Resumo: O presente trabalho busca expor o atual quadro doutrinário e jurisprudencial acerca do artigo 385 do CPP, apontando os entendimentos que sustentam as diferentes posições sobre sua validade. A análise se limita à primeira parte do dispositivo, que confere autonomia ao juiz para prolatar um édito condenatório, ainda que o Ministério Público postule a absolvição na fase do artigo 403. Buscamos sustentar a aplicação do artigo 28 do CPP na situação em exame, por meio da técnica de interpretação conforme a ser aplicada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 1122. Com isso, seriam agasalhados os princípios acusatório e da independência judicial, atribuindo uma espécie de efeito prodrômico parcial às alegações finais do Ministério Público, limitado ao caso de o pedido de absolvição ser homologado pelo órgão de controle. A análise seguiu o método de pesquisa exploratório bibliográfico, com exame da jurisprudência recente dos tribunais superiores e da doutrina nacional e estrangeira.
Palavras-chave: sistema acusatório; dissenso jurisprudencial do STJ; STF e a ADPF 1122; interpretação conforme à Constituição.
Abstract: The present work seeks to expose the current doctrinal and jurisprudential framework regarding article 385 of the CPP, pointing out the understandings that support the different positions on its validity. The analysis is limited to the first part of the provision, which gives the judge autonomy to issue a condemnatory edict, even if the Public Prosecutor's Office postulates acquittal in the article 403 phase. We seek to support the application of article 28 of the CPP in the situation under examination, for through the interpretation technique as applied by the Federal Supreme Court in ADPF 1122. This would undermine the accusatory and judicial independence principles, attributing a kind of partial prodromal effect to the final allegations of the Public Prosecutor's Office, limited to the case of the request to The acquittal was approved by the control body. The analysis complements the exploratory bibliographical research method, with an examination of the recent jurisdiction of higher courts and national and foreign doctrine.
Keywords: accusatory system; STJ jurisprudential dissent; STF and ADPF 1122; interpretation in accordance with the Constitution.
Sumário: Introdução; 1 - evolução jurisprudencial; 2 - evolução doutrinária; 3 - interpretação conforme à Constituição; 4- Conclusão.
Introdução
Está em trâmite no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1122 proposta pela ANACRIM, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin. Ela visa a declaração de não recepção do artigo 385 do Código de Processo Penal, pondo fim à celeuma gerada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça acerca da validade do referido dispositivo legal.
A petição inicial da referida ADPF contém um capítulo nomeado de “contextualização normativa”, contendo uma incursão histórica e política na Era Vargas, em especial na ditadura do Estado Novo, sob o pálio da Constituição outorgada de 1937. A redação do art. 385 do CPP remonta a 1941, jamais tendo passado por qualquer alteração. A petição da ADPF também alude ao fechamento do Congresso Nacional entre 1937 e 1946 e ao fato de Vargas ter aposentado por decreto seis ministros do STF.
O biógrafo Lira Neto publicou uma trilogia sobre Vargas. Em “Getúlio 2”, que cobriu o período da Segunda Guerra Mundial, Neto lembra dos vínculos do governo com a Gestapo, que ajudou Felinto Müller a identificar Olga Benário. Ela foi enviada grávida para morrer no campo de concentração Ravensbrück. Na época, o titular da pasta da Justiça, Francisco Campos, responsável pela aprovação do CPP, deixou expressa sua admiração pelo Direito Penal fascista de Mussolini. Lira Neto também recorda que nessa época o Itamaraty emitiu uma circular secreta banindo a concessão de vistos para refugiados judeus.
Em obra mais recente, intitulada “Arrancados da Terra”, o mesmo autor pesquisou os arquivos do Santo Ofício na Torre do Tombo, em Lisboa, traçando um panorama da perseguição aos judeus, com vários deles aportando em Recife no século XVII e, em seguida, nos Estados Unidos, onde fundaram Nova Iorque. A perseguição empreendida aos judeus no Brasil pela Coroa Portuguesa foi sucedida historicamente pela perseguição do governo Vargas.
A petição inicial da ADPF cita ainda trecho da exposição de motivos do CPP redigida por Francisco Campos. Nessa exposição, ele realça a coordenação sistemática das regras do processo penal num código único em todo o Brasil, mostrando a diferença com o direito processual norte-americano, que é fragmentado entre os Estados-Membros. No entanto, logo à frente ele afirma que urge seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre a tutela social.
A exposição de motivos do CPP difere da exposição de motivos da CLT, outorgada dois anos depois. Apesar de ter como base a Carta del Lavoro de Mussolini, Alexandre Marcondes tece um extenso rol de direitos aos trabalhadores, igualmente consolidados em um único diploma aplicável a todo o país. No item final, ele afirma que nessa hora dramática que o mundo sofre, a consolidação constitui um marco venerável de nossa civilização, que demonstra a vocação brasileira pelo direito.
Marcondes se referia ao terror da Segunda Guerra Mundial. No ano de 1943, diversas embarcações brasileiras foram afundadas por submarinos alemães, resultando em centenas de mortos. Um submarino U-518 afundou os cargueiros Brasiloide na Bahia e Tutóia em São Paulo. No ano seguinte, o Brasil foi o único país latino-americano a enviar soldados para lutar na Europa, com a Força Expedicionário Brasileira. No início da guerra, os alemães usaram uma tática inovadora, conhecida como Blitzkrieg, com um ataque maciço de infantaria, artilharia, blindados e aviação, o que lhe rendeu um grande avanço. Essa ascensão no teatro de operações estimulou Marcondes a exaltar o Direito nessa “hora dramática que o mundo vive”. Felizmente, quando da outorga da CLT, a guerra entrava na sua segunda fase, com a Batalha de Stalingrado, que marcou a virada para os aliados e a derrota do eixo em Kursk.
Após incursionar pela história, a petição inicial da ADPF cita modelos acusatórios puros, que são adotados na Itália, Espanha, Chile e Argentina. A petição também analisa brevemente acórdãos proferidos pelo STJ no REsp nº 2.022.413/PA e pelo STF nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Por fim, os peticionários requerem ao STF que declare a não recepção do artigo 385 do CPP pela Constituição de 1988, por afronta aos princípios do devido processo e contraditório, previstos no art. LIV e LV da CF/88.
1- Evolução Jurisprudencial
A petição da ADPF citou como fundamento o acórdão no REsp nº 2.022.413/PA, em especial o voto vencido do ministro Sebastião Reis Júnior. A decisão da Sexta Turma do STJ nesse recurso foi no sentido de conferir validade ao art. 385 do CPP. Referido recurso foi pautado no dia 20/09/2022 e julgado no dia 14/02/2023. Essa decisão está em confronto com a decisão no REsp nº 1.940.726/RO, da Quinta Turma do STJ, julgado em 06/09/2022, que entendeu por maioria pela invalidade do art. 385 do CPP. A Quinta Turma do STJ também julgou o REsp nº 1.943.370 em 2021, entendendo por unanimidade pela validade do art. 385 do CPP, tanto com a sua recepção pela CF/88 como pela compatibilidade com a Lei nº 13.964/2019.
No voto vencido no REsp nº 2.022.413/PA, o Ministro Sebastião Reis Júnior sustentou a tese de invalidade do art. 385 do CPP por incompatibilidade aos artigos 282, §2º, e 311 do CPP, já que o art. 3º-A teve sua eficácia suspensa por decisão emanada na ADI nº 6.298. Após o julgamento deste recurso especial, o STF finalizou o julgamento desta ADI em 24/08/2023, conferindo ao art. 3-A do CPP interpretação conforme à constituição, entendendo que o juiz pode determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito. Mas não houve posicionamento da Suprema Corte acerca do artigo 385 do CPP.
O Ministro Sebastião Reis Júnior já havia proferido um voto vencido no julgamento do Habeas Corpus nº 623.598/PR em 01/02/2022, entendendo pela invalidade do art. 385 do CPP. O HC foi relatado pela ministra Laurita Vaz.
No entanto, o Ministro Sebastião Reis Júnior havia votado no sentido da validade do art. 385 do CPP no julgamento do HC nº 654.075/PA. Ele reviu este entendimento no REsp nº 2.022.413/PA, concluindo pela manifesta incompatibilidade entre o referido preceito com a nova sistemática da Lei nº 13.964/2019. Em sua fundamentação, o Ministro elencou um extenso rol de doutrinadores, em reforço ao sistema acusatório, mas sem indicar o entendimento específico deles acerca da validade ou não do art. 385 do CPP. Ele também citou trecho do voto do Ministro Celso de Mello no Habeas Corpus nº 188.888 acerca da Lei Anticrime. Em seguida, sustentou o ponto específico da validade do art. 385 do CPP com o entendimento de Tiago Bunning e Guilherme Lucchesi, em obra voltada à análise da Lei Anticrime. Curiosamente, o voto vencido também citou julgado proferido pelo Ministro Rogério Schietti, em tema afeto à fixação de medidas cautelares ao réu. Porém, o Ministro Schietti inaugurou a divergência e proferiu o voto condutor do julgamento, em sentido contrário ao relator.
Douglas Fischer fez importantes apontamentos sobre os dois acórdãos do STJ, dirimindo dúvida acerca da alteração do entendimento jurisprudencial (in “Sistema Acusatório nos 35 Anos da CF/88”, Thoth editora, 2023, pág. 67). No REsp nº 1.940.726/RO constou na ementa a invalidade do art. 385 do CPP. No entanto, segundo Fischer, o que se decidiu discrepa totalmente do que constou na ementa. Ele também alertou que o art. 3º-A invocado como razão de decidir estava suspenso por decisão do STF quando do julgamento deste recurso, e, naturalmente, não poderia ter servido de fundamento para a decisão.
Fischer comenta uma passagem do voto vencido, que cita passagem do livro de Aury Lopes Júnior. Este excerto doutrinário faz remissão aos ensinamentos de Goldschmidt. O jurista alemão James Goldschmidt faleceu em 1940, quando o nazismo dominava a Alemanha. Ao contrário do que sustentado no trecho doutrinário de Aury Lopes, Fischer assevera que Goldschmidt na verdade criticou a vinculação do juiz à opinião do MP, tratando-a como um exagero. No original de sua obra, o jurista tedesco afirmou que o juiz pode provocar o membro do MP de segundo grau, em caso de discordância da posição adotada pelo órgão de acusação.
No voto condutor do REsp. nº 2.022.413/PA, o Ministro Rogério Schietti tratou acerca da validade do art. 385 do CPP. O ministro fez carreira no Ministério Público, exercendo a função de Procurador-Geral de Justiça do MPDFT. Em sua formação acadêmica, o Ministro Schietti possui mestrado e doutorado em Direito pela USP. Além disso, conta com cursos na Itália, como uma especialização nos anos 1990 e cursos de aperfeiçoamento recentes, em 2015 e 2017, inclusive na área penal. Essa formação na Itália se refletiu na fundamentação de seu voto.
No seu voto, o Ministro citou a doutrina processual penal italiana de Andrea Dalia e Marzia Ferraioli. É uma citação louvável, já que no Brasil há escassez de doutrinadoras nesta seara do Direito. Uma exceção é o “Curso de Processo Penal” da professora Doutora Ana Flávia Messa, publicado pela editora Saraiva. Trata-se de uma obra voltada para concursos públicos, mas de inegável qualidade literária.
O Ministro Schietti reforçou sua fundamentação com citações de autores italianos clássicos, como Enrico Tullio Liebman, Michele Taruffo, Luigi Ferrajoli, Piero Calamandrei, Francesco Carrara, além dos mais modernos, como Paolo Tonini, Vito Marino Caferra, Geovanni Leoni, Franco Cordero, dentre outros. O voto faz alusão ao Juiz Instrutor na Itália, que remonta ao Código Rocco de 1930 e ao Código Vassali de 1988.
Assim como o Ministro Sebastião Reis Júnior fez no voto vencido, o Ministro Schietti também citou Aury Lopes Jr em seu voto, consistente em um excerto sobre o modelo acusatório. Desta forma, o mesmo autor constou na fundamentação dos votos vencido e vencedor. O Ministro Schietti afirmou aderir à corrente de plena validade do art. 385 do CPP, seguindo o escólio de Douglas Fischer, Eugênio Pacelli e Guilherme Nucci.
Inicialmente, o Ministro advertiu sobre o risco de “jogar o bebê fora junto com a água suja”. Em seguida, ele recorda excrescências inquisitoriais na história do processo penal brasileiro, como a figura dos “Desembargadores Promotores de Justiça”, previstos no Decreto nº 1.723/1856. Recorda ainda a redação original do CPP de 1941, que permitia ao juiz iniciar processos por portaria, conhecidos como processos judicialiformes. Segundo Schietti, o Livro V das Ordenações Filipinas espelhavam as práticas da Baixa Idade Média, e vigeram no Brasil, sendo seguidas pelo Código de Processo Criminal do Império.
Neste tema, é importante lembrar que, quando da criação dos tribunais seculares pelos Estados-Nação, houve a adoção do processo penal das inquisições, que tinha origem no direito canônico, e era tido como um avanço em comparação às ordálias, que vigiam à época.
Em continuação de julgamento, a Ministra Laurita Vaz seguiu o entendimento esposado pela dissidência inaugurada pelo Ministro Schietti, conferindo interpretação sistemática ao art. 385 do CPP. No julgamento do Habeas Corpus nº 588.036/SP em 2022, pela Sexta Turma do STJ, ela já havia se posicionado pela validade do referido dispositivo legal, com base no princípio da comunhão da prova. Segundo a Ministra, a impossibilidade de julgar de forma diversa do entendimento ministerial (alegações finais, contrarrazões e parecer), retira do julgador a própria função de dizer o direito à luz dos fatos.
Percebe-se que nos últimos anos o STJ proferiu julgamentos diferentes por ambas as turmas criminais, tanto unânimes quanto por maioria. Além disso, há frequente alteração no posicionamento dos Ministros entre os julgados. A composição das Turmas criminais se modifica em poucos anos, seja com a aposentadoria de Ministros e posse de novos, seja com o rodízio de Ministros entre as Turmas cível e criminal, ou mesmo com a convocação temporária de Desembargadores estaduais e federais. É uma situação propícia à uniformização jurisprudencial entre os órgãos fracionários, a ser operado pela 3ª Seção do STJ, que reúne os integrantes da 5ª e 6ª Turmas. Essa regra consta no art. 926 do CPC e se irradia por todo o ordenamento jurídico, alcançando inclusive a seara penal.
Historicamente, a jurisprudência pacífica do TFR foi no sentido da validade do artigo 385 do CPP. Com a promulgação da CF/88, o STJ se manteve firme nesse entendimento, mesmo após as reformas de 2008 e 2011. Nos últimos anos, contudo, começou a ganhar força uma corrente que contesta a validade desta regra. Com a aprovação da Lei Anticrime, essa corrente ganhou novo impulso. Em 2022, mesmo com a suspensão do art. 3°-A do CPP, a 5° Turma do STJ decidiu pela invalidade do artigo 385 do CPP, o que foi interpretado na comunidade jurídica como uma viragem jurisprudencial da corte. Mas não durou muito. Em 2023, a 6° Turma do STJ entendeu, por maioria, pela validade da regra. Após este julgado, teve fim a suspensão do art. 3°-A do CPP operada pelo STF, que publicou o acórdão com mais mil páginas em dezembro de 2023.
2 - Evolução Doutrinária.
Desde que a celeuma se instalou entre as Turmas criminais do STJ acerca da validade do artigo 385 do CPP, houve uma profusão de textos acadêmicos analisando a controvérsia. A maioria deles se insurgiu contra o último entendimento relatado pelo Ministro Schietti, que validou o dispositivo.
Para representá-los, cita-se o artigo de Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do MPBA, publicado em 02/02/2024 no site “Conjur”, onde afirma na nota 2: “Como Procurador de Justiça sempre defendi nos pareceres de segundo grau a incompatibilidade do artigo 385 com o sistema acusatório e, consequentemente, com a Constituição Federal”. O articulista cita lição de Paulo de Souza Queiroz, que afirma: “Em suma, o artigo 385 do CPP só faz sentido num sistema inquisitório ou tendencialmente inquisitório, próprio de modelos autoritários de processo penal (no caso, ditadura Vargas)”.
No entanto, indo ao original escrito por Paulo Queiroz em 2016, tal como fez Douglas Fischer em relação a Goldschmidt, o doutrinador defende a aplicação do art. 28 ao caso: “invocar, analogicamente, o art. 28 do CPP, enviando os autos ao chefe da instituição (Procurador-Geral da República ou Procurador-Geral de Justiça), para que decida definitivamente sobre o tema. Parece, inclusive, que essa solução é a mais razoável, visto que, a fim de evitar que o juiz se converta em acusador, talvez se converta o acusador em juiz”.
Em seu voto, o Ministro Schietti citou as diferentes correntes acerca da validade ou não do artigo 385 do CPP, bem como as distintas vertentes de cada corrente. Dentre elas, ele fez menção à corrente encabeçada por Paulo Queiroz e Bruno Calabrich, que defendem a aplicação do art. 28 do CPP, com a remessa dos autos para apreciação pelo órgão superior do MP. Se for mantido o pleito absolutório, Queiroz defende que o juiz estaria vinculado a absolver. Já o segundo autor defende que o juiz poderia tanto absolver o réu como extinguir o processo sem resolução do mérito, por perda superveniente do interesse de agir. Mas ambos concordam que o juiz não poderia condenar. Preferimos a solução de Paulo Queiroz, por ser mais benéfica ao réu.
Como visto, a oscilação acerca do tema não existe apenas no âmbito jurisprudencial. Na doutrina também há dissenso e mudanças de posicionamento individual no decorrer do tempo. Por todos, exemplifica-se com Renato Marcão, que em 2014, na primeira edição de sua obra, quando ainda era integrante do Ministério Público de São Paulo, manifestou-se pela validade do art. 385 do CPP (“Curso de Processo Penal”, 1ª edição, pág. 830). Segundo ele, o dispositivo foi recepcionado pela CF/88. Em edições posteriores, já atuando como advogado, o autor mudou de posição, manifestando-se contrário à validade do art. 385 do CPP. Este autor foi inclusive citado na fundamentação do voto vencido do Ministro Sebastião Reis. Esse voto vencido serviu de fundamento da petição inicial da ADPF em curso no STF.
De seu turno, na obra de Renato Brasileiro, membro do Ministério Público Militar, são expostas as correntes majoritárias (pela validade) e minoritária (pela invalidade) sobre o artigo 385 do CPP, mas sem que autor adira explicitamente a alguma delas, e tampouco fundamente sua posição. Ele indica ser dominante o entendimento pela validade do dispositivo. Como integrante do MPM, o autor opera regra idêntica, prevista no artigo 437, alínea b, do CPPM. Esse código foi outorgado em 1969, também no contexto de uma ditadura, quando já vigente o Ato Institucional nº 05/1968.
O artigo 385 do CPP também é aplicável no âmbito dos processos criminais em curso na Justiça Eleitoral, por conta da previsão do artigo 364 do Código Eleitoral. Assim, a essência dessa regra cobre toda a competência criminal do ordenamento brasileiro.
O autor Norberto Avena indica a necessidade de proceder à interpretação conforme à Constituição de alguns dispositivos do CPP de viés inquisitivo (“Processo Penal”, editora Método, 12ª edição, 2020):
“Não se ignora, por certo, que a legitimação exclusiva conferida ao Ministério Público pela Constituição Federal de 1988 chegou a levar alguns doutrinadores a cogitar da não recepção do art. 385 pela ‘Lex Fundamentallis’. Todavia, tal entendimento jamais espelhou a posição majoritária, sempre se considerando que, pelo princípio do livre convencimento, o fato de o promotor ter pedido a absolvição do réu na fase de sua manifestação final do processo não vincula o magistrado (...) Não é por outro motivo que se reconhece legitimidade ao promotor de justiça para impetrar habeas corpus, ajuizar mandados de segurança e, até mesmo, recorrer em favor do acusado quando entender ser o caso. Neste contexto, não é impróprio concluir que, não apenas nos crimes em que seja do ofendido a legitimidade para promover a ação penal, mas também nos crimes de ação pública, o Ministério Público sempre exercerá, cumulativamente ou não com a posição de autor, o papel de custos legis. Tal raciocínio é permitido pela redação do art. 257, I e II, do CPP, determinando que, além da promoção da ação penal pública, incumbe ao parquet, ainda, fiscalizar a execução da lei. (...) Analisando essas duas linhas de pensamento, sempre aderimos à primeira delas, considerando que, de fato, vigora no Brasil o sistema acusatório (…) Por outro lado, também não há dúvidas de que os dispositivos pelos quais muitos autores sustentam ter sido adotado o sistema inquisitivo garantista, encontram-se incorporados à legislação infraconstitucional. Neste contexto, duas soluções se apresentam: ou se consideram inconstitucionais, por violação do sistema acusatório, os dispositivos infraconstitucionais que consagram procedimento incompatível com as regras desse modelo; ou se busca conferir a tais previsões legislativas interpretação conforme à Constituição Federal.”
De seu turno, no magistério de Mougenot (“Curso de Processo Penal”, 14ª edição, Saraiva, 2024):
“De acordo com a jurisprudência (STF e STJ), é clara a opção do legislador constituinte pelo sistema acusatório. Já sobre quais são as características desse sistema, a jurisprudência não demonstra a necessária reflexão. (…) Eu me filio à corrente majoritária quando sustento que o sistema adotado no Brasil é o sistema acusatório e me filio à corrente minoritária quando digo que há uma única característica que diferencia os sistemas. (...) Entendemos que deve ser uma única característica a separar os sistemas processuais, qual seja, a separação de funções entre acusador e julgador. As demais características são criações e não necessariamente exclusivas de um sistema em detrimento do outro.”
Nesta obra, Mougenot também apresenta um quadro atualizado sobre as posições adotadas acerca do tema: “Tourinho Filho - sistema acusatório; Aury Lopes - sistema (neo) inquisitivo; Nucci - sistema misto; Pacelli - sistema acusatório; Badaró - sistema misto.”
Logo à frente ele afirma:
“Destaco, por fim, as lições de Mirjan Damaska, um dos mais importantes estudiosos deste tema no mundo. Ele deixa claro como a oposição entre acusatório (adversarial) e inquisitório acaba fluida a partir de um determinado momento. (...) Temos que tomar cuidado para não vulgarizar o termo ‘inquisitivo’. Deve o jurista cuidar especialmente disso: não é porque se discorda de algo que esse algo automaticamente está alinhado com práticas inquisitivas. (...) Toda essa exigência emerge da independência funcional do órgão ministerial na interpretação dos fatos, dos elementos probatórios colhidos e do direito a ser empregado, que merece respeito. A fiscalização interna corporis, legalmente regrada, sempre preponderará, em homenagem à opção da CF de atribuir, privativamente ao MP a promoção da ação penal pública. E não é à toa que o segundo modelo prevê o encaminhamento dos autos para o Procurador-Geral ou à instância de revisão ministerial, quando houver, para fins de homologação, na forma da lei.”
Na lição de Eugênio Pacelli (“Curso de Direito Processual Penal”, editora Atlas, 25ª edição, 2021):
“No findar de 2019, nosso legislador optou por adotar um sistema similar a este, ao introduzir a figura do ‘juiz de garantias’ na Lei 13.964/19, com atuação restrita à fase de investigação. A novidade é, em verdade, mais antiga, oriunda do Projeto de Novo CPP (PL 8.045/10), ainda em tramitação na Câmara dos Deputados. Esse Projeto foi elaborado por uma Comissão de Juristas instituída pelo Senado da República em 2009, e da qual tivemos a honra de integrar, como Relator-Geral. Ali se criou o juiz das garantias e se esculpiu a estrutura acusatória de processo. Guardamos especial apreço pela norma agora introduzida pelo art. 3º-A, cujo conteúdo leva nossas digitais. (...) – ora, em se tratando de norma posterior, o silêncio do legislador deve ser compreendido como eloquente, sobretudo pelo fato de a Lei 9.099/95 restringir expressamente a regra em questão aos casos nela previstos ainda que o Ministério Público, em alegações finais, requeira a absolvição do acusado (art. 385, CPP), o juiz pode proferir sentença condenatória. Eis aqui regra expressa quanto à não exclusividade da imposição de resposta penal em mãos do autor da ação, no horizonte de um Direito Penal de ultima ratio, destinado à proteção de direitos fundamentais. A opção de nossa legislação foi a adoção do princípio da obrigatoriedade ou da legalidade, segundo o qual o Ministério Público deve agir movido pela objetividade (critérios da Lei). Pudesse ele retirar a acusação – se manifestando pela absolvição – não se conteria o juízo de discricionariedade, com violação ao modelo escolhido (da obrigatoriedade da ação).”
O autor e advogado Aury Lopes Jr é contrário à validade do art. 385 do CPP, indicando que a sentença que o segue é acoimada de nulidade absoluta, por violação ao contraditório. Segundo ele, seria uma violação ao princípio da Necessidade do Processo Penal, fazendo com que a punição não esteja legitimada pela plena e integral acusação. Em sua obra, o autor afirma:
“Nesse cenário (e até 2020) sempre dissemos categoricamente: O processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou neoinquisitório se preferirem, para descolar do modelo histórico medieval. Ainda que se diga que o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador era inquisitivo, pois a gestão da prova estava nas mãos do juiz. Finalmente o cenário mudou e nossas críticas (junto com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Geraldo Prado, Alexandre Morais da Rosa, e tantos outros excelentes processualistas que criticavam a estrutura inquisitória brasileira) foram ouvidas. Compreenderam que a Constituição de 1988 define um processo penal acusatório, fundando no contraditório, na ampla defesa, na imparcialidade do juiz e nas demais regras do devido processo penal. Diante dos inúmeros traços inquisitórios do processo penal brasileiro, era necessário fazer uma “filtragem constitucional” dos dispositivos incompatíveis com o princípio acusatório (como os arts. 156, 385 etc.), pois são “substancialmente inconstitucionais” (e, agora, estão tacitamente revogados pelo art. 3º-A do CPP, com a redação da Lei n. 13.964). (“Direito Processual Penal”, editora Saraiva, 17ª edição, 2020).
De igual modo, Alexandre Morais da Rosa, em obra que examina o processo penal à luz da teoria dos jogos, indica que o artigo 385 do CPP é incompatível com o processo entre jogadores. Logo, se o jogador acusador requerer a absolvição, não pode o julgador condenar.
A esse respeito, o autor e magistrado Guilherme Madeira Dezem faz uma ponderação importante (“Curso de processo penal”, 7ª edição, Thomson Reuters, 2021, pág. 108):
“Realmente, há profundo descompasso entre o modelo traçado pela Constituição Federal e sua concretização por meio do Código de Processo Penal. Este descompasso é aprofundado pela cultura inquisitorial existente no país pelos diversos órgãos existentes. Não raro o magistrado acaba sentindo-se parte do sistema de segurança pública e acaba por achar que a sua função é combater a criminalidade ou buscar reconstituir os fatos como efetivamente se deram em uma caça em busca da verdade. Este descompasso (…) acaba por gerar uma das grandes tensões existentes no sistema, que se quer acusatório e que quando se olha no espelho se reconhece inquisitivo.”
No escólio de Afrânio Silva Jardim e Pierre Amorim:
“Na verdade, o mencionado art. 385 do CPP não poderia dispor de forma diferente e é resultante do princípio da indisponibilidade da ação penal pública (art. 42 do CPP). O pedido de condenação não é retirado, sendo que, nas alegações finais, apenas se dá um “parecer” sobre a pretensão punitiva estatal, que está manifestada na denúncia e nela permanece. De qualquer forma, o legislador não tem saída: a) ou obrigaria o Ministério Público a insistir sempre e sempre na condenação do réu, o que seria um absurdo; b) ou obrigaria o juiz a absolver o réu e, nesse caso, a decisão seria do Ministério Público, que mandaria o juiz prolatar uma decisão meramente formal de absolvição, o que seria um despautério.”
Segundo a análise abrangente de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (“Curso de Processo Penal e Execução Penal”, Editora Juspodivm, pág. 1035):
“O pleito de absolvição, entretanto, não configura desistência, e sim reconhecimento expresso, pela instituição autora da ação penal, da improcedência da causa de pedir e do pedido. De toda sorte, a acusação em si não foi modificada e, ante a impossibilidade de desistência, está entregue ao juiz, na fase de julgamento, tal qual formulada pela instituição acusadora. Sobre o art. 385, os autores afirmam: "Sinceramente, não vemos aí ofensa à regra da correlação entre acusação e sentença. A acusação, diante da impossibilidade de desistência, subsiste tal e qual deduzida pelo Ministério Público e nesses limites é entregue à apreciação judicial, para julgamento. (…) Não podemos aceitar o entendimento, sustentado por Aury Lopes, de que o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória. (...) Sem dúvida, é inusitado que o juiz possa condenar mesmo diante de pedido do próprio acusador pela absolvição. No entanto, o Ministério Público, na sua apreciação, não pode vincular o julgamento do juiz, o que violaria a própria independência e o livre convencimento motivado próprios dos órgãos do Poder Judiciário (...) A solução que defendemos é que possa haver disposição motivada do Ministério Público quanto ao exercício da ação penal, permitindo-se, assim, a desistência, sob a exigência de motivação e com controle dentro da instituição titular da ação penal de iniciativa pública.”
Na visão clássica de Vicente Greco Filho sobre a validade do artigo 385 do CPP (“Manual de Processo Penal”, 8ª edição, editora Saraiva, pág. 311):
“O dispositivo contém dois preceitos. O primeiro assegura a indisponibilidade da ação penal pública. Se o parecer do Ministério Público propondo a absolvição fosse vinculante, estaria ele dispondo sobre a ação penal pública. Ainda que de rara aplicação, o art. 385 preserva o interesse público da persecução penal e atuação da lei penal nos crimes de ação penal pública. O mesmo princípio da indisponibilidade da ação penal pública, que é, na verdade, a indisponibilidade do interesse público, permite que o Ministério Público, por outro membro ou pelo mesmo, recorra da absolvição que atendeu seu próprio parecer. A manifestação de um, meramente opinativa, não vincula a manifestação de outro, ou dele mesmo, reapreciando o que é melhor para o interesse público.
Eduardo Espínola Filho, em obra publicada logo após o CPP/1941, faz menção às conhecidas promoções F.J. (“Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, editora Bookseller, Volume IV, item 762, p. 158):
“Deve assinalar-se que essa possibilidade de agravação da situação do acusado, não só se manifesta no sentido de poder ser condenado a cuja absolvição foi pedida, ou para quem se não pleiteou a punição (é o F. J. - tão vulgarizado nas promoções finais dos nossos promotores), mas ainda no de ser permitido desconhecer o julgador qualquer atenuante, que a promotoria pública tenha dado como existente, e, até de considerar agravante que não haja sido articulada, ou, mesmo, tenha sido repelida pelo órgão do Ministério Público. Já sabemos que, dessas várias modalidades, somente a primeira lograra a admissão nas nossas práticas judiciárias, aliás com grande resistências, de que ainda se encontra eco no livro de Ary Franco (Código de Processo Penal, Vol. I, 1942, pág. 396). A inovação, e muito feliz inovação, do recente Código de Processo, deu a muitos promotores a impressão, na verdade injustificável, de uma diminuição no seu papel, pelo que, vários passaram a deixar de fazer qualquer apreciação, nas suas alegações finais, sobre as circunstâncias modificativas. A maioria, felizmente, manifestou uma compreensão perfeita do processo atual, e é com satisfação que vimos o esclarecido promotor Cordeiro Guerra acentuar: ‘Parece-me, nesta altura, conveniente e oportuno determinar a sanção penal aplicável ao réu. É de ver-se que o art. 500 do Código de Processo vigente não impede, com o art. 400 do Código de Processo revogado, a obrigação expressa de fixar o pedido de condenação, pedido que, aliás, não obriga ao juiz.”
Como regra, os manuais são escassos no exame da validade do artigo 385 do CPP. Mesmo autores que exaltam o sistema acusatório em detrimento do inquisitivo garantista não incursionam sobre os meandros deste dispositivo de forma pormenorizada. Para isso, é preciso se socorrer de publicações científicas.
Em artigo publicado na Revista do MPCE em 2018, Rafael Fecury Nogueira fez uma ampla explanação das correntes doutrinárias acerca da validade do art. 385 do CPP. De igual modo, em artigo na Revista Brasileira de Direito Processual Penal (Vol. 3, nº 3, set/dez de 2017), Rafael de Deus Garcia realizou uma profunda incursão na validade do art. 385 do CPP, analisando a vinculação do juiz à manifestação do MP. Nessa mesma publicação, no Vol. 4, nº 1, jan/abr de 2018, Gustavo Badaró examinou a sentença e a análise das provas sob uma nova epistemologia. Para ele, a decisão deve estar calcada em bases racionais, acessível a outros indivíduos e passível de controle intersubjetivo por via recursal.
Ainda segundo a lição de Gustavo Henrique Badaró (“Processo Penal”, 9ª edição, Revista dos Tribunais):
“Além do valor político de permitir que os sujeitos do ato de poder possam participar da elaboração de tal ato, o contraditório possui também um valor epistêmico. O contraditório, possibilitando o funcionamento de uma estrutura dialética, que se manifesta na potencialidade de indagar e de verificar os contrários, representa um mecanismo eficiente para a busca da verdade. Mais que uma escolha de política processual, o método dialético é uma garantia epistemológica na pesquisa da verdade. As opiniões contrapostas dos litigantes ampliam os limites do conhecimento do juiz sobre os fatos relevantes para a decisão e diminuem a possibilidade de erro. No processo penal necessariamente haverá o contraditório, em razão da importância dos bens em jogo (...). Atualmente, na maioria dos sistemas processuais, há separação de funções entre acusar, julgar e defender. Além disso, as partes ainda conservam a sua iniciativa probatória, sendo, aliás, cada vez mais destacado o seu direito à prova.”
Na nota 87 do Capítulo I desta mesma obra, Badaró reforça a investigação defensiva, conhecida na Itália como indagine difensiva, sendo regulamentada pelo Conselho Federal da OAB em 2018. Citando Tucci, Badaró também afirma que há uma tendência em exagerar na enunciação dos princípios, considerando meras regras concretas como se princípios fossem (nota nº 1 do Capítulo I).
Já em “Epistemologia Judiciária e Prova Penal” (Revista dos Tribunais, 2019), o mesmo autor leciona:
“Diante da perigosa força expansiva da “tentação inquisitória”, o reconhecimento de poderes instrutórios exige que já tenha sido delimitada a acusação, bem como concluída a produção de todas as provas requeridas pelas partes. Essa demarcação do caráter subsidiário dos poderes instrutórios do juiz é condição para que se respeite a posição prioritária reconhecida ao direito à prova das partes.”
Como regra geral, as alegações finais devem ser realizadas oralmente (art. 403, caput, CPP), contudo, há a possibilidade de certas situações a sua apresentação se dá por escrito (art. 403, § 3º, e 404, parágrafo único, CPP), mas na prática forense, é quase sempre realizada por escrito, no prazo de 05 (cinco) dias. É importante lembrar que nas alegações finais, o órgão do MP incursiona na análise das provas. A peça é estruturada em relatório, fundamentação e pedido. No relatório, é feita uma análise histórica do processo, em busca de possíveis nulidades insanáveis. Caso o trâmite tenha seguido o devido processo legal, inicia-se o cotejo das provas na fundamentação, com exame da materialidade e da autoria. Neste momento também é feita a análise do elemento subjetivo (dolo, culpa ou elemento subjetivo específico exigido pelo tipo penal). Em seguida, são examinadas as qualificadoras, majorantes, agravantes, atenuantes, concurso de crimes, circunstâncias favoráveis e desfavoráveis, personalidade, antecedentes e dosimetria. Por fim, há o exame acerca da desclassificação delitiva, a suspensão condicional da pena, a substituição por pena restritiva de direitos e o regime de execução. Em regra, a substituição pela pena alternativa de prestação de serviços à comunidade, quando cabível, prefere à mera suspensão da pena ou a aplicação do regime aberto.
Como visto, as alegações finais vão além de uma mera “opinião”, como indicado pela literalidade do artigo 385 do CPP, adentrando o MP profundamente no exame das provas. Caso o órgão do MP se depare com causa excludente de ilicitude, como legítima defesa, pode se manifestar indicando não restar alternativa senão requerer a absolvição do acusado pelo delito imputado. Pode ainda não alcançar a convicção acima de dúvida razoável para um veredicto condenatório. Essa convicção pode perfeitamente ser alcançada posteriormente pelo órgão de controle do MP, e depois pelo juiz. Esses filtros garantem um processo équo.
Podemos exemplificar com novas modalidades de prova. Após um receio inicial, as provas genéticas, com análise do DNA, foram internalizadas na prática forense. O mesmo ocorre agora com as provas neurocientíficas. Em obra sobre o tema, João Daniel Rassi analisou tanto testes antigos, como o polígrafo, quanto exames modernos, como fMRI e PET (in “Neurociência e Prova no Processo Penal”, editora Tirant Lo Blanch Brasil, 2020). No prefácio deste livro, Gustavo Badaró aponta a complexa relação entre Direito e as ciências naturais, com a obra representando uma nova página no Direito Processual Penal brasileiro, aprimorando sua qualidade epistemológica. Importante destacar que no direito norte-americano, o uso de evidências da neurociência e da genética comportamental já é uma realidade, contando com inúmeros levantamentos empíricos que atestam sua eficácia. Essas modalidades probatórios têm se espalhado por outras jurisdições. Não há o que temer. Armin Alimardani realizou um levantamento em 2023 na jurisdição australiana, constatando que na maioria dos casos essas evidências foram utilizadas para abrandar as penas. Mesmo diante de provas objetivas e cientificamente robustas, a convicção entre os atores processuais pode se mostrar fluida. Por isso, é necessário conciliar a liberdade epistemológica destes atores na análise da prova em sentido lato, seja ela composta por indícios, prova acusatória, prova defensiva ou contraprova.
Os votos vencido e condutor citados na petição inicial da ADPF 1122 também examinaram os institutos correlatos no âmbito do direito norte-americano, como “decision on prosecution motion to withdraw counts”, que ocorre quando a promotoria retira a acusação, vinculando o posicionamento do juiz. No instituto do “plea bargaining”, a promotoria pode negociar com o acusado, acordo este que também vincula o juiz. Nos Estados Unidos, a discricionariedade da acusação se aplica em diferentes fases de um caso criminal, seja ao prestar queixa, na negociação dos acordos de confissão ou no aceite de confissões de culpa. No direito brasileiro, essa liberdade em dispor da ação penal foi bastante limitada.
Neste âmbito, é preciso esclarecer algumas diferenças terminológicas no direito processual penal estadunidense. O termo “acquitted” é destinado ao réu que teve a inocência comprovada. Já o termo “not guilty” é destinado ao réu “não culpado” acima de dúvida razoável. Por fim, o termo “desmissal” se refere à rejeição da acusação por falta de provas suficientes para apoiar um caso. Essas diferenças terminológicas nem sempre possuem uma fronteira objetiva. O mesmo ocorre no direito brasileiro. O artigo 386, IV, do CPP, que prevê a absolvição por estar provado que o réu não concorreu para o crime, encaixando-se iniludivelmente no termo “acquitted”. No entanto, o encaixe dos incisos VI e VII é mais flexível. Afinal, diferenciar no caso concreto a “fundada dúvida sobre a existência do crime” e a “não existência de prova suficiente para a condenação” nem sempre é uma tarefa fácil. Já a rejeição da denúncia no direito pátrio é tratada no artigo 395 do CPP, cujo inciso III alude à falta de justa causa, que são indícios de autoria e materialidade que sustentam uma acusação, assemelhando-se ao “desmissal” anglo-saxão. Sobre esse tema, José Carlos Barbosa Moreira publicou em 2000 uma brilhante análise intitulada “O Processo Penal Norte-Americano e sua Influência”, quando era Desembargador do TJRJ.
Apesar dessa limitação em solo pátrio, tem crescido um movimento visando conferir uma liberdade regrada para a acusação. Túlio Fávaro Beggiato publicou um artigo analisando o instituto da “Prosecutorial Discretion” (Boletim Científico ESMPU, nº 47, jan/jun de 2016), onde aponta a ausência no Brasil de norma expressa positivada que obrigue o exercício da ação penal em todos os casos. Segundo ele, essa ideia surgiu pela interpretação do art. 24 do CPP, conforme o escólio de Tourinho Filho, uma vez que esse dispositivo dispõe que a ação penal “será iniciada”, utilizando assim a forma imperativa. Para Beggiato, a discricionariedade da ação penal é compatível com o princípio da indisponibilidade, que não se confunde com a obrigatoriedade. No âmbito da perseguibilidade, ele defende uma oportunidade regrada, tal como já ocorre no processo coletivo.
No julgamento do REsp. n 1.521.239/MG pela 6ª Turma do STJ em 2017, da relatoria do Ministro Rogério Schietti, restou decidido que o art. 576 do CPP dispõe que o MP não pode desistir do recurso, o que reforça a indisponibilidade da ação penal pública. Esse entendimento tem sido cada vez mais contestado no âmbito doutrinário.
A Associação de Juízes Federais - AJUFE emitiu duas notas técnicas de nºs 04/2018 e 03/2021, analisando os artigos 450 e 481 do PL 8.05/2010, que possuem o mesmo teor. Esse projeto de lei visa aprovar um novo Código de Processo Penal. O artigo 54 do PL dispõe que o MP não pode desistir da ação penal. O PL altera o art. 385 do CPP, dispondo que o juiz estará vinculado à manifestação do MP no caso de absolvição. Segundo a AJUFE, a obrigação de o juiz absolver agride a independência judicial. Para ela, depositar a sorte do processo penal exclusivamente nas mãos do órgão acusador significa pender a balança tão somente em favor do acusado. Isso cria uma vinculação ao órgão julgador que não existe sequer dentro do próprio MP. De fato, a independência funcional garante que um órgão do MP recorra pleiteando a condenação, mesmo que um membro anterior tenha se manifestado pela absolvição.
Na Ação Penal nº 976, a 1ª Turma do STF decidiu em 2020 pela validade do art. 385 do CPP, mas com a necessidade de um “ônus de fundamentação elevado”, caso o magistrado contrarie a posição do MP, conforme as palavras do Ministro Roberto Barroso. Trata-se de uma construção jurisprudencial. Assim, uma mera avaliação diversa da prova pelo magistrado não supriria esse critério. Entendemos que esse ônus estaria suprido com a avaliação pelo juiz, seguida pela apreciação pelo órgão de revisão ministerial. Esse procedimento não restringiria a independência funcional dos membros do MP preconizada no artigo 127, §1º, da CF, afinal, a titularidade da ação penal é da instituição, e não de um integrante em particular, conforme dispõe o artigo 129, I, da CF/88.
Guilherme Nucci lembra que o art. 60, III, do CPP prevê a perempção da ação penal privada, com a extinção da punibilidade do réu caso o querelante não requeira nas alegações finais a condenação. Segundo suas palavras, vige uma política de pena mínima no Brasil, não havendo contraditório nas agravantes e circunstâncias judiciais. Assim, luta-se pela condenação (MP) ou pela absolvição (defesa), mas não pela pena justa.
Importante lembrar que na ação penal privada, o MP não pode recorrer em caso de absolvição. Mas caso o querelado seja condenado, o MP pode recorrer pleiteando o aumento da pena.
Os arts. 7º, I, e §2º, e 18 do Estatuto da OAB também preveem a liberdade funcional do advogado. A Lei Complementar n. 80/1994 prevê a independência funcional dos defensores públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. Desta forma, os defensores públicos podem recusar a defesa de casos que contrariem os direitos humanos. Mas se aceitarem o múnus, não podem alegar escusa de consciência ou pedir a condenação do assistido, ainda que na pena mínima. Segundo Mirabete, enquanto o MP pode pedir a absolvição do acusado, o advogado de defesa está vedado concordar com a condenação, sob pena de nulidade absoluta da sentença condenatória. Essa nulidade pode ser reconhecida em sede de revisão criminal, a teor do art. 621, I, do CPP. Isso porque a expressão “lei penal” constante deste dispositivo é interpretada de forma ampla, abrangendo os princípios constitucionais. Esse entendimento é extraído da Súmula 523 do STF, aprovada em 1969.
Isso implica uma flexibilização do sistema acusatório, conciliando a independência funcional do defensor, do MP e do juiz. Nesse sentido, a condenação acima da dosimetria proposta pelo órgão do MP nas alegações finais é plenamente possível.
O art. 28 do CPP também é aplicado na análise dos pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, conforme entendimento da Súmula 696 do STF, aprovada em 2003, com base na interpretação dos artigos 77 e 89 da Lei 9.099/95. Idêntico procedimento é aplicado no acordo de não persecução penal e no aditamento à denúncia. Essa solução acomoda a independência dos juízes na apreciação epistemológica das provas judicializadas no sistema acusatório.
Afinal, após o indiciamento, é necessário filtrar o que sobra dos indícios utilizados pelo delegado de polícia depois de plenamente exercido o contraditório pelo acusado. No caso do aditamento à denúncia e alegações finais, por exemplo, a análise já recairá em provas judicializadas, e não apenas sobre indícios.
3 - Interpretação conforme à Constituição.
Na decisão do Inquérito 3.438/2015, o STF definiu que, “como a manifestação nos presentes autos provém do próprio Procurador-Geral da República, ainda que esta colenda turma dela dissentisse, a negativa deveria prevalecer, porquanto a Constituição Federal conferiu a titularidade da ação penal ao Ministério Público, à qual intimamente ligada à possibilidade de propor a suspensão condicional do processo e a transação.”
De seu turno, no RE 593.727, julgado em 2015, o STF reforçou o sistema acusatório, conferindo o poder de conduzir investigações criminais ao MP. Em recente julgado na ADI 4693/BA, o STF suspendeu a eficácia de norma do RITJBA que permitia à corte arquivar, sem prévio pronunciamento do MP, inquéritos que investigam juízes.
Esses julgados reforçam o sistema acusatório propugnado pela CF/88 e adotado explicitamente pelo STF. No entanto, o sistema acusatório à brasileira difere do sistema puríssimo americano e inglês e puro do direito continental europeu, por exemplo. Daí a necessidade de acomodar interesses distintos.
Nesse tema, é importante lembrar que o Inquérito n. 4.781 do STF tem conotações semelhantes às críticas formuladas na petição inicial da ADPF relacionadas ao Estado Novo de Vargas. A Procuradora Regional da República Raquel Branquinho discorreu com profundidade acerca dos reflexos deste inquérito no sistema acusatório preconizado pela CF/88 (Boletim Científico ESMPU n. 55, jan/dez 2020). De igual modo, Beatriz Ferrari Pilla publicou um artigo em 2022 sobre a crise no sistema acusatório, estendendo sua análise para além do Inquérito 4781, incluindo também a decisão na ADPF 572.
Desta forma, a despeito da jurisprudência consolidada do STF pelo sistema acusatório, é preciso fazer menção às exceções inquisitoriais patrocinadas pela própria corte. No âmbito dessas exceções, a PGR já se manifestou com contundência em diversas oportunidades de forma contrária à reunião das funções de investigar, acusar e julgar.
Além desse cuidado com precedentes de caráter excepcional, é preciso também ter em mente a ética jurídica e literária. Pode-se exemplificar essa questão com a fundamentação da posição doutrinária adotada por meio da inclusão de excertos descontextualizados de autores estrangeiros, como mostrou Douglas Fischer. Outra questão são os votos discordantes que se fundamentam no mesmo autor, mesmo adotando posições inteiramente contrárias. Ou a citação de um autor que defende uma posição em determinado sentido, para fundamentar uma decisão em sentido contrário à posição deste mesmo autor.
Ainda há Ministros que citam julgados de outros ministros para reforçar sua tese, ainda que os ministros citados pensem diferente do ministro que os citou. No caso do julgamento do STJ em 2023 sobre a validade do artigo 385 do CPP, a fundamentação do voto vencido contém julgados relatados pelo ministro que proferiu o voto vencedor. Além das mudanças de entendimento individual dos ministros acerca do tema, como assumido pelo próprio Ministro Sebastião Reis Júnior. Também se observa alteração no entendimento dos autores, a depender do ano da edição de suas obras.
Obviamente, o debate jurídico não é exato, sendo normal opiniões diferentes e mudanças de entendimento. No que toca ao artigo 385 do CPP, a sua invalidade é sustentada por duas vias: a não recepção pela CF/88 ou sua derrogação tácita pela Lei nº 13.964/2019, com base na incompatibilidade manifesta de que trata o art. 2º, §1º, da LINDB. Os que advogam pela sua validade ressaltam a necessidade de respeitar a função jurisdicional e a independência dos juízes.
O voto vencedor do Ministro Schietti fez menção também ao necessário controle judicial da atuação do órgão do MP, caso este atue com parcialidade na sua manifestação pela absolvição. Ao rebater esse argumento, a petição inicial da ADPF 1122 se reportou ao artigo 104 do CPP, indicando que o correto nesses casos é a declaração de suspeição do membro do MP. Aqui também reforçamos que a aplicação do art. 28 supriria esse vício.
Para dirimir essa contenda, a 3ª Seção do STJ poderia lançar mão de uma interpretação sistemática, tal como preconizado pela Ministra Laurita Vaz, no voto que proferiu seguindo a divergência inaugurada pelo Ministro Schietti. Seria uma alternativa à derrogação por incompatibilidade.
No entanto, entendemos que o melhor caminho seja uma decisão do STF calcada na contenção, mediante a técnica da interpretação conforme à CF/88, com aplicação analógica do art. 28 do CPP. Essa técnica é plenamente aplicável no julgamento de ADPF. Além disso, a jurisprudência do STF é no sentido de que a corte não se vincula ao pedido do autor da ação, nem à fundamentação por ele utilizada, sendo ambos abertos. Logo, mesmo não constando no capítulo dos pedidos, pode o STF aplicar essa técnica de julgamento, conferindo efeito vinculante para as demais instâncias.
Essa via preserva o modelo acusatório preconizado na CF/88 e na jurisprudência consolidada do STF (salvo as exceções já indicadas), mantendo o MP como titular da ação penal. A solução também se adéqua aos princípios do devido processo penal e do contraditório. Afinal, a escolha pelo modelo acusatório não é o mesmo que vestir uma armadura, sem nenhuma flexibilidade. Parafraseando o Ministro Schietti, não se pode jogar o bebê fora junto com a água suja. Mesmo se livrando do viés inquisitivo, há regras específicas que podem conviver harmoniosamente com o ordenamento constitucional, desde que adaptadas a seus preceitos fundamentais.
Essa solução preserva a independência judicial e o princípio da jurisdição. Com a aplicação do art. 28 do CPP, na conformação que o STF atualmente lhe conferiu, a atuação do órgão do MP ficará sob a supervisão judicial e ministerial. E todos estarão livres para avaliar a prova segundo suas convicções.
Desta forma, é preciso ter em conta a necessária harmonização do artigo 385 do CPP com a Lei Anticrime, na interpretação encampada pelo STF na ADI 6298, conforme acórdão publicado em dezembro de 2023. Antes da Lei Anticrime, o juiz homologava o arquivamento. Com a nova lei, o juiz foi alijado dessa análise. O STF encampou uma interpretação intermediária, incluindo o juiz no rol de legitimados para encaminhar os autos ao órgão revisional do MP. Assim, segundo o atual entendimento da corte, tanto as vítimas e seus representantes legais quanto o juiz poderão encaminhar os autos para o órgão de controle do MP, que pode ser o PGR/PGJ, Conselho Superior ou Câmara de Coordenação e Revisão.
Caso seja determinada sua atuação como “longa manus” do órgão de controle, o membro do MP deverá necessariamente se manifestar pela condenação, se assim o órgão entender, estando assim o juiz livre para absolver. Se o órgão de controle mantiver o entendimento pela absolvição, e o membro do MP for designado para atuar como “longa manus”, deverá ele necessariamente reiterar a manifestação pela absolvição, e o juiz estará vinculado a esta manifestação. Mas após ser proferida a sentença de absolvição, estará novamente livre o membro do MP, ou outro membro que venha a substituí-lo, para postular a condenação em grau recursal.
Entendemos que a cognição probatória realizada no âmbito do controle do arquivamento não difere substancialmente da avaliação das provas nas alegações finais. Ambas são realizadas mediante atividade intelectiva, com o cotejo das provas e da imparcialidade do membro do MP.
No escólio de Sarlet, Marinoni e Mitidiero (“Curso de Direito Constitucional”, 6ª edição, Saraiva, p. 1248):
“A interpretação conforme a Constituição, ao contrário do que pode fazer supor o seu nome, não constitui método de interpretação, mas técnica de controle de constitucionalidade. (...) Alegando-se na petição inicial a inconstitucionalidade de uma norma, a ação de inconstitucionalidade é julgada improcedente quando o Tribunal verifica que esta norma tem sentido conforme à Constituição. Este sentido, evidenciado na fundamentação, é delineado no dispositivo, de modo a se fixar regra que evidencie a constitucionalidade da norma. O resultado na decisão que realiza ‘interpretação conforme’, portanto, não apenas expressamente exclui o sentido ou interpretação sugerido para a norma pelo autor da ação de inconstitucionalidade, mas declara que, mediante determinada interpretação, a norma é constitucional. Demonstra-se que a norma não tem o sentido proposto na ação de inconstitucionalidade, mas que, quando adequadamente compreendida, tem sentido que é conforme à Constituição. Trata-se, desse modo, de limitação das possibilidades do texto legal, que fica restrito à interpretação definida na decisão.”
No item 20 do acórdão do STF nas ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, decididas em agosto de 2023, com acórdão publicado em 19/12/2023, a corte realizou uma interpretação conforme do art. 28, §1º, do CPP, para incluir o juiz no pedido de revisão da matéria no órgão ministerial competente, além da vítima e seus representantes. O acórdão possui 1.216 páginas, com 67 expositores. Inicialmente, foi analisada a legitimidade da AMB e CONAMP, preliminar que restou superada. Depois do julgamento, foram interpostos embargos declaratórios pela PGR, visando excluir as notícias de fato da supervisão judicial. Isso porque esse procedimento já é regulado pela Resolução do CNMP nº 174/2017, não havendo necessidade de controle sobre o seu arquivamento. Já o PIC é regulado pela Resolução do CNMP nº 181/2017, e permanece sujeito à supervisão judicial.
Assim, defendemos uma dupla interpretação conforme, manejando a interpretação conforme do artigo 28 do CPP na interpretação conforme do artigo 385 do mesmo código. Essa analogia “iuris” com o art. 28 do CPP não servirá como método de autointegração para suprir lacuna normativa, que sequer existe. Mas sim como técnica de julgamento para conformação constitucional.
As alegações finais do MP não se confundem com a denúncia. São peças diferentes com efeitos e estruturas distintas. As alegações finais não alteram a denúncia, que permanece íntegra. Apenas o aditamento é capaz de fazê-lo. Contudo, as alegações não se qualificam como uma mera opinião, como faz parecer a redação do artigo 385 do CPP. Quando homologadas pelo órgão revisional do MP, transmudam-se em uma verdadeira requisição, ainda que parcial, para o só caso de postular a absolvição, em decorrência do desinteresse do titular da ação penal.
Tal como referido por Goldschmidt (órgão de segundo grau) e por Paulo Queiroz (artigo 28 do CPP), a interpretação conforme do artigo 385 do CPP, como indicado por Norberto Avena, é o melhor caminho para adequar o dispositivo aos preceitos fundamentais da CF/88. Obviamente, esse caráter de requisição da homologação das alegações finais não se estende às demais manifestações ministeriais, como as contrarrazões recursais e os pareceres.
4 - Conclusão
Na época da exposição de motivos do CPP, o processo penal se limitava a reger casos envolvendo réus desvalidos, assim permanecendo por mais de meio século. Contudo, nos últimos anos, após intensa pressão social e mudança no perfil da composição das cortes, o CPP passou a reger casos envolvendo réus abastados, inclusive membro de poder, trazendo novos olhares para o artigo 385 do CPP que buscaram reforçar o garantismo penal em detrimento do punitivismo.
Segundo Afrânio Silva Jardim, o questionamento do art. 385 do CPP só surgiu 70 anos após sua vigência. Caso o entendimento pela sua invalidade fosse aplicado ao júri, haveria subtração da competência constitucional do Tribunal Popular, já que o juiz não poderia pronunciar o réu se o órgão do MP pedisse sua absolvição em alegações finais, ao fim da fase acusatória.
Apesar da paridade de armas, o STF chancela algumas exceções, a fim de remediar o desequilíbrio entre as partes no processo penal. Com base nele, o ônus da prova recai sobre a acusação e a defensoria possui prazo em dobro. E pelo princípio do favor rei, em caso de duas interpretações antagônicas, prevalece a mais favorável ao acusado. Seria o caso de duas interpretações antagônicas sobre um dispositivo legal, ou igualmente se aplicaria à interpretação das provas? Neste último caso, pedindo o MP a absolvição, com homologação pelo órgão revisional, e o juiz entendendo pela condenação, seria o caso de prevalecer a situação mais favorável ao acusado.
De igual forma, a questão da heurística do juiz na análise das provas, tão debatida no contexto do juiz das garantias, com competência limitada até a denúncia, conforme entendimento do STF no acórdão publicado em dezembro de 2023, é restrita à situação em que há prejuízo ao réu? Ou se aplica nos dois sentidos? Pode o juiz ser contaminado psicologicamente pelo contato epistemológico com as provas da defesa? Entendemos que esses questionamentos podem ser contornados pela atuação do STF no controle de constitucionalidade, por meio da aplicação do artigo 28 do CPP.
Em suma, o escrutínio dos indícios leva ao indiciamento, exclusivo do delegado de polícia. Ao MP e ao juiz não cabe o desindiciamento. Esse escrutínio é novamente realizado pelo MP ao denunciar e pelo juiz ao aceitar a denúncia. Já nas alegações finais, o escrutínio é realizado sobre provas judicializadas, sob o pálio do contraditório. Caso se manifeste pela absolvição, as provas serão novamente examinadas, desta vez pelo juiz. Analisando as provas e discordando da manifestação nas alegações, o juiz pode encaminhar à instância de revisão ministerial. Esse órgão de controle fará nova análise das provas, bem como da imparcialidade do membro atuante. Caso homologue a manifestação pela absolvição, não havendo nenhuma suspeição do membro atuante, o juiz estará adstrito a este entendimento. A diferença precípua é que a aplicação analógica do art. 28 do CPP no sursis e no arquivamento se dá sobre a análise de indícios, e não de provas judicializadas. Por sua vez, se assemelha à aplicação do artigo 28 no ANPP e aditamento. Essa solução acalma os ânimos, mantendo a independência judicial e ministerial na condução do feito, e mantém as garantias constitucionais do réu.
O efeito prodrômico é geralmente analisado no princípio “non reformatio in pejus” indireta, que tem base no artigo 617 do CPP. Significa uma limitação na independência do julgador, que fica vinculado à dosimetria anterior, não podendo aumentar a pena do réu, ou mesmo piorar sua situação, a exemplo da diminuição da pena mas com reconhecimento da reincidência, que afeta a execução. No caso do efeito prodrômico nas alegações finais, haveria uma limitação ao juiz para a própria condenação, e não dosimetria.
Por fim, como visto, a jurisprudência do STF indica que a manifestação da PGR pela concessão da suspensão do processo e transação penal é vinculativa para a Suprema Corte, já que não há órgão de revisão neste caso. O mesmo deve ser aplicado para a manifestação da PGR em alegações finais, quando requisita a absolvição, no caso de ação penal originária no STF em decorrência do foro privilegiado.
5 - Referências
Avena, Norberto. Processo Penal, editora Método, 12° edição, 2020.
Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal, editora Revista dos Tribunais, 9ª edição, 2021
Bonfim, Edison Mougenot. Curso de Processo Penal, editora Saraiva, 14° edição, 2024.
Dezem, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal, editora Thomson Reuters, 7ª edição, 2021.
Filho, Eduardo Espínola. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Volume IV, editora Bookseller.
Filho, Vicente Greco. Manual de Processo Penal, editora Saraiva, 8ª edição.
Fischer, Douglas. Sistema Acusatório nos 35 Anos da CF/88, Thoth editora, 2023
Junior, Aury Lopes. Direito Processual Penal, editora Saraiva, 17ª edição, 2020.
Marcão, Renato. Curso de Processo Penal, editora Saraiva, 8° edição, 2023.
Neto, Lira. Getúlio 2, editora Companhia das Letras, 2013.
Pacelli, Eugênio. Curso de Processo Penal, editora Atlas, 25ª edição, 2021.
Sarlet, Ingo. Marinoni, luiz Guilherme. Mitidiero, Daniel. Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, 6° edição, 2017.
Távora, Nestor. Rodrigues, Rosmar. Curso de Processo Penal e Execução Penal, editora Juspodivm.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. O Efeito Prodrômico das Alegações Finais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 maio 2024, 04:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65243/o-efeito-prodrmico-das-alegaes-finais. Acesso em: 23 dez 2024.
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Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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