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 8.420/2015, restou institucionalizado, no plano federal, balizas e mecanismos de combate à corrupção.
Os programas de integridade, também conhecidos como programas de compliance, são conjuntos de políticas, procedimentos e práticas adotadas por uma organização – empresarial ou não – para promover a conformidade legal e ética, bem como prevenir e detectar casos de corrupção, fraude e outras irregularidades. Esses programas visam criar uma cultura organizacional baseada na transparência, responsabilidade e ética, incentivando o comportamento ético e a conformidade com as leis e regulamentos aplicáveis. Geralmente incluem medidas como treinamento de funcionários, canal de denúncias, avaliação de riscos, monitoramento e auditoria interna, além de penalidades para violações das políticas estabelecidas.
Os programas de integridade são frequentemente adotados por empresas, organizações governamentais e entidades do terceiro setor como parte de suas práticas de governança corporativa e responsabilidade social[1].
Nesse contexto, é crucial que todas as entidades, não apenas as empresas, se esforcem para implementar as mais eficazes técnicas de combate à corrupção e promoção da integridade. Isso inclui cuidados na seleção e supervisão de subcontratados e fornecedores, além da aplicação e respeito a diretrizes éticas aos funcionários.
Assim, considerando a então recente edição da Lei Estadual em tela, surgiram dúvidas que, por meio do presente artigo, e sem ter qualquer pretensão exaustiva sobre o tema, se busca dirimir.
Uma primeira questão que se coloca para analisar a aplicabilidade da Lei estadual n
° 7.753/2017 diz respeito aos valores de alçada por ela trazido, mais precisamente se eles foram afetados pelo Decreto federal n° 9.412, de 18 de junho de 2018.
Isso porque, o Decreto federal n° 9.412, de 18 de junho de 2018, atualiza os valores das modalidades de licitação da Lei n° 8.666/93 com fundamento no art. 120[2] deste mesmo diploma legal. É a sua redação:
Art. 1º Os valores estabelecidos nos incisos I e II do caput do art. 23 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ficam atualizados nos seguintes termos:
I - para obras e serviços de engenharia:
c) na modalidade concorrência - acima de R$ 3.300.000,00 (três milhões e trezentos mil reais);
II - para compras e serviços não incluídos no inciso I:
c) na modalidade concorrência - acima de R$ 1.430.000,00 (um milhão, quatrocentos e trinta mil reais).
Por sua vez, o art. 1º da Lei 7.753/2017 dispõe que:
Art. 1º - Fica estabelecida a exigência do Programa de Integridade às empresas que celebrarem contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado com a administração pública direta, indireta e fundacional do Estado do Rio de Janeiro, cujos limites em valor sejam superiores ao da modalidade de licitação por concorrência, sendo R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) para obras e serviços de engenharia e R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços, mesmo que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias.
A atualização levada a cabo pelo decreto federal trouxe, assim, certa ambiguidade à lei estadual, que alude, ao mesmo tempo, ao limite da “modalidade de licitação por concorrência” (hoje, de R$ 3.300.000,00 e R$ 1.430.000,00, de acordo com o objeto) e ao seu valor nominal histórico (R$ 1.500.000,00 e R$ 650.000,00, respectivamente), defasado após a atualização.
Como, então, interpretar o art. 1° da Lei n° 7.753/17? Deve-se prestigiar o real e atual valor da modalidade licitatória de concorrência ou ficar com o valor nominal previsto no art. 1° quando da edição da lei estadual?
A nosso sentir, a primeira solução se revela como a mais adequada. Para perquirir o sentido da norma, aqui, deve-se prestigiar o critério teleológico em detrimento do critério literal. O objetivo da norma foi o de vincular a aplicabilidade da exigência ao valor da modalidade licitatória, e não a um valor em específico.
Nesse sentido, a técnica legislativa empregada no diploma estadual (de menção primeiro ao valor da modalidade, e depois a valores nominais segundo o tipo de objeto) não significa uma opção absoluta por aqueles valores nominais como valor de alçada; tinha, na verdade, o objetivo de dar maior clareza sobre qual seria exatamente o limite da modalidade concorrência.
Não se perca de vista, aliás, que, desde a edição da Lei n° 8.666, há mais de um quarto de século, jamais o Poder Executivo federal havia feito uso da atualização prevista no art. 120 – o que pode ter dessensibilizado os operadores do direito, e também o legislador estadual, à possibilidade de que isso viesse a ocorrer. Em um cenário de atualizações periódicas, é de se supor que o legislador estaria mais propenso ao emprego de técnica legislativa aberta, sem alusão a valores nominais.
Portanto, diante da antinomia aparente entre os comandos do art. 1°, deve prevalecer a primeira parte do dispositivo, ou seja, o valor da “modalidade de licitação por concorrência” tal como atualizado na forma do art. 120 da Lei n° 8.666/93.
Por outro lado, ainda que o contrato não atinja o valor de alçada, cumpre verificar se seria possível a exigência do estabelecimento do Programa de Integridade não por força da Lei, mas sim pela disposição das partes a partir de previsão contratual. Ou seja, ainda que o dever de implantação do Programa de Integridade não decorra diretamente da lei, seria possível sustentar que tal dever pode eventualmente decorrer de expressa previsão contratual nesse sentido?
De fato, nos parece lícito à Administração Pública, dentro de margem discricionária a ser exercida com motivação, definir diretamente no contrato administrativo – isso é, mesmo à míngua de previsão legal expressa – as obrigações que seus contratados terão de cumprir.
Naturalmente, é igualmente lícito que o particular interessado, no exercício de sua autonomia da vontade, decida não participar de licitação para formação de contrato ou não celebrar contratação direta que contenha obrigação que ele repute irrazoável ou incumprível.
Quer isso dizer que, ainda que o contrato em análise não envolva quantia superior ao da concorrência como modalidade de licitação, a atrair automaticamente a incidência da Lei n
° 7.753/2017, o Estado do Rio de Janeiro, em exercício legítimo de sua discricionariedade administrativa, poderia contratualmente prever a obrigatoriedade de adoção do Programa de Integridade na forma da Lei n
° 7.753/2017.
Assentada essas premissas iniciais, cumpre enfrentar o ponto seguinte: qual o critério adequado para a verificação dos valores de alçada previstos no art. 1º da Lei n° 7.753/2017: o valor de cada contrato celebrado com determinado contratado ou o valor somado do conjunto de contratos firmados com a mesma pessoa?
O art. 1º alude a “contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado [sic]”, sempre no singular, a denotar que a análise de sua subsunção ou não ao regramento da Lei n° 7.753/2017 deve ser feita isoladamente, em cada contrato, e não levando em conta o conjunto de contratos e o somatório de seus valores.
Com efeito, utiliza a forma singular desses termos, indicando claramente a necessidade de analisar cada um desses instrumentos de maneira isolada. Essa escolha linguística sugere que a avaliação de sua conformidade com as disposições da Lei n° 7.753/2017 deve ser conduzida individualmente, sem considerar a interdependência entre diferentes contratos ou a soma de seus valores. Em outros termos, a legislação requer uma abordagem discriminada, destacando a importância de examinar minuciosamente cada instrumento em separado para determinar sua aderência aos princípios e requisitos estabelecidos pela referida lei.
Além dessas questões, passa-se a avaliar a viabilidade jurídica da prorrogação do prazo de 180 dias previsto no art. 5º para a implantação do Programa de Integridade.
Em nosso entendimento, a resposta deve ser negativa.
Inicialmente, impõe-se constatar que não há qualquer previsão na lei estadual autorizando a prorrogação do prazo estabelecido no art. 5º. Indo além, todavia, o que se percebe de uma leitura sistemática do conjunto da Lei n° 7.753/2017 é que o desenho institucional conferido pelo legislador estadual ao Programa de Integridade acaba por não conferir qualquer margem de discricionariedade ao gestor público para a flexibilização de seus termos, nisso incluído o prazo a ser observado pelo contratado para a instalação do Programa.
Essa ausência de discricionariedade administrativa se evidencia, sobretudo, no art. 6º do diploma legal, segundo o qual o descumprimento da exigência prevista na lei acarretará a aplicação de multa de 0,02% por dia de descumprimento sobre o valor do contrato. Vejamos:
Art. 6º - Pelo descumprimento da exigência prevista nesta Lei, a Administração Pública direta, indireta e fundacional do Estado do Rio de Janeiro aplicará à empresa contratada multa de 0,02% (dois centésimos por cento), por dia, incidente sobre o valor do Contrato. §1º - O montante correspondente a soma dos valores básicos das multas moratórias será limitado a 10% (dez por cento) do valor do contrato.
§2º - O cumprimento da exigência da implantação fará cessar a aplicação da multa.
§3º - O cumprimento da exigência da implantação não implicará ressarcimento das multas aplicadas.
De fato, o comando imperativo do dispositivo [“a Administração Pública direta, indireta e fundacional do Estado do Rio de Janeiro aplicará à empresa contratada multa (...)”] descortina a natureza obrigatória e vinculada da imposição de uma sanção em específico se não observado o prazo, não parecendo haver qualquer espaço para ponderação do gestor quanto à dosimetria ou mesmo não aplicação da sanção à luz de circunstâncias específicas. Nesse ponto, portanto, a lei estadual se diferencia do regime do art. 87 e ss. da Lei n° 8.666/93, que faculta ao administrador alguma margem de decisão quanto ao tipo e gradação da sanção.
Por fim, cumpre destacar que a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) trouxe importante destaque aos programas de integridade, especialmente ao exigir, em seu art. 25, §4º, a sua implantação pelo vencedor da licitação relativa a obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, assim compreendidos os casos que superam R$ 228.833.309,04 (duzentos e vinte e oito milhões oitocentos e trinta e três mil trezentos e nove reais e quatro centavos).
Não se trata, portanto de um requisito de habilitação, exigível apenas do licitante vencedor, sendo certo, ademais, que recai sobe o referido valor de alçada dúvida sobre a sua natureza enquanto regra geral ou apenas federal e, portanto, aplicável apenas às contratações da União.
E justamente por compreender o valor de alçada trazido pela Lei nº 14.133 como norma federal e não geral é que o enfrentamento das questões acima, relativas à Lei n° 7.753/2017, se revelam pertinentes e atuais, já que, no nosso entendimento, a NLL não teve o condão de afastar a sua vigência.
Em suma, é possível sintetizar as seguintes conclusões trazidas ao longo do presente artigo:
i) a exigência de Programa de Integridade prevista no art. 1° da Lei n° 7.753/2017 aplica-se às contratações cujos limites em valor sejam superiores ao da modalidade de licitação por concorrência atualizado na forma do art. 120 da Lei n° 8.666/93, e não pelo valor nominal previsto no mesmo artigo;
ii) a verificação do enquadramento na Lei n° 7.753/2017 deve ser feita em cada contrato, considerado seu valor isoladamente, e não levando em conta o conjunto de contratos com uma mesma pessoa e o somatório de seus valores;
iii) é lícito ao gestor público, no exercício legítimo de sua discricionariedade administrativa, prever no contrato administrativo a obrigatoriedade de o contratado implantar Programa de Integridade na forma da Lei n° 7.753/2017, independentemente do valor contratual;
iv) não é possível a prorrogação do prazo para implantação do Programa de Integridade de que trata o art. 5º da Lei n° 7.753/2017, uma vez que a lei não previu tal possibilidade e instituiu um regime de apenamento vinculado, que subtraiu do gestor público espaço de discricionariedade tanto para decidir sobre a conveniência de aplicação e a dosimetria da multa quanto para valoração das razões de descumprimento da obrigação.
v) embora a Lei nº 14.133 tenha trazido importante destaque aos programas de integridade no âmbito das contratações públicas, o valor de alçada por ela trazido não deve ser compreendido como fruto do exercício pela União da edição de normas gerais, não afastando, portanto, a regulamentação sobre a matéria trazida anteriormente pela Lei n° 7.753/2017.
[1] Vieira, James Batista Governança, gestão de riscos e integridade / James Batista Vieira, Rodrigo Tavares de Souza Barreto -- Brasília: Enap, 2019. 73/74 pág.
[2] Art. 120. Os valores fixados por esta Lei poderão ser anualmente revistos pelo Poder Executivo Federal, que os fará publicar no Diário Oficial da União, observando como limite superior a variação geral dos preços do mercado, no período.
FGV Direito Rio. Pós-graduado e advogado
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Sérgio Bousquet. Programa de integridade no âmbito do Estado do Rio de Janeiro: Um panorama sobre a Lei Estadual nº 7.753/2017 e suas perplexidades Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 fev 2024, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64726/programa-de-integridade-no-mbito-do-estado-do-rio-de-janeiro-um-panorama-sobre-a-lei-estadual-n-7-753-2017-e-suas-perplexidades. Acesso em: 26 dez 2024.
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