RESUMO: O presente trabalho tem por escopo analisar a natureza hedionda (ou não) da figura delitiva híbrida denominada homicídio qualificado-privilegiado, tendo em vista o caráter hediondo do homicídio qualificado (art. 121, §2º, CPB e art. 1º, I, Lei nº. 8.072/90) e a ausência de tal caráter no homicídio privilegiado (art. 121, §1º, CPB). Para tanto, foram realizados ensaios teóricos mediante pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais acerca dos entendimentos emanados dos doutrinadores penalistas brasileiros e das Cortes Judiciárias Pátrias, perpassando-se pelos principais fundamentos de ambas as correntes antagônicas, ressaltando-se os pontos fundamentais de cada uma. Ao final, joeirando-se os argumentos de tais correntes, concluiu-se pela natureza não hedionda do homicídio qualificado-privilegiado uma vez que tal figura híbrida não se encontra contemplada no rol taxativo do art. 1º da Lei nº. 8.072/90, sendo adotado no direito penal brasileiro o sistema legal para a definição da hediondez do delito que exige a existência de previsão legislativa expressa nesse sentido, além do que o caráter hediondo, isto é, repugnante, vil, seria incompatível com a natureza do privilégio que decorre da motivação do delito, sendo esta, assim, de ordem subjetiva (crime praticado por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção), sendo a qualificação da infração penal oriunda tão somente dos meios com o qual o crime foi praticado (qualificadora objetiva), devendo, à luz da exegese do disposto no art. 67 do CP, preponderar, em caso de circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao agente, as que resultam dos motivos determinantes do crime.
PALAVRAS-CHAVE: Homicídio Qualificado-Privilegiado. Figura Híbrida. Hediondez. Incompatibilidade. Sistema Legal.
ABSTRACT: The purpose of this paper is to analyze the heinous (or not) nature of the hybrid criminal figure called qualified-privileged homicide, considering the heinous character of qualified homicide (art. 121, §2, CP and art. 1, I, Law 8.072/90) and the absence of such a character in privileged homicide (art. 121, §1º, CP). For this, theoretical essays were conducted through bibliographical and jurisprudential research on the understandings emanating from the Brazilian penal indoctrinators and the Judicial Courts of the Country, passing through the main foundations of both antagonistic currents, emphasizing the fundamental points of each one. In the end, by basing the arguments of these currents, it was concluded by the unhealthy nature of the qualified-privileged homicide since such a hybrid figure is not contemplated in the exhaustive list of art. 1 of Law no. 8.072/90, being adopted in the Brazilian penal law the legal system for the definition of the heinousness of the crime that demands the existence of express legislative provision in this sense, besides that the heinous character, that is, disgusting, vile, would be incompatible with the nature privilege that derives from the motivation of the offense, which is, therefore, subjective (crime committed on the grounds of relevant social or moral value, or under the domain of violent emotion), and the classification of criminal offense derives only from the means with which which the crime was committed (objective qualifier), and should, in light of the exegesis of the provisions of art. 67 of the CP, to prevail, in case of circumstances favorable and unfavorable to the agent, those that result from the motives determining the crime.
KEYWORDS: Qualified-Privileged Homicide. Hybrid Figure. Heinousness. Incompatibility. Legal System.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA. 2.1 A figura delitiva híbrida denominada “homicídio qualificado-privilegiado”. 2.2 Sistemas para a definição da natureza hedionda de um delito e suas consequências práticas. 2.3 Análise das correntes existentes acerca da hediondez do “homicídio qualificado-privilegiado”. 3 METODOLOGIA DE PESQUISA. 4 ANÁLISE DOS RESULTADOS. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Em que pese alguma celeuma doutrinária outrora existente acerca da possibilidade de ocorrência de uma figura delitiva híbrida denominada “homicídio qualificado-privilegiado”, sendo, a um só tempo, enquadrada na tipificação penal inserta no art. 121, §2º (homicídio qualificado) e art. 121, §1º (homicídio “privilegiado”), ambos do Código Penal Brasileiro (CPB – Decreto-Lei nº. 2.848/40), hodiernamente, há forte entendimento dominante na doutrina especializada e na jurisprudência acerca da possibilidade de reconhecimento da citada figura híbrida, desde que a qualificadora tenha natureza objetiva, na medida em que o privilégio tem natureza subjetiva, sendo, assim, incompatível com as qualificadoras também subjetivas[1].
Superada esta quaestio, exsurge a discussão acerca da hediondez do homicídio qualificado-privilegiado, tendo em vista que a referida figura híbrida se origina da junção dos delitos previstos no art. 121, §2º (homicídio qualificado: que possui natureza hedionda ex vi do disposto no art. 1º, I, da Lei nº. 8.072) e no art. 121, §1º (homicídio privilegiado: crime comum), ambos do CPB, surgindo, para tanto, duas correntes antagônicas, uma defendendo a hediondez do delito em questão e outra, sustentando a ausência de tal caráter.
O presente trabalho tem por escopo, justamente, analisar, mediante ensaio teórico, os principais fundamentos doutrinários e jurisprudenciais de ambas as correntes, de modo a verificar qual dos entendimentos deve preponderar, considerando holisticamente o sistema jurídico pátrio.
Ressalte-se, por fim, que o tema possui ampla relevância prática, na medida em que a caracterização de um delito como crime hediondo, por estar elencado na Lei nº. 8.072/90, atrai para o agente diversos efeitos mais gravosos, tais como, pena cumprida obrigatoriamente em regime inicial fechado, proibição de concessão de anistia, graça ou indulto, além da exigência de cumprimento de maiores percentuais da pena para a obtenção da progressão de regime em relação aos delitos comuns.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 A figura delitiva híbrida denominada “homicídio qualificado-privilegiado”
A figura delitiva híbrida denominada “homicídio qualificado-privilegiado” surge da combinação fática das hipóteses previstas nos §§ 1º e 2º do Código Penal, que prescrevem, respectivamente, o “homicídio privilegiado” e o “homicídio qualificado”:
Art. 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II - por motivo fútil;
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
Feminicídio
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino;
VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição:
VIII - com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido:
Homicídio contra menor de 14 (quatorze) anos
IX - contra menor de 14 (quatorze) anos:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
§ 2º-B. A pena do homicídio contra menor de 14 (quatorze) anos é aumentada de:
I - 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é pessoa com deficiência ou com doença que implique o aumento de sua vulnerabilidade;
II - 2/3 (dois terços) se o autor é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela;
III - 2/3 (dois terços) se o crime for praticado em instituição de educação básica pública ou privada.
Apesar da existência de vozes em sentido contrário[2], é entendimento doutrinário amplamente dominante a possibilidade de configuração prática do referido delito híbrido, desde que as qualificadoras sejam objetivas, isto é, refiram-se, sobretudo, aos meios de execução do delito ou à condição de infante da vítima (incisos III, IV, VIII e IX, §2º, art. 121, CP), uma vez que o privilégio possui natureza subjetiva, por representar os motivos pelos quais o agente cometeu o crime, de sorte que seria incompatível com a existência de qualificadora subjetiva, eis que não seria possível a prática de um homicídio, a um só tempo, por relevante valor social (homicídio privilegiado) e por motivo torpe, por exemplo.
Nesse sentido é a lição de Lima (2021) e Cunha (2020), e também de Nucci (2023):
Tem sido posição predominante na doutrina e na jurisprudência a admissão da forma privilegiada-qualificada, desde que exista compatibilidade lógica entre as circunstâncias. Como regra, pode-se aceitar a existência concomitante de qualificadoras objetivas com as circunstâncias legais do privilégio, que são de ordem subjetiva (motivo de relevante valor e domínio de violenta emoção). O que não se pode acolher é a convivência pacífica das qualificadoras subjetivas com qualquer forma de privilégio, tal como seria o homicídio praticado, ao mesmo tempo, por motivo fútil e por relevante valor moral.
Tecidas estas breves considerações acerca da conceituação e da admissão da figura híbrida “homicídio privilegiado-qualificado” no direito penal brasileiro, tem-se o substrato necessário para se adentrar à discussão da possível hediondez de tal delito, considerando a presença de tal caráter no homicídio qualificado e, por outro lado, a ausência deste no homicídio privilegiado, que juntos compõem a citada figurava delitiva derivada.
Antes, porém, cumpre discorrer, ainda que brevemente, acerca dos sistemas para a definição da natureza hedionda de um delito e suas consequências práticas.
2.2 Sistemas para a definição da natureza hedionda de um delito e suas consequências práticas
Consoante leciona a doutrina especializada, existem três sistemas para a definição da natureza hedionda de determinado delito, quais sejam, a) Sistema Legal; b) Sistema Judicial; e, c) Sistema Misto.
Nas palavras de Lima (2021), no Sistema Legal
cabe ao legislador enunciar, de forma exaustiva (numerus clausus), os crimes que devem ser considerados hediondos. Assim, por meio de um rol taxativo de crimes, não se confere ao juiz qualquer discricionariedade para atestar a natureza hedionda do delito. Em outras palavras, se o crime praticado pelo agente constar do rol de crimes hediondos, outro caminho não há senão o reconhecimento de sua natureza hedionda, ainda que, no caso concreto, a conduta delituosa não se revele tão gravosa. Logo, mesmo que o crime não se revele “repugnante”, “asqueroso”, “sórdido”, “depravado”, “horroroso” ou “horrível”, se for etiquetado como crime hediondo pelo legislador, deve ser tratado como tal pelo magistrado.
Acerca do Sistema Judicial, lecionam Roque, Távora e Alencar (2016) que
neste sistema, cabe ao julgador, no caso concreto, definir se o crime é hediondo ou não. O magistrado, portanto, não parte de um rol de crimes estabelecido em lei. Ao revés, é no caso concreto que, ao analisar a gravidade da conduta, a maior ou menor reprovabilidade do autor do fato, e demais particularidades, que entenderá estar ou não presente a natureza hedionda do crime.
Por fim, segundo ensina Habib (2023), o Sistema Misto “preconiza que o legislador estabelece, em um rol exemplificativo, os delitos que são considerados hediondos, permitindo ao juiz, por critério de interpretação analógica, qualificar outros delitos como sendo igualmente hediondos”.
Neste ponto, insta consignar que, conforme lição da doutrina especializada, o sistema adotado pela legislação penal brasileira para definir a hediondez de determinado delito é o Sistema Legal. Assim, consoante o ensinamento de Lima (2021),
de modo a saber se uma infração penal é (ou não) hedionda, incumbe ao operador tão somente ficar atento ao teor do art. 1º da Lei nº. 8.072/90; se o deito constar do rol taxativo de crimes ali enumerados, a infração será considerada hedionda, sujeitando-se a todos os gravames inerentes a tais infrações penais, independentemente da aferição judicial de sua gravidade concreta. Lado outro, se a infração penal praticada pelo agente não constar do art. 1º da Lei nº. 8.072/90, jamais será possível considerá-la hedionda, ainda que as circunstâncias fáticas do caso concreto se revelem extremamente gravosas. Afinal, por força da adoção do sistema legal, os crimes hediondos constam do rol taxativo do art. 1º da Lei nº. 8.072/90, que não pode ser ampliado com base na analogia nem por meio de interpretação extensiva.
Isso posto, é imperioso que se registre que, conforme bem elucidado por Capez (2023), a distinção entre crime comum e crime hediondo
é de suma importância na medida em que, a partir do momento em que um crime é enquadrado como hediondo, o indivíduo passa a sofrer os efeitos da Lei dos Crimes Hediondos (progressão de regime desde que cumpridos 40% da pena, se primário; 50% da pena, se condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário; 60% se reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado; 70% se for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte (art. 112 da LEP – com redação dada pela Lei n. 13.964/2019); proibição de concessão de anistia, graça ou indulto).
Logo, a classificação de determinada infração penal como hedionda, na prática, atrai inexoravelmente para o agente em questão, todas as peculiaridades gravosas decorrentes da Lei nº. 8.072/90, tais como vedação à concessão de anistia, graça, indulto e fiança (art. 2º, I e II), cumprimento da pena em regime inicial fechado (art. 2º, §1º) e necessidade de cumprimento de parcela maior de pena para progressão de regime (40% da pena, se primário; 50% da pena, se condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário; 60% se reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado; 70% se for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte [art. 112 da LEP – com redação dada pela Lei n. 13.964/2019]).
Daí exsurge a relevância prática de se perquirir se o “homicídio qualificado-privilegiado” é (ou não) crime hediondo, tendo em vista que o homicídio qualificado o é (art. 1º, I, Lei nº. 8.072/90), ao passo que o homicídio privilegiado não possui natureza hedionda.
2.3 Análise das correntes existentes acerca da hediondez do “homicídio qualificado-privilegiado”
Consoante ressalta a literatura jurídica penal, há duas correntes antagônicas acerca da natureza hedionda da citada figura delitiva híbrida denominada “homicídio qualificado-privilegiado”, uma defendendo a hediondez de tal delito e outra, em sentido diametralmente oposto, sustentando a inexistência de tal caráter.
A primeira corrente aqui tratada, amplamente majoritária, defende a inexistência de caráter hediondo no “homicídio qualificado-privilegiado” sob três fundamentos basilares: i) ausência de previsão expressa da referida figura híbrida no rol do art. 1º da Lei nº.: 8.072/90; ii) incompatibilidade da hediondez com um crime praticado por relevante valor moral ou social; e, iii) à luz da exegese do art. 67 do Código Penal, analogicamente, no concurso de circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao agente, devem prevalecer aquelas resultam dos motivos determinantes do crime.
Com efeito, ensina Lima (2021) que o homicídio qualificado-privilegiado jamais poderá ser considerado hediondo por três razões:
Primeiro, porque o art. 1º, I, da Lei nº. 8.072/90, com redação dada pela Lei nº. 13.142/15, é claro ao afirmar que somente serão rotulados como hediondos o homicídio simples (art. 121) praticado em atividade típica de grupo de extermínio, e o homicídio qualificado (art. 121, §2º, I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII). Não há, portanto, qualquer referência ao homicídio privilegiado. Segundo, porque seria absolutamente incoerente rotular como hediondo (leia-se, repugnante) um crime de homicídio cometido, por exemplo, mediante valor moral ou social. Por fim, como as causas de diminuição de pena enumeradas no art. 121, §1º do CP, têm natureza subjetiva, e as qualificadoras porventura reconhecidas neste homicídio qualificado-privilegiado devem, obrigatoriamente, ter natureza objetiva, há de se reconhecer a natureza preponderante daquelas, aplicando-se raciocínio semelhante àquele constante do art. 67 do Código Penal, que diz que, no concurso de circunstâncias agravantes e atenuantes, devem preponderar aquelas que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência.
Como adeptos desta corrente, podem ser citados, no campo dos doutrinadores, dentre muitos outros, Avelar (2023), Capez (2023), Cunha (2020), Estefam (2023), Gonçalves (2023), Habib (2023), Nucci (2023) e Roque, Távora e Alencar (2016).
Cumpre salientar, neste ponto, que a referida corrente doutrinária também ecoa nos tribunais pátrios:
APELAÇÃO CRIMINAL - HOMICÍDIO QUALIFICADO PRIVILEGIADO - CRIME NÃO ELENCADO NO ROL DOS HEDIONDOS - REGIME PRISIONAL - ABRANDAMENTO NECESSÁRIO. I- A Lei nº 8.072/90 não faz qualquer referência a respeito da forma híbrida do "homicídio qualificado privilegiado", tratando-se de situação anômala não abarcada pelo rol taxativo do art. 1º do mencionado diploma legal, o que, em atenção ao princípio da legalidade, impede interpretação extensiva em desfavor do réu, com vistas a qualificar tal crime como hediondo. II- Na fixação do regime de cumprimento da pena, deve o Magistrado examinar as peculiaridades de cada caso, atentando-se para as disposições dos §§ 2º e 3º do art. 33 do CP, sob pena de ofensa ao princípio da individualização. (TJMG. Apelação Criminal nº.: 1.0105.16.037941-5/001) (sem grifos no original)
EXECUÇÃO PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. COMUTAÇÃO DA PENA. CRIME HEDIONDO. Por incompatibilidade axiológica e por falta de previsão legal, o homicídio qualificado - privilegiado não integra o rol dos denominados crimes hediondos. Recurso não conhecido. (STJ. Recurso Especial nº.: 180694/PR) (sem grifos no original)
PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. REGIME PRISIONAL. CRIME HEDIONDO. 1. Ante a inexistência de previsão legal, bem como o menor desvalor da conduta em comparação ao homicídio qualificado, consumado ou tentado, o homicídio qualificado-privilegiado não pode ser considerado como crime hediondo. Precedente. 2. Pedido de Habeas Corpus deferido, para reconhecer ao paciente o direito à progressão do regime prisional. (STJ. Habeas Corpus nº.: 13001/SP) (sem grifos no original)
No mesmo sentido, também foi a conclusão adotada nos julgamentos dos Habeas Corpus nºs.: 18261/RJ, 23408/MT, 23973/MS, 41579/SP e 85348/RS.
Contudo, em que pese amplamente majoritária, a citada corrente não se mostra indene a críticas doutrinárias de outras vozes no cenário nacional que, compondo uma corrente em sentido completamente antagônico, advogam pela hediondez do “homicídio qualificado-privilegiado”, nos termos a seguir elucidados.
Conforme ressalta Masson (2022)
para esta corrente, o homicídio híbrido é crime hediondo, pois a qualificadora lhe confere inevitavelmente esse perfil, enquanto o privilégio limita-se, unicamente, a diminuir a pena de 1/6 a 1/3. Seria um homicídio qualificado e hediondo, embora com pena reduzida.
Nesta linha de intelecção, cumpre trazer à tona a lição de Greco (2023) que ao questionar se, na referida figura híbrida, o privilégio teria o condão de afastar a natureza hedionda das qualificadoras, assevera que
tecnicamente, a resposta teria que ser negativa, pois a Lei nº. 8.072/90 não faz qualquer tipo de ressalva que nos permita tal ilação. Na verdade, diz textualmente que o homicídio qualificado goza de status de infração penal de natureza hedionda. O chamado privilégio não é, nada mais, do que uma simples causa de redução de pena, a ser analisada no terceiro momento do critério trifásico, previsto no art. 68 do Código Penal. Assim, sendo reconhecido o homicídio qualificado, deverá o julgador fixar a pena-base levando em conta as balizas mínima (12 anos) e máxima (30 anos) previstas no §2º do art. 121 do estatuto repressivo. Somente no terceiro momento, quando da aplicação das causas de diminuição de pena, é que fará incidir o percentual de redução de um sexto a um terço. Como se percebe, a infração penal não deixa de ser qualificada em razão de uma minorante (privilégio).
Vale dizer, para esta corrente o fato de o homicídio híbrido permitir a aplicação da minorante prevista no §1º do art. 121 do Código Penal, não repele, por si só, a natureza hedionda do homicídio qualificado, tendo em vista que não se trata, o chamado “homicídio privilegiado”, de um delito autônomo, mas, antes, tão somente uma causa especial de diminuição de pena a ser aplicada apenas na terceira fase da dosimetria da pena após, no caso da figura híbrida, serem consideradas, na primeira fase, as balizas do homicídio qualificado (pena abstrata de 12 a 30 anos).
Neste ponto, ademais, cumpre ressaltar a lição de Pierangeli (2007) segundo a qual:
o homicídio privilegiado não constitui um crime autônomo, mas sim um simples caso de diminuição de pena. Apresenta tão somente circunstâncias que se agregam ao tipo fundamental, básico ou primário: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.
Assim sendo, o “homicídio qualificado-privilegiado” seria sim um crime hediondo, contudo, com a diminuição de pena de um sexto a um terço ex vi do disposto no art. 121, §1º do estatuto repressivo pátrio.
Registre-se, por fim, que, conforme bem elucidado por Cunha (2020), a referida corrente, ademais, não reconhece a aplicabilidade do art. 67 do Código Penal na solução da citada celeuma, eis que sustentam que o referido dispositivo se aplica tão somente para agravantes e atenuantes.
3 METODOLOGIA DE PESQUISA
Como visto, o presente trabalho consistiu em ensaio teórico sobre o problema proposto, a saber, a natureza (não) hedionda do “homicídio qualificado-privilegiado”, baseando-se na análise e cotejo das posições doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema.
4 ANÁLISE DOS RESULTADOS
Cotejando-se os principais fundamentos de ambas as correntes acima analisadas, infere-se, numa apreciação estanque e pontual, que a razão assistiria aos que defendem a hediondez do homicídio híbrido, haja vista que o “homicídio qualificado-privilegiado” não se consubstancia numa figura típica autônoma, mas tão somente, em verdade, num homicídio qualificado (art. 121, §2º, CP) com uma causa especial de diminuição de pena (art. 121, §1º, CP). Assim, o referido crime haveria de ser hediondo, visto que previsto no rol taxativo de tais crimes, constante no art. 1º da Lei nº.: 8.072/90, sendo adotado no ordenamento jurídico pátrio o sistema legal para definição de hediondez dos delitos. Ademais, sendo adotado o sistema legal, não haveria se falar em qualquer valoração axiológica de incompatibilidade do “privilégio” com a natureza hedionda das qualificadoras, pois não há espaço para tal juízo próprio dos sistemas judicial e misto, no sistema legal. Ressalte-se, por fim, que numa análise puramente técnica, também não se sustentaria a interpretação analógica da norma insculpida no art. 67 do Código Penal para dirimir a controvérsia ora posta em destaque, eis que a referida norma trata, especificamente, sobre agravantes e atenuantes.
Não obstante, é cediço que no mundo complexo e multifatorial das ciências jurídicas, mormente no campo do Direito Penal, que é a ultima ratio, não se pode admitir interpretações e análises estanques, meramente pontuais e dissociadas de uma visão total da universalidade de leis (princípios e regras) vigentes que formam um sistema jurídico-legal único, harmônico e coeso. Assim sendo, analisando-se a quaestio à luz de tais balizas interpretativas, exsurge inconteste a necessidade de conclusão pela não hediondez do homicídio híbrido, na medida em que há que se ter em mente a mens legis que culminou com a previsão legal da minorante no §1º do Código Penal, que se mostra inevitavelmente incompatível com a natureza hedionda. Ressalte-se, ainda, que inexiste previsão legal, seja da figura híbrida, ou do homicídio privilegiado, no rol dos crimes hediondos. Outrossim, urge consignar que em virtude do Princípio in dubio pro reu, há sempre de ser aplicada a norma e/ou a intepretação mais favorável ao agente, que, in casu, se traduz na conclusão de ausência de caráter hediondo no homicídio híbrido, sem olvidar, ademais, que o disposto no art. 67 do Código Penal constitui sim um parâmetro válido para solucionar o imbróglio, de modo a se dar maior relevo às circunstâncias que resultam dos motivos determinantes do crime, que, no caso em comento, faz com que o privilégio se sobreponha à hediondez e a repila. Não à toa, esta é a conclusão da maioria esmagadora da doutrina e jurisprudência das Cortes Pátrias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, o presente trabalho teve por escopo a análise da natureza hedionda (ou sua ausência) na figura delitiva híbrida denominada “homicídio qualificado-privilegiado”, oriunda da conjugação fática das condutas tipificadas no art. 121, §1º (homicídio privilegiado) e §2º (homicídio qualificado), ambos do Código Penal. Tal discussão se origina em função de que o referido crime híbrido se forma a partir da junção de um delito hediondo (homicídio qualificado) e de um crime comum (homicídio privilegiado), havendo, ao menos em tese, certa dúvida sobre qual natureza deve prevalecer (hedionda ou comum).
Consoante elucidado, o tema possui grande relevância prática, uma vez que a classificação do delito como hediondo atrai inexoravelmente a aplicação de regras penais bem mais severas do que aquelas previstas para os autores de crimes comuns.
Após a tessitura de noções introdutórias e essenciais para a adequada compreensão do tema objeto do presente trabalho, passou-se a analisar as correntes existentes acerca da quaestio, sendo uma entendendo que o homicídio híbrido é sim crime hediondo e outra, advogando que não o é, com a apresentação dos principais fundamentos de cada uma delas e seu eco na doutrina e na jurisprudência.
Como principais argumentos da corrente que afasta a hediondez de tal delito, podem ser citados: i) ausência de previsão legal específica da figura híbrida no art. 1º da Lei nº. 8.072/90; ii) incompatibilidade entre a hediondez e o “privilégio” (crime cometido por relevante valor moral ou social); e, iii) que, à luz do que se infere no disposto no art. 67 do CP, no concurso de situações favoráveis e desfavoráveis ao agente, devem prevalecer aquelas que decorram dos motivos determinantes do crime, o que, no caso, faria com que o “privilégio” preponderasse sobre a qualificadora (que atrai o caráter hediondo).
Por outro norte, como principais argumentos da corrente que entende se tratar o “homicídio qualificado-privilegiado” crime hediondo, podem ser citados: i) o “privilégio”, em verdade, é apenas uma causa especial de diminuição de pena, a ser aplicada na terceira fase da dosimetria desta, que não retira a natureza hedionda própria e indissociável do homicídio qualificado; e, ii) o disposto no art. 67 do Código Penal possui aplicação restrita aos seus termos expressos, aplicando-se, assim, tão somente ao caso de agravantes e atenuantes.
Assim sendo, joeirando tais argumentos de ambas as correntes, concluiu-se pela não hediondez do homicídio híbrido, eis que se mostra a conclusão hermenêutica que mais se coaduna com o ordenamento jurídico-penal brasileiro como um todo, harmônico e coeso, notadamente, por ser mais benéfica ao agente, pela ausência de previsão específica de tal figura híbrida no rol taxativo do art. 1º da Lei nº. 8.072/90 e, por fim, por ser a essência e o espírito do “privilégio” completamente incompatíveis com a hediondez delitiva.
Não obstante, cumpre salientar, por fim, que ambas as posições não se mostram imunes a críticas, assim como que, com o passar do tempo e a dinamicidade da sociedade, tal quadro pode ser inteiramente repaginado, haja vista que inexiste óbice, ao menos em tese, para o surgimento de um novo entendimento no futuro.
REFERÊNCIAS
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Advogado (OAB/MG 167.812). Bacharel em Direito pela Faculdade Alis de Bom Despacho (2016). Especialista em Direito Civil e Processual Civil (2017) e em Direito Penal e Processual Penal (2019) pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais - FEAD e em Direito da Família e em Docência no Ensino Superior (2019), pela UCAM - Universidade Candido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROSA, Agostinho Emanoel Rodrigues. A natureza (não) hedionda do homicídio qualificado-privilegiado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 mar 2024, 04:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64861/a-natureza-no-hedionda-do-homicdio-qualificado-privilegiado. Acesso em: 25 dez 2024.
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