RESUMO: O presente artigo se debruça sobre a temática dos danos causados por atos legislativos e por atos dos parlamentares no exercício da função legislativa, refletindo sobre a possibilidade ou impossibilidade de responsabilidade civil do Estado em ambas as hipóteses. Promove-se uma análise à luz da imunidade parlamentar, das teorias da responsabilidade estatal e do tema de Repercussão Geral atualmente pendente de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Atos legislativos. Atos parlamentares. Imunidade material. Dano. Responsabilidade civil do Estado.
ABSTRACT: This article focuses on the issue of damage caused by legislative acts and by acts of parliamentarians in the exercise of their legislative function, reflecting on the possibility or impossibility of the State's civil responsibility in both cases. An analysis is promoted in light of parliamentary immunity, theories of state responsibility and the topic of General Repercussion currently pending judgment at the Federal Supreme Court.
Keywords: Legislative acts. Parliamentary acts. Parliamentary immunity. Damage. State’s civil responsibility.
1. INTRODUÇÃO
A liberdade de expressão é direito fundamental conferido a todos pelo art. 5º, IV, da Constituição da República de 1988. Os integrantes do Poder Legislativo, no exercício de suas funções, possuem uma liberdade de expressão qualificada, com ainda mais garantias do que as reconhecidas às demais pessoas. Trata-se da chamada imunidade material, pela qual os parlamentares são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos (art. 53 da CR/88).
Nesse contexto, mostra-se relevante o debate acerca da responsabilidade civil do Estado por atos praticados pelos parlamentares quando abrangidos pela imunidade material. Antes, porém, relembram-se as hipóteses já consagradas pela doutrina de responsabilização estatal por atos legislativos, para, posteriormente, adentrar-se na temática, atualmente pendente de julgamento pelo STF, sobre a possibilidade, ou impossibilidade, de se atribuir, ao ente público, o dever de indenizar particulares que ingressam em juízo alegando danos sofridos em decorrência de manifestações de integrantes do Poder Legislativo.
2. ATOS LEGISLATIVOS E O DEVER DE INDENIZAR
A atividade legislativa conduz, primariamente, à elaboração de leis em sentido amplo, que são atos normativos gerais e abstratos.
Justamente por serem gerais e abstratos, os atos legislativos não geram, como regra, o dever de indenizar, ainda que tragam normas que onerem, de alguma forma, o particular. Isso porque eventual dano causado não será direcionado a um indivíduo específico, mas a todos aqueles abrangidos pela norma, indistintamente. Mesmo que a lei elaborada gere o descontentamento daqueles que tiveram sua esfera privada atingida, fato é que todos deverão se submeter à lei, sem poderem se furtar a isso.
Não obstante, é possível, excepcionalmente, que atos legislativos gerem responsabilização estatal, com o consequente dever de indenizar, nos casos em que a norma elaborada gere ao particular um dano desproporcional e superior ao ônus social que deve suportar. A doutrina e a jurisprudência apontam as seguintes hipóteses de responsabilidade civil por atos legislativos: leis de efeitos concretos e danos desproporcionais, leis inconstitucionais e omissão legislativa[1].
As leis, como regra, possuem efeitos gerais e abstratos. Excepcionalmente, algumas leis terão efeitos concretos, e, nesses casos, poderão gerar o dever indenizar em caso de dano, pois se dirigem a um ou a alguns indivíduos específicos e determinados.
Ora, se o fundamento da irresponsabilidade estatal é o caráter genérico e abstrato das leis, deve ser reconhecida a possibilidade de responsabilidade civil nos casos em que as leis não possuem tais atributos. A lei de efeitos concretos é uma lei em sentido formal, uma vez que a sua produção pelo Poder Legislativo observa o processo de criação de normas jurídicas, mas é um ato administrativo em sentido material, em virtude dos efeitos individualizados[2].
As pessoas diretamente prejudicadas pela lei de efeitos concretos terão a possibilidade de ingressar em juízo pleiteando a indenização respectiva. A responsabilidade estatal, nesse caso, será atribuída com base na teoria do risco administrativo.
Também é assente na doutrina e na jurisprudência a responsabilidade estatal em casos de leis inconstitucionais. É necessário, nesse caso, que a lei seja previamente declarada inconstitucional pelo STF. Tal necessidade decorre da presunção de constitucionalidade das leis, de modo que, enquanto não for declarada inconstitucional, a lei é reputada constitucional, sendo válida e aplicável.
Para parte da doutrina, somente a declaração de inconstitucionalidade feita em controle concentrado pode ensejar a responsabilização civil do Estado. Para outra parcela doutrinária, à qual se filia Rafael Oliveira, tanto a inconstitucionalidade proferida em controle concentrado, quanto a proferida em controle difuso, são aptas a permitir a responsabilização estatal:
Não basta a declaração de inconstitucionalidade para configuração da responsabilidade, sendo imprescindível a comprovação do dano concreto pela incidência da lei inconstitucional. Apesar de alguns posicionamentos no sentido de que a referida declaração tenha que ocorrer em sede de controle concentrado de constitucionalidade, sustentamos que a responsabilidade estatal pode existir também no caso da declaração incidental de inconstitucionalidade (Ex.: ação de repetição de indébito, cumulada com pedido de indenização por danos materiais e morais em face do Estado, com fundamento na inconstitucionalidade de determinada lei). A diferença, em nossa opinião, restringe-se aos efeitos da decisão: no primeiro caso (controle concentrado), todos os lesados pela lei inconstitucional podem pleitear a reparação civil, tendo em vista o caráter erga omnes da decisão; no segundo caso (controle incidental), apenas aquele que foi parte do processo se beneficia da decisão que possui efeitos inter partes[3].
No mesmo sentido, é a posição de José dos Santos Carvalho Filho, que acrescenta que a responsabilidade civil ocorre tanto em casos de inconstitucionalidade material, quanto de inconstitucionalidade formal:
Avulta, ainda, destacar que o fato gerador da responsabilidade estatal no caso – a inconstitucionalidade da lei – alcança tanto a inconstitucionalidade material como a formal, pois que, na verdade, o vício de forma na lei também não escusa a ilegítima atuação do órgão legislativo. Primitivamente, admitia-se a responsabilidade apenas quando houvesse controle concentrado de constitucionalidade; entretanto, atualmente já se considera que o controle incidental pode, da mesma forma, gerar a responsabilidade do Estado, eis que inexiste qualquer óbice no direito positivo para tal conclusão. A verdade é que tanto numa hipótese quanto na outra fica reconhecido o erro legislativo[4].
Uma vez existente declaração de inconstitucionalidade pelo STF, cabe ao particular lesado comprovar, concretamente, o dano que sofreu em razão da lei inconstitucional, para que, com isso, possa se beneficiar da indenização.
A omissão legislativa, de igual modo, também é apta a gerar o dever de indenizar. Sabe-se que a omissão legislativa em regulamentar um direito fundamental pode dar azo tanto a uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão - ADO (art. 103, §2º, da CR/88) quanto a um mandado de injunção, individual ou coletivo (art. 5º, LXXI, da CR/88). No caso do mandado de injunção, o indivíduo pode pleitear, em concreto, que o poder judiciário, além de declarar a mora legislativa e cientificar o respectivo Poder Legislativo para que a supra, discipline as regras para a efetivação do direito fundamental enquanto houver inércia do Poder Legislativo.
O autor Rafael Oliveira defende que, quando o texto constitucional estabelece prazo para o exercício do dever de legislar, a expiração do prazo, por si só, permitiria a responsabilização estatal. Ao passo que, nos casos em que a Constituição não estabelece um prazo específico, seria necessário, primeiramente, o ajuizamento de uma ADO ou de um mandado de injunção para que, primeiro, fosse declarada a mora, para que, somente depois, eventual ausência de suprimento da mora levasse ao dever de indenizar.
No caso da ADI por omissão, o STF, ao julgar procedente a ação, intimará o Poder competente para a adoção das providências necessárias e, tratando-se de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias, na forma do art. 103, § 2.º, da CRFB. Ultrapassado o prazo fixado ou ausente a providência legislativa dentro de prazo razoável, os lesados poderão pleitear a responsabilidade civil do respectivo Ente federado. Da mesma forma, reconhecida a mora legislativa no âmbito do mandado de injunção, os respectivos impetrantes (decisão inter partes) podem responsabilizar o Estado[5].
Nesta senda, José dos Santos Carvalho Filho aponta para a necessidade de que, uma vez reconhecida a mora legislativa pelo Poder Judiciário, esta seja suprida dentro de padrões de razoabilidade, a fim de eximir a responsabilidade estatal. Ultrapassados tais padrões, configurado estará o dever de indenizar:
Parece-nos que, se o texto constitucional fixa determinado prazo para o ato legislativo, a apresentação de projeto de lei ou a edição de medida provisória antes do prazo consolida o cumprimento do dever constitucional, ainda que o ato final seja produzido em momento posterior, fato que se justifica em função do processo legislativo imposto pela Constituição. Consequentemente, não haverá responsabilidade civil do Estado nem dever de indenizar.
Não cumprida a obrigação no prazo constitucional, e decretando o Poder Judiciário a mora do legislador, sem a fixação de prazo para o cumprimento, a diligência do Executivo ou do Legislativo, perpetrada em prazo situado dentro de padrões de razoabilidade, não acarreta a responsabilidade civil do Estado, não havendo, portanto, dever indenizatório. Fora de tais padrões, há de considerar-se inarredável a culpa omissiva do legislador e, por tal motivo, eventuais prejudicados têm direito à reparação de seus danos por parte da unidade federativa omissa[6].
Júlio César dos Santos Esteves, defensor da possibilidade de responsabilização estatal por atos legislativos, pondera que, assim como se reconhece a responsabilidade civil de atos provenientes dos poderes Executivo e Judiciário, deve-se reconhecer a responsabilidade civil decorrente de atos legislativos, não estando a atividade legiferante imune ao dever de indenizar:
Toda atividade estatal é, ademais, tributária da soberania, posto que a função de qualquer dos Poderes constituídos traduz e reflete o poder estatal, uno e indivisível. Não haveria, pois, como justificar a incidência da responsabilidade civil unicamente sobre uma ou algumas das funções estatais, ao mesmo tempo em que se desonera a atividade legiferante.
(...)
Desperta mesmo certo travo de ironia e frustração aceitar que a lei, concebida como instrumento máximo de contenção do poder do Estado e de proteção individual, possa converter-se em espaço de afirmação de irresponsabilidade da pessoa política.
Há, pois, que se empenhar na busca do reconhecimento e da adequada fórmula de aplicação da responsabilidade civil do Estado legislador, o que, longe de obstar a evolução do direito e o processo social, resultará em um parlamento mais cônscio de seu mister e de seus limites[7].
Atualmente, portanto, reconhece-se a possibilidade de responsabilização estatal por atos legislativos, nos moldes acima explicitados. Passa-se, então, a um novo debate, acerca da possibilidade de que manifestações parlamentares protegidas pelo manto da inviolabilidade material gerem o dever, para o ente público, de indenizar os particulares lesados.
3. ATOS PARLAMENTARES E IMUNIDADE MATERIAL
É sabido que, segundo a Constituição da República, os parlamentares possuem imunidade material por suas opiniões, palavras e votos (art. 53). A regra se aplica tanto para os congressistas (deputados federais e senadores), quanto para os deputados estaduais, que possuem o mesmo regime jurídico dos parlamentares federais no tocante às imunidades (art. 27, §1º), conforme, inclusive, decidiu o STF nas ADIs 5824 e 5825:
1. Segundo a posição majoritária do Tribunal, o legislador constituinte originário estendeu expressamente aos deputados estaduais, no § 1º do art. 27, as imunidades dos membros do Congresso Nacional.
2. É constitucional norma elaborada pelo constituinte derivado que mantenha a estrita disciplina das regras de repetição obrigatória referentes às imunidades parlamentares.
(STF. Plenário. ADI 5.824/RJ e ADI 5.825/MT, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 16/12/2022, Info 1081).
Quanto aos vereadores, também possuem imunidade material, porém com limitações, já que essa se restringe aos limites da circunscrição do município (art. 29, VIII).
Em todo caso, seja em relação aos parlamentares federais e estaduais, seja em relação aos vereadores, o posicionamento atual do STF e do STJ é o de que a imunidade parlamentar apenas abrange as declarações que estejam relacionadas com o desempenho da função legislativa ou tenham sido proferidas em razão dela.
3. A regra do art. 53, caput, da CR confere ao parlamentar uma proteção adicional ao direito fundamental, de todos, à liberdade de expressão, previsto no art. 5º, IV e IX, da CR. Mesmo quando evidentemente enquadráveis em hipóteses de abuso do direito de livre expressão, as palavras dos parlamentares, desde que guardem pertinência com a atividade parlamentar, estarão infensas à persecução penal. (STF. 1ª Turma. Inq 4088/DF e Inq 4097/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 1º/12/2015, Info 810).
Provimento do recurso, com fixação, em repercussão geral, da seguinte tese: nos limites da circunscrição do Município e havendo pertinência com o exercício do mandato, os vereadores são imunes judicialmente por suas palavras, opiniões e votos. (STF. Plenário. RE 600063/SP, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 25/2/2015, Repercussão Geral - Tema 469, Info 775).
Por todos, cita-se o emblemático caso do então deputado federal Jair Bolsonaro, que dirigiu declaração à também deputada Maria do Rosário, no sentido de que ela “não merecia ser estuprada”. Tanto o STF quanto o STJ entenderam que tal declaração não estava abrangida pela imunidade material, por não possuir relação direta com o mandato:
13. In casu, (i) a entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai a imunidade parlamentar, porquanto as manifestações se revelam estranhas ao exercício do mandato legislativo, ao afirmar que “não estupraria” Deputada Federal porque ela “não merece”; (ii) o fato de o parlamentar estar em seu gabinete no momento em que concedeu a entrevista é fato meramente acidental, já que não foi ali que se tornaram públicas as ofensas, mas sim através da imprensa e da internet;
(...)
15. (i) A imunidade parlamentar incide quando as palavras tenham sido proferidas do recinto da Câmara dos Deputados: “Despiciendo, nesse caso, perquirir sobre a pertinência entre o teor das afirmações supostamente contumeliosas e o exercício do mandato parlamentar” (Inq. 3814, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, unânime, j. 07/10/2014, DJE 21/10/2014). (ii) Os atos praticados em local distinto escapam à proteção da imunidade, quando as manifestações não guardem pertinência, por um nexo de causalidade, com o desempenho das funções do mandato parlamentar.
(...)
(STF. 1ª Turma. Inq 3932/DF e Pet 5243/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 21/6/2016, Info 831).
5. A imunidade parlamentar não é absoluta, pois, conforme jurisprudência do STF, “a inviolabilidade dos Deputados Federais e Senadores, por opiniões palavras e votos, prevista no art. 53 da Constituição da República, é inaplicável a crimes contra a honra cometidos em situação que não guarda liame com o exercício do mandato”. 6. Na hipótese dos autos, a ofensa perpetrada pelo recorrente, segundo a qual a recorrida não “mereceria” ser vítima de estupro, em razão de seus dotes físicos e intelectual, não guarda nenhuma relação com o mandato legislativo do recorrente. 7. Considerando que a ofensa foi veiculada em imprensa e na Internet, a localização do recorrente, no recinto da Câmara dos Deputados, é elemento meramente acidental, que não atrai a aplicação da imunidade. (STJ. 3ª Turma. REsp 1.642.310-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/8/2017, Info 609).
Além de a imunidade material abranger apenas as opiniões, palavras e votos proferidas no exercício das funções, já entendeu o STF que, em tais manifestações, é vedado o discurso de ódio, e, também, a incitação de condutas antidemocráticas:
A liberdade de expressão é um direito fundamental e a liberdade de expressão dos parlamentares relacionadas às suas funções é ainda mais extensa. O Parlamento é o local por excelência para o livre mercado de ideias – não para o livre mercado de ofensas. É dever de todos nós combater a intolerância, os discursos de ódio e de exclusão, e qualificar o debate público. Ninguém pode se escudar na imunidade material parlamentar para agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação. (STF. 1ª Turma. PET 7174/DF, rel. Min. Alexandre de Moraes, red. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgado em 10/3/2020, Info 969).
Atentar contra a democracia e o Estado de Direito não configura exercício da função parlamentar a invocar a imunidade constitucional prevista no art. 53, caput, da Constituição Federal. (STF. Plenário. Inq 4781, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 17/2/2021, Info 1006).
Assim, os parlamentares possuem imunidade por suas opiniões, palavras e votos, não podendo ser por elas responsabilizados, desde que proferidas no exercício e em razão do mandato.
4. ATOS PARLAMENTARES ABRANGIDOS PELA IMUNIDADE MATERIAL E RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Reconhecido que, como regra, os parlamentares são imunes por suas declarações, questiona-se se, a despeito da imunidade do parlamentar enquanto agente público, o ente estatal poderia ser acionado a se responsabilizar, perante terceiros, por danos ocasionados por declarações dadas pelos integrantes do Poder Legislativo no exercício de suas funções.
O tema é bastante interessante e, atualmente, se encontra afetado para julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. Trata-se do Recurso Extraordinário nº 632.115/CE, relator ministro Luís Roberto Barroso, tema 950.
Na decisão que reconheceu a Repercussão Geral, publicada em 29/06/2017, reputou-se que a responsabilidade civil do estado por atos protegidos por imunidade parlamentar é questão constitucional relevante a ser definida:
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATOS PROTEGIDOS POR IMUNIDADE PARLAMENTAR. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. A decisão recorrida reconheceu a responsabilidade civil objetiva do Estado e condenou o ente público ao pagamento de indenização por danos morais decorrentes de atos protegidos por imunidade parlamentar. 2. Constitui questão constitucional relevante definir se a inviolabilidade civil e penal assegurada aos parlamentares, por suas opiniões, palavras e votos, afasta a responsabilidade civil objetiva do Estado, prevista no art. 37, § 6º, da Constituição. 3. Repercussão Geral reconhecida. (STF, Plenário. Repercussão Geral no RE 632.115/CE, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/06/2017, publicado em 29/06/2017).
Muito embora o mérito ainda não tenha sido julgado, a Procuradoria Geral da República já apresentou parecer nos autos, do qual se extraem interessantes reflexões. Segundo a PGR, é cabível a responsabilidade civil do Estado nos casos de danos decorrentes de manifestações dos parlamentares, com fulcro na teoria do risco administrativo e na socialização dos danos:
O sistema de responsabilidade civil estatal decorrente de ato comissivo de agente público é disciplinado comumente pela teoria do risco administrativo. Segundo as construções doutrinárias sobre o tema - calcadas no princípio da isonomia -, o Estado, no curso da prestação dos serviços públicos, almeja invariavelmente a satisfação dos interesses diretos ou indiretos da sociedade; logo, em termos ideais, todos os benefícios produzidos pelos serviços estatais devem ser direcionados para o conjunto dos cidadãos. De igual modo, quando um de seus comissionados, no exercício de sua função pública, age e causa prejuízo a um particular, deve toda a sociedade, indiscriminadamente, suportá-lo[8].
Lado outro, assevera a PGR, fica excluído, nesses casos, o direito de regresso, já que incide, para o parlamentar, a imunidade material:
No entanto, se de um lado há concordância com a aplicação da regra constitucional de responsabilidade civil, de outro, o caso concreto demanda a respectiva conjugação com a norma da imunidade material do parlamentar (...).
(...)
Extrai-se daí que a inviolabilidade material em estudo qualifica-se como verdadeira cláusula de atipicidade genérica das condutas dos parlamentares conexas ao mandato, inerente à função congressual e não suscetível de dispensa expressa ou tácita pelo titular dessa prerrogativa constitucional, já que justificada por premissas democráticas e republicanas.
Logo, a abrangência da cláusula de inviolabilidade material, pela teleologia do instituto, restringe-se aos parlamentares e abrangem atos inerentes às suas funções públicas.
À toda evidência, a convivência desses dois postulados constitucionais - a saber, a responsabilidade civil do Estado e a inviolabilidade material parlamentar -, apenas se mostra possível se, e somente se, esse prevalecer, tornando inviável a ação de regresso contra o congressista, sob pena de anular as garantias constitucionais fixadas para a proteção da função parlamentar e, em última instância, prejudicar as atividades legiferantes e fiscalizatórias desenvolvidas pelos membros do Poder Legislativo e provocar um inequívoco acanhamento em sua atuação[9].
A conduta do parlamentar, respaldada pela imunidade, impede o direito de regresso por parte do Poder Público, a quem, segundo a PGR, incumbe suportar o ônus do dano causado:
Por desdobramento lógico, às pessoas jurídicas de direito público resta o encargo de suportar a defesa do patrimônio público, sob o panorama de divisão dos custos resultantes da responsabilidade estatal, como já prenunciado pela Constituição de 1988 com a adoção da teoria do risco administrativo, submetido sempre ao contraditório e à ampla defesa[10].
Em acréscimo, a PGR aduziu que a pessoa jurídica de direito público não pode ser eximida da responsabilidade civil, já que a imunidade material ampara apenas o parlamentar, mas não o ente público, não havendo previsão constitucional que possa exclui-lo de responsabilidade nesse caso:
Ademais, embora não esteja em discussão a existência ou a quantificação do dano moral já estabelecido no tribunal a quo, entende-se não ser juridicamente possível sacrificá-lo tendo por justificativa a incidência da imunidade material parlamentar.
Isso porque significaria estender à pessoa jurídica de direito público a mesma intangibilidade que acolhe as manifestações parlamentares sem qualquer previsão constitucional nesse sentido. A inviolabilidade material discutida nos autos é norma excepcional e tem destinatário certo; portanto, não é possível transmudar cláusula de abrangência específica e restrita em norma eximente do dever de indenizar atribuído à entidade pública, anulando, na prática, as regras sobre responsabilidade civil do Estado[11].
Ao final, a PGR opinou pelo desprovimento do Recurso Extraordinário, propondo a fixação da seguinte tese:
Nas lides que envolvem a responsabilidade civil da pessoa jurídica de direito público em razão de ofensas cometidas a terceiro por parlamentar, no exercício de seu mandato, deverá incidir a respectiva cláusula constitucional de inviolabilidade material (art. 53 da Constituição), restando à entidade pública suportar integralmente o dano, consoante a teoria do risco administrativo, excluído o direito de regresso contra o parlamentar ofensor[12].
Em complemento ao balizado posicionamento da PGR, cabe refletir sobre os limites da responsabilização civil do Estado em casos de opiniões, palavras e votos proferidos por parlamentares.
O parlamento é, por excelência, o ambiente do debate público, da troca de ideias, da manifestação de pontos de vista diversos. E tanto assim o é que a Constituição da República previu, para o parlamentar, a imunidade material por suas opiniões, palavras e votos.
Se, de um lado, não parece adequado que o particular suporte o dano por ele sofrido em decorrência de manifestação ofensiva proveniente do membro do Poder Legislativo, de outro não parece que a solução seja permitir, de forma ampla, a responsabilidade civil do Estado por atos dos parlamentares.
A responsabilização estatal, em tais casos, deve ser vista com temperamentos, pois, muito embora o ordenamento jurídico pátrio permita a responsabilidade civil do Estado por atos lícitos, o dano sofrido pelo particular deve ser anormal, de tal monta relevante que supere os meros dissabores decorrentes das corriqueiras divergências políticas e ideológicas no âmbito do Parlamento.
Isso porque a responsabilidade civil do Estado por atos lícitos somente se configura nos casos de danos anormais e específicos ou quando há expressa previsão legal:
A doutrina, contudo, tem admitido a responsabilidade civil do Estado por ato lícito em duas situações:
a) expressa previsão legal (ex.: responsabilidade da União por danos provocados por atentados terroristas contra aeronaves de matrícula brasileira, na forma da Lei 10.744/2003); e
b) sacrifício desproporcional ao particular (ex.: ato jurídico que determina o fechamento permanente de rua para tráfego de veículos, inviabilizando a continuidade de atividades econômicas prestadas por proprietários de postos de gasolina ou de estacionamento de veículos)[13].
Portanto, entende-se que caberia ao particular lesado demonstrar que o dano que experimentou em razão da manifestação de determinado parlamentar foi excepcional, anormal e específico, a ensejar eventual dever de indenizar no caso concreto.
Resta aguardar como o STF decidirá o tema.
5. CONCLUSÃO
Os atos legislativos podem gerar a responsabilidade civil do Estado em casos de leis de efeitos concretos e danos desproporcionais, leis inconstitucionais e omissão legislativa. O tema, muito embora com alguma divergência doutrinária, possui certa homogeneidade de tratamento.
Mais recente, porém, é a discussão a respeito da possibilidade de responsabilização do ente público pelos danos causados por manifestações proferidas pelos parlamentares no exercício da função legislativa e acobertados pela imunidade material.
A questão pende de decisão pelo STF, que reconheceu a Repercussão Geral da matéria. A PGR, por sua vez, já apresentou parecer, manifestando-se pela configuração da responsabilidade civil do Estado nesses casos, sem direito de regresso em relação ao agente público, pois, para ele, incidirá a imunidade material. O dever de indenizar por parte do Estado, segundo a PGR, fundamenta-se na teoria do risco administrativo e na socialização dos riscos.
Em nosso sentir, o abalizado parecer ministerial merece incremento para se estipular os limites da responsabilização estatal. O dano sofrido deve ser sopesado com o “livre mercado de ideias” – expressão já utilizada pelo STF - que é próprio do parlamento, de modo a somente se perquirir de responsabilização estatal em casos excepcionais, de danos anormais que excedam os dissabores decorrentes de divergências políticas e ideológicas comumente verificadas nos debates travados nas casas legislativas. Já que, na hipótese, está-se a tratar de responsabilidade civil por ato lícito, a qual somente se admite em caso de danos anormais e específicos.
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[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 880.
[2] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 880.
[3] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 881.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 37ª ed. Barueri: Atlas, 2023, p. 481.
[5] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 882.
[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 37ª ed. Barueri: Atlas, 2023, p. 482.
[7] ESTEVES, Júlio César dos Santos. Da irresponsabilidade estatal ao Estado Legislador Responsável. 2007. (Apresentação de Trabalho/Conferência ou palestra), p. 9-14.
[8] PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. Parecer nº N.º 1633/2019 – AJC/SGJ/PGR. Sistema Único n.º 92128/2019. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3978031>. Acesso em: 15/04/2024.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 861.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Aplicado ao MPU pela Escola Superior do Ministério Público da União. Analista do MPU/Direito .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Rafaela Neiva. Atos legislativos, atos dos parlamentares no exercício da função legislativa e o dever de indenizar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 abr 2024, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65163/atos-legislativos-atos-dos-parlamentares-no-exerccio-da-funo-legislativa-e-o-dever-de-indenizar. Acesso em: 23 dez 2024.
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