O presente ensaio busca traçar uma linha divisória na intervenção do Estado na economia, a fim de identificar medidas que tenham a finalidade de efetivamente contribuir para a eficiência do mercado, em detrimento da intervenção ineficiente, que pode ocorrer tanto por razões político-ideológicas, margeando o totalitarismo econômico, como para alimentar o ego dos agentes públicos.
Após a redução da burocracia no mercado com a reforma tributária, que deu um sopro de alívio aos agentes econômicos, conclui-se pela necessidade de uma outra reforma, que contenha a voracidade da intervenção estatal na economia com medidas esdrúxulas e ineficientes.
Antes de mais nada, é importante deixar claro que essa intervenção não ocorre apenas pela via administrativa, por atuação dos gestores públicos. Mas também na via legislativa e judicial. De fato, diariamente, em todo o país, vereadores, deputados, membros da DP, do MP e do Judiciário buscam intervir no equilíbrio de mercado, seja na forma de Projetos de Lei ou Ações Civis Públicas, afetando a atividade econômica local, regional ou nacional. Essas intervenções vão desde a regulação do valor cobrado por estacionamentos até o fechamento de fábricas, com a consequente abertura em outras praças. No extremo, essas medidas travam investimentos e levam empreendimentos à ruína.
Doutrinariamente, a intervenção do Estado na economia se divide em atividades regulatórias, de que trata o artigo 174 da CF/88, e na própria prestação da atividade econômica pelo Estado, prevista no artigo 173 da CF/88. O primeiro dispositivo trata da função regulatória do Estado em termos específicos, tanto no setor público quanto no setor privado. Ele difere do art. 170 da CF/88, onde a própria Constituição regula a economia em termos amplos.
Conforme Eros Grau, o inciso I do art. 170 se refere à soberania econômica nacional, que significa definir programas de políticas públicas voltadas não ao isolamento econômico, mas a viabilizar a participação da sociedade brasileira, em condições de igualdade, no mercado internacional. Em reforço, o art. 172 da CF/88 regula o investimento de capital estrangeiro com base no interesse nacional.
A doutrina constitucionalista, na esteira de Vital Moreira, afirma existir uma verdadeira Constituição Econômica incrustada na Carta Magna. O histórico constitucional dessas normas remonta à Constituição de 1934, que foi influenciada essencialmente pela Constituição de Weimar de 1919 (a constituição mexicana de 1917 a precedeu por dois anos, mas exerceu pouca influência). O percurso normativo mostra uma estreita relação com as intercorrências econômicas de cada época. Com o artigo 172 não é diferente. Quando se instalou a Constituinte em 1987, um dos maiores problemas econômicos do Brasil era o endividamento externo.
Diferentemente da “soberania nacional” tratada no art. 170, I, o artigo 173 fala em “imperativo da segurança nacional”, que é vinculado à defesa nacional, cuja competência legislativa é privativa da União, por força do art. 22, XXVIII, da CF/88. Já o “relevante interesse coletivo” previsto no mesmo dispositivo abre uma brecha para um rol extenso, posto que relacionado ao Direito Econômico, de competência concorrente entre União, Estados e DF.
Com isso, foram criadas centenas de empresas estatais, numa média de 11,6 estatais por Estado-membro, totalizando 302, que se somam às 135 estatais da União. Essa exploração econômica pelo Estado pode ocorrer em regime de monopólio e em regime de participação.
Esse inchaço da máquina pública pode trazer ineficiência à economia. Como exemplo, a estatal Ceitec da União, criada em 2008, sempre foi deficitária, com o tesouro nacional cobrindo 90% de suas despesas todo ano. Ela é conhecida como estatal do boi, por inicialmente ter visado a instalação de chips para o rastreamento de gado. Já houve tentativas de aliená-la, mas não ocorreram ofertas. O TCU a considera estratégica, impedindo sua extinção, mas a empresa responde por menos 2% das patentes de semicondutores no país. Esse resultado finalístico, atrelado ao prejuízo que causa anualmente em seu balanço, gera sérias dúvidas acerca de seu encaixe no conceito constitucional de “relevante interesse coletivo”. No mesmo passo, centenas de estatais passam pelo mesmo dilema.
Além da ineficiência, pode haver fisiologismo, com a captura política. Examinando dispositivos da Lei n° 13.848/2019, que rege as agências reguladoras, o STF não autorizou indicações de políticos para seus cargos diretivos.
No que toca às empresas estatais, contudo, o Ministro Ricardo Lewandowski concedeu uma liminar em 16/03/2023, suspendendo a mesma proibição que constava na Lei nº 13.303/2016, o que permitiu a nomeação de milhares de políticos. Com base nessa decisão, a Petrobras alterou em dezembro de 2023 o art. 21 de seu estatuto, liberando indicações políticas na empresa. Em fevereiro de 2024, o próprio Ministro Lewandowski passou a integrar o governo, assumindo a pasta da Justiça, ao passo que seu antecessor foi nomeado ministro do STF. O caso reacendeu o debate acerca da indicação de políticos para a Suprema Corte, e o movimento inverso, com a nomeação de integrantes do STF para cargos políticos
No que toca ao tratamento da atividade regulatória específica, o planejamento de que fala o caput do art. 174 é meramente indutivo ao setor privado, não tendo caráter coercitivo, o que decorre do sistema capitalista adotado pela CF/88. Desta forma, o Estado não pode substituir os controladores dos empreendimentos privados. O termo “controle” constava na redação original do dispositivo, mas foi retirado na fase final dos trabalhos constituintes. Essa indução se dá por meio do fomento, e não pelo uso do poder de polícia. Como exemplo, uma empresa privada de planos de saúde pode ser obrigada a comunicar os casos de epidemia que verifique, mas não a tratar pessoas que não sejam suas clientes. De igual modo, as universidades privadas podem ser obrigadas a divulgar sua produção científica, em decorrência do interesse geral no avanço da ciência. Não seria concebível que descobertas científicas na área de informática ou saúde, por exemplo, ficassem restritas a uma única instituição. Por outro lado, o Estado não pode obrigar bancos privados a ofertar linhas de microcrédito.
De outro giro, algumas intervenções possuem apelo inclusivo, mas têm baixo efeito prático, como a Portaria Ministerial nº 504/1949, que garantiu a distribuição gratuita de livros em braile. Essa medida teve o efeito contrário, resultando em preços muito elevados para um universo de meio milhão de deficientes visuais no Brasil. Outro exemplo vem da cota de tela nos cinemas. Ela existe desde 1932, com o art. 13 do Decreto nº 21.240 de Getúlio Vargas. Foi reforçada na época da Embrafilmes e prorrogada até 2033 pela Lei nº 14.814/2024. A medida estabelece uma reserva de mercado para os filmes nacionais, além de injetar recursos públicos na sua produção. Como resultado, os filmes nacionais se tornaram muito mais caros que filmes de outros países, como Chile, Argentina e Espanha. Além disso, muitos filmes com orçamento alto foram exibidos para menos de mil espectadores em todo o país. Seria mais sensato seguir as leis de mercado, como fez a Índia com a criação de bollywood, que atraiu muitos investidores privados, interessados no retorno financeiro que os filmes trazem, tanto no cinema como no streaming.
Esse pendor interventivo não é inédito no Brasil. No decorrer do século XX, o país assistiu a inúmeros planos econômicos e medidas de intervenção, em especial em épocas de crise. Foi assim com o encilhamento, uma bolha de crédito que estourou na virada dos séculos XIX e XX, causada pela liberação de créditos sem controle. Foram conferidos poderes extraordinários aos condutores do plano, que trouxe uma explosão inflacionária. Como resultado, houve uma intensa perseguição aos seus formuladores, com Ruy Barbosa se exilando na Europa.
A intervenção do Estado na economia costumava ocorrer em épocas de crise econômica, desde a Mania das Tulipas, que eclodiu em fevereiro de 1637 nos países baixos, quando um bulbo da flor passou a valer mais que uma boa moradia. Mas precipitou para o totalitarismo. Com o livro “A Riqueza das Nações”, lançado em 1776, Adam Smith buscou combater o intenso intervencionismo da época. É desse período o estabelecimento das Leis Intoleráveis pela Inglaterra em 1774, com o fechamento do porto de Boston, nos Estados Unidos. Essas leis só foram derrubadas após a Batalha de Yorktown em 1781, quando os rebeldes e as forças francesas se uniram para derrotar o exército inglês, que reconheceu a independência dos EUA. No Brasil, a abertura dos portos às nações amigas só foi estabelecida com o decreto de 1808.
Pouco antes, em 1788, o governador do Brasil Visconde de Barbacena recebeu ordens da Coroa para a derrama, com a execução das fintas no equivalente a uma tonelada e meia de ouro por ano, sufocando economicamente os senhores das minas. No ano seguinte, eclodiu a conjuração mineira. Esse movimento pela independência teve forte inspiração nas ideias iluministas francesas que combatiam as monarquias absolutistas, impondo um totalitarismo econômico. Mas ao contrário da independência dos EUA, as forças francesas não enviaram soldados para a luta, pois já haviam amargado muitos prejuízos no primeiro conflito.
O intervencionismo estatal pode atingir tanto os empreendedores quanto os trabalhadores. Em 1791, a Lei Chapelier proibiu os sindicatos e as greves na França, com base no contrato social de Rousseau, prevendo punições drásticas, como a pena de morte. Em 1795, a República Helvética se tornou um símbolo dessa intervenção, com o estabelecimento da centralização pelo governo napoleônico na Suíça. Tanto que em 1995, os 200 anos desse episódio histórico foram celebrados em diversos cantões suíços, mas não a nível federal.
No livro “A Grande Transformação: As Origens de Nossa Época” (editora Campus, 2000), Karl Polanyi cita com destaque o fim do feudalismo na Europa, que proporcionou a venda da força de trabalho humana e da terra, mediante o pagamento de salários e aluguel.
Atualmente, essa intervenção surge na forma da tutela estatal, desprezando a liberdade e autonomia do trabalhador.
O ministro da fazenda de Vargas, o advogado Oswaldo Aranha, também interferiu duramente na economia entre 1931 e 1934, para tentar aplacar os efeitos da crise de 1929.
Para conter os efeitos da crise, a opção da União Soviética foi abolir a propriedade privada dos meios de produção. Já no mundo capitalista, a saída foi abolir a abundância. A Inglaterra reduziu drasticamente seus estoques têxteis. No Brasil, houve a destruição de 30% da colheita de café em 1936.
Duas medidas interventivas que costumam causar estragos à economia são o congelamento de preços e das poupanças. A primeira foi adotada no governo Sarney, com a chancela do STF. A segunda foi adotada no governo Collor, com o STF analisando ações de indenização por décadas.
Poucos anos depois, a medida foi novamente adotada pelo governo argentino, no episódio do corralito, no final de 2001, decorrendo daí uma intensa convulsão social no país.
Como regra, os governos no Brasil sempre adotaram uma sequência de duas fases em suas gestões. A primeira é uma fase de saneamento financeiro e econômico, que consome metade do mandato. Ela é seguida por uma fase de empreendimentos e realizações. Essa lógica é adotada desde o governo de Campos Sales e Rodrigues Alves, passando pela era Vargas até os dias atuais.
Para conter esses excessos de intervenção, foi realizada uma reforma do Estado na década de 1990. A Lei Camata limitou os gastos públicos com pessoal, sendo reforçada pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Modernamente, por ocasião das olimpíadas no Brasil em 2016, foi criada a Autoridade Pública Olímpica, como uma autarquia, sendo transformada na Autoridade de Governança do Legado Olímpico pela Lei nº 13.474/2017. Apesar de terem sido investidos 40 bilhões de reais, o legado olímpico está em completo abandono. A melhor escolha seria seguir o exemplo de outras sedes, que inseriram o legado olímpico nas leis de mercado, atraindo a iniciativa privada em sua exploração.
Importante salientar que as crises não são causadas apenas por mercados desregulados, tal como ocorreu em 2008, mas também pela intensa intervenção estatal na economia, a exemplo das crises do petróleo na década de 1970 e as atuais crises vinculadas à invasão russa da Ucrânia e aos ataques de grupos terroristas apoiados pelo Irã no Oriente Médio.
Essa intervenção do Estado pode ocorrer tanto na macroeconomia, afetando políticas de rendas e de controle de preços e salários, quanto na microeconomia, atingindo o equilíbrio de mercado, a produtividade e os custos de produção.
O Estado intervém regulando o mercado financeiro, bancário e societário. Além de medidas econômicas e administrativas, o Estado impõe sanções penais para muitas condutas, estabelecendo crimes contra a ordem econômica, contra o consumidor, contra a economia popular e contra o mercado de capitais.
Também já existem propostas para regular o mercado de carbono por intermédio da criação de figuras penais. Ao lado das “ações penais de cobrança”, a que são nomeadas algumas ações penais pelo inadimplemento de tributos, surgiriam as “ações penais econômicas”, para forçar condutas ou omissões dos agentes econômicos no mercado. Trata-se de um caminho ineficiente, melhor moldado por meio de incentivos de fomento e sanções premiais.
Estas medidas interventivas na economia são quase sempre acompanhadas de um forte apelo populista. Mas não se pode perder de vista que todas as ditaduras impostas no mundo foram justificadas por causas nobres. Mesmo hoje, em todos os continentes, há ditadores que se apropriam de motivações louváveis para instituir um regime de exceção. Em palácios de Manágua, Caracas, Belarus, Cartum, Kabul ou Naipidau são proferidos diariamente discursos inflamados em prol da defesa da população.
A fiscalização do trabalho digno é um exemplo no Brasil. Muitas intervenções com a intenção declarada de proteger a dignidade do trabalhador são um mero disfarce para alimentar o ego inflamado do Estado. Trata-se de uma causa nobre, mas que na prática tem afetado o mercado de trabalho e prejudicado os trabalhadores. Não pode ser esquecido que o trabalhador também é um potencial consumidor. E contemporizar o conceito de trabalho digno enfraquece o combate a situações realmente dramáticas.
Alguns casos são emblemáticos, como o fechamento de fábricas de confecções em um estado, com a abertura em outro, com a consequente demissão em massa de empregados, e posterior recontratação no estado de destino.
Internacionalmente, há o caso da fábrica da Tesla em Delaware, com a intervenção judicial na disputa entre acionistas da empresa. Como resultado, o grupo empresarial foi realocado no Texas. Isso mostra que o investimento é fluido e procura ambientes favoráveis para se fixar.
F. A. Hayek nasceu no século XIX, em 1899, mas tinha o pensamento voltado para o século XXI. No livro “A Ordem Econômica e a Livre Iniciativa” ele compilou uma série de ensaios escritos entre as décadas de 1930 e 1940 em que critica a tutela estatal da economia. Segundo Hayek, os nomes mudaram, em virtude dos contínuos fracassos das teorias coletivistas, mas as propostas de intervenção estatal continuam a ser oferecidas com novas embalagens, como solução para os problemas do mundo globalizado. Após ser agraciado com o prêmio Nobel de economia na década de 1970, Hayek visitou o Brasil por três vezes, a última em 1981. Apesar de ter sido desprezado pelo governo e pela oposição em suas visitas, ele concedeu inúmeras entrevistas na imprensa. Nelas, Hayek defendeu que o lucro, e não o uso, é o sinal que organiza o mercado, e que é impossível centralizar a economia em um planejamento estatal.
Na jurisprudência do STF, a livre iniciativa é vista despida de um caráter absoluto, podendo o Estado intervir na economia para a correção de falhas de mercado, seja na tutela de direitos do consumidor ou para preservar a concorrência.
A esse respeito, no julgamento da repercussão geral sobre a liberação do transporte individual de passageiros, assomou o confronto entre, de um lado, a intensidade do princípio da livre iniciativa, e de outro, a proteção do consumidor e da livre concorrência. Em 2019, o STF julgou procedente a ADPF 449 por unanimidade. A ação foi proposta pelo Partido Social Liberal contra a Lei nº 10.533/2016 do município de Fortaleza, que proibiu o transporte de passageiros por aplicativos. A corte considerou a lei violadora dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, contrariando ainda a Lei nº 12.587/2012, que institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Os Ministros ressaltaram que a proibição também prejudica os consumidores, que terão seu direito de livre escolha suprimido.
Percebe-se desse julgamento uma mudança na polaridade dos princípios manejados. Inicialmente, a livre iniciativa estava em confronto com a concorrência e a proteção ao consumidor. Mas no decorrer dos debates, o transporte de passageiros por aplicativo uniu os três princípios no mesmo lado.
Entendemos que o caso também se relaciona com o princípio previsto no art. 170, VII, da CF/88, consistente na redução das desigualdades sociais e regionais. Afinal, antes dessa modalidade de transporte, o serviço de táxi era acessível apenas a uma pequena parcela da população, que ocupava os estratos mais abastados. Tanto que nas regiões menos desenvolvidas foi criada a modalidade de mototáxi como alternativa de transporte individual de passageiros. Atualmente, os aplicativos também cadastram motocicletas para o transporte individual de passageiros. Em países asiáticos, os aplicativos também oferecem transporte por tração humana, como as charretes.
O STF irá decidir se aplica a CLT aos motoristas de aplicativos. O tema já ganhou repercussão geral. A tendência é que a corte siga o entendimento turmário, e reforce o princípio da livre iniciativa, afastando o vínculo empregatício, tal como já ocorre com o transporte autônomo de cargas.
Uma regulação básica nessa área deve diferenciar o entregador de mercadorias e de alimentos dos motoristas que transportam passageiros. Porém, sem que a tutela do Estado engesse a flexibilidade e autonomia do trabalho.
De outro giro, o Partido Popular Socialista ingressou com a ADI 4637 buscando derrubar a exigência de 100 salários mínimos para a instituição de uma empresa individual de responsabilidade limitada - EIRELI. A ação confrontou a exigência do art. 980-A do Código Civil com o art. 7º, IV, da CF/88. Para o partido, esse piso representaria um obstáculo à livre iniciativa do pequeno empreendedor. No entanto, o STF julgou a ação improcedente, entendendo que a fixação do capital social da EIRELI em múltiplos do salário mínimo não caracteriza indexação, mas apenas uma referência. A corte considerou tratar-se de uma nova modalidade de pessoa jurídica, com caráter unipessoal, justificando o cuidado do legislador na sua criação.
Percebe-se que o princípio da livre iniciativa é manejado em ações de controle de constitucionalidade por partidos de distintos matizes ideológicos.
A jurisprudência do STF também aplicou esse princípio no julgamento da ADPF 324, reconhecendo a possibilidade de terceirização na atividade-fim. No julgamento do Tema 333, a corte reforçou a livre iniciativa ao negar a equiparação salarial entre terceirizados e empregados, por estar-se diante de agentes econômicos distintos, com decisões empresariais diversas.
O STF também aprovou as súmulas vinculantes 38 e 49, que possuem sentidos opostos. A primeira permite que lei municipal regule o horário de funcionamento do comércio local, limitando a livre iniciativa. O horário de funcionamento dos bancos é uma exceção criada pela jurisprudência por conta da necessidade de uniformidade nacional, diante da atividade de compensação bancária, estando sujeito exclusivamente à regulação da União. A segunda súmula vinculante proíbe que leis municipais impeçam a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área, fortalecendo assim o princípio da livre iniciativa. Os precedentes que deram origem à súmula vinculante nº 49 envolvem a instalação de farmácias. Atualmente, não é incomum encontrar cruzamentos com até quatro farmácias diferentes, uma em cada esquina. Em suma, no aspecto temporal, o STF limitou a livre iniciativa. Já no aspecto espacial, a Suprema Corte ampliou seu espectro, com a contenção da intervenção do Estado no mercado.
Neste contexto, é importante diferenciar a inconstitucionalidade material, quando atinge diretamente o princípio da livre iniciativa e da livre concorrência, da inconstitucionalidade formal orgânica, por falta de competência para legislar sobre o tema. A diferença entre ambas não é tão evidente na prática. Afinal, autorizar os entes subnacionais a regular o mercado aumenta as chances de afronta à livre iniciativa e à livre concorrência, em comparação com uma regulação uniforme de nível nacional da competência da União.
Alguns argumentam que, diante dos desequilíbrios de mercado, a intervenção do Estado teria uma função estabilizadora. Em contraste com essa estabilização forçada, por meio de medidas centralizadas do Estado, outros defendem uma estabilização natural feita pelo próprio mercado. Ela adviria das decisões dos agentes econômicos diante dos incentivos e da escassez provenientes da lei da oferta e da procura.
Acerca da primeira visão interventiva, Ian Bremmer pontua:
“O capitalismo estatal não configura o ressurgimento do planejamento central socialista em uma embalagem do século 21, mas uma forma de capitalismo criado de modo burocrático e específico para cada governo que o pratica. Trata-se de um sistema em que o Estado domina os mercados basicamente para fins de ganhos políticos. À medida que se desenvolve, essa tendência irá gerar atrito na política internacional e distorções na economia mundial. Existem ocasiões em que os governos precisam proteger seus cidadãos contra os efeitos mais nocivos dos mercados não regulados. Mas em um prazo mais longo, não há nenhuma evidência de que as autoridades políticas sejam melhores reguladoras da atividade econômica do que as forças de mercado.” (“O Fim do Livre Mercado”, editora Saraiva, 2011, pág. 32).
O capitalismo de Estado a que Bremner alude vigora em países como China, Rússia e Arábia Saudita, que se esforçam para difundir esse modelo pelo mundo. Esse esforço tem reverberado não apenas em mercados periféricos, mas também em economias centrais. De fato, Samuel Gregg alerta para esse efeito na recente obra “A Próxima Economia Americana”, publicada pela Encounter Books em 2022. No livro, ele disseca a onda recente de intervenções do Estado na economia americana, que estaria se espalhando pelo resto do mundo capitalista e liberal.
Essa intervenção pode mascarar muitos riscos. David M. Smick, autor do livro “O Mundo é Curvo: perigos ocultos para a economia mundial”, há muito alerta para uma possível crise econômica decorrente da bolha chinesa, que iria estourar, e não apenas murchar. Atualmente, há previsões econômicas similares relacionadas ao estouro de uma grande bolha imobiliária na China e em outros países do sudeste asiático, com potencial para desencadear uma crise global.
A visão interventiva pode chegar ao extremo da planificação da economia. Durante o século XX, a URSS passou por 12 planos quinquenais e um plano de sete anos. O último plano quinquenal, de 1991, não foi posto em prática por conta da dissolução do bloco. Esses planos tinham por base as necessidades dos agentes econômicos, mas estavam sujeitos a grandes intervenções estatais.
Ainda hoje há países que intervêm drasticamente em suas economias. A Turquia, mesmo compondo a União Europeia, conduz sua economia com mão de ferro, adotando medidas populistas arcaicas. O governo do país congelou artificialmente o preço do dinheiro, estipulando uma taxa de juros ilusória, na contramão das leis naturais de mercado. Como resultado, ostenta uma das maiores inflações do planeta. O governo argentino fez o mesmo com os preços de gêneros alimentícios, amargando uma hiperinflação crescente.
Samuelson e Nordhaus explicam como funciona a segunda visão:
“Uma economia de mercado é um mecanismo elaborado para coordenar pessoas, atividades e mercados. É um sistema de comunicação para colocar em contato o conhecimento e as ações de bilhões de variáveis e relações desconhecidas, problemas que estão muito além da capacidade do mais rápido supercomputador da atualidade. Ninguém projetou o mercado e, no entanto, ele funciona notavelmente bem. Em uma economia de mercado, nenhum indivíduo ou organização é isoladamente responsável pela produção, consumo, distribuição ou determinação do preço. Foi Adam Smith quem primeiro descobriu como uma economia de mercado organiza as forças complexas da oferta e da demanda. O texto de Smith foi escrito em 1776. Esse ano foi marcado também pela Declaração de Independência dos Estados Unidos. Não é coincidência que ambas as ideias tenham aparecido simultaneamente. Ao mesmo tempo em que os norte-americanos proclamavam a libertação da tirania, Adam Smith pregava uma doutrina revolucionária emancipando o comércio e a indústria dos grilhões da aristocracia feudal. Para ver como isso é extraordinário, considere a cidade de Nova York. Sem um constante fluxo de bens para dentro e para fora da cidade, os nova-iorquinos ficariam à beira da fome em uma semana. Mas, na realidade os nova-iorquinos estão economicamente muito bem. A razão é porque os bens viajam durante dias e semanas das zonas limítrofes, dos 50 estados dos Estados Unidos, e dos lugares mais distantes do mundo, tendo Nova York como destino. Como é possível que 10 milhões de pessoas possam dormir sossegadamente à noite sem viver o terror contínuo de colapso dos processos econômicos complexos? A resposta surpreendente é que, sem a repressão ou direção centralizada de ninguém, essas atividades econômicas são coordenadas por meio do mercado” (“Economia”, editora Bookman, 19ª edição, 2012, págs. 23/24).
Há algum tempo, Eugênio Gudin já alertava para o problema da intervenção do Estado na economia brasileira. Discorrendo sobre o projeto da nova constituição de 1967, ele ponderou:
“A referência à ‘Iniciativa Privada’, que na Constituição de 46 se encontra no início do capítulo (Art. 145), acha-se no projeto da nova Constituição no artigo 162, onde se diz: ‘As atividades econômicas serão preferencialmente organizadas e exploradas por empresas privadas com estímulo e apoio do Estado’; e que ‘o Estado só terá função supletiva à da iniciativa privada (§1º)’. O que quer simplesmente dizer que não seremos uma economia totalitária ou quase totalitária em que o Estado açambarca, cada vez mais, as atividades econômicas. Isto tem, preliminarmente, um sentido político, da maior relevância, porque onde o Estado é onipotente em matéria econômica, ele também o é em matéria política; no Estado Leviathan, não há lugar para as liberdades políticas nem para a democracia. Em segundo lugar, isso importa no reconhecimento de que o Estado sofre de sérios ‘handicaps’ na administração das empresas, Primeiro, porque é um órgão essencialmente político e porque a intromissão da Política nas empresas estatais, quase inevitável, é desastrosa. Segundo, porque as empresas do Estado não se integram no espírito da empresa privada, dinamizada de um lado pela necessidade do lucro, que é função dos custos de produção, e, de outro, pela ameaça da falência. Para as empresas do Estado que, como dizem os americanos, são tax free, rent free, cost free, não há perigo de falência, porque o Banco do Brasil aí está para socorrê-las.” (“Para um Brasil Melhor”, APEC editora, 2ª edição, pág. 74).
No que toca à atividade regulatória propriamente dita, o excesso de intervenção estatal pode ser constatado na ampliação das normas. Como exemplo, o Código de Regulamentações Federais dos Estados Unidos (CFR) tem mais de 103 milhões de palavras.
No Brasil, as regulações que incidem sobre os agentes econômicos são ainda maiores, encontrando-se dispersas em diversos atos normativos.
Uma comparação pode esclarecer essa rede emaranhada de normas. O CPC/1973 tinha cerca de 61 mil palavras. Já o CPC/2015 tem cerca de 95 mil palavras, um aumento de mais de 50%. A Lei Complementar n° 105 de 2001 regula o sigilo bancário em um texto enxuto e direto. Já o PL 2630/2020, que busca regular as fake news, e que também intervém no mercado, é repleto de dispositivos prolixos.
Percebe-se que as normas regulatórias na economia baixadas pelo Estado brasileiro crescem em tamanho anualmente, tanto de forma quantitativa quanto qualitativa. Especialistas de diversos setores indicam que esse inchaço diminui o crescimento econômico e os rendimentos.
Muitos levantamentos indicam que as camadas de menor renda são as mais atingidas por esse excesso regulatório. É necessário uma simplificação não apenas quantitativa, mas também qualitativa, com a utilização de linguagem clara e direta.
No Brasil, é comum se referir a esse excesso regulatório como uma forma de criar dificuldades para vender facilidades.
Reconhece-se que as regulamentações que garantem a segurança básica dos trabalhadores e dos consumidores trazem mais benefícios que custos. Mas em muitos países, essas intervenções vão muito além da segurança básica, inflando o ego de intervencionistas engastados na burocracia estatal.
De fato, as regulamentações protegem as empresas estabelecidas, limitando a entrada de novas empresas no mercado. Isso prejudica a concorrência e, por consequência, os consumidores. Os trabalhadores saem duplamente prejudicados, já que também são potenciais consumidores. Dentre os trabalhadores, a faixa mais jovem da população economicamente ativa é a mais afetada, frustrando a expectativa por uma ocupação no mercado.
Levantamento recente de Dustin Chambers, Courtney Collin e Alan Keause constatou que um aumento de 10% na regulamentação implica um aumento médio de 1% nos preços, havendo impacto direto na inflação.
O mesmo Dustin Chambers realizou outro levantamento recente, desta vez com Patrick McLaughlin e Laura Stanley, onde constatou que um aumento de 10% na carga regulatória está correlacionado a um aumento de 2,5% na taxa de pobreza.
A concorrência também é afetada. James B. Bailey e Diana W. Thomas divulgaram um estudo na Revista de Economia Regulatória intitulado "Regulamentar a Concorrência: o efeito da regulamentação no empreendedorismo e no emprego", em 25/10/2017. Os autores constataram que a regulamentação dissuade o empreendedorismo, aumentando os custos de entrada no mercado, reduzindo a inovação e beneficiando as grandes empresas, que podem superar os custos das regulamentações com mais facilidade que as empresas pequenas. Na nota 5 do estudo os autores reportam que as regressões estatísticas tiveram uma correlação significativa para o período selecionado.
Um levantamento importante foi realizado por Gérman Gutiérrez e Thomas Philippon, intitulado “Declínio da Concorrência e do Investimento nos EUA”, publicado em julho de 2017. Os autores encontraram evidências que mostram que o aumento da concentração de mercado pode ser explicado pelo aumento das regulamentações. Segundo eles, o incentivo à pesquisa e inovação se dá por fatores exógenos, como a concorrência chinesa. No estudo, eles utilizaram o índice Q de Tobin, que é a razão entre o valor de mercado das empresas e o custo de reposição do capital. Se esse índice for menor que 1, não é uma boa escolha investir na firma. Se for maior, os investimentos são incentivados. Ele é um indicador para saber se uma empresa está superestimada ou subestimada. Mas possui limitações, por conta da complexidade em mensurar adequadamente o capital necessário para a reposição do ativo circulante e da estimativa das amortizações. Todos esses estudos mostram que o excesso regulatório prejudica a economia como um todo, atingindo não apenas os empreendedores e investidores, mas principalmente os trabalhadores e consumidores.
Desse excesso pode decorrer a captura regulatória, quando os setores regulados capturam o processo regulatório para promover os interesses das empresas já estabelecidas. Como resultado, há menos opções no mercado.
Novamente, Samuelson e Nordhaus sintetizam:
Como deve ser redefinido o papel do governo na economia? Concluímos com três reflexões: 1-O governo combate as falhas de mercado, redistribui a renda, estabiliza a economia, lida com os assuntos internacionais e promove o crescimento econômico de longo prazo (...) A questão não é sobre o governo dever ou não regular a economia, mas sobre como e onde intervir. 2-Embora o governo desempenhe o papel central em uma sociedade civilizada, devemos reavaliar constantemente a missão e os instrumentos de suas políticas. O governo tem o monopólio do poder político, e isso impõe uma responsabilidade especial de operar de maneira eficiente. Cada centavo do governo gasto em programas esbanjadores podia ser usado para promover a pesquisa científica ou diminuir a fome. 3-Embora a Ciência Econômica possa analisar as principais controvérsias de políticas públicas, não pode ter a palavra final. Isso porque, subjacente a todos os debates sobre políticas públicas, há pressupostos normativos e juízos de valor sobre o que é justo e adequado. (“Economia”, editora Bookman, 19ª edição, 2012, pág. 298).
Na visão de Max Weber:
A velocidade, precisão, definição e continuidade fundamentais na execução de assuntos oficiais são exigidas da administração, em particular, na economia capitalista moderna. As grandes empresas capitalistas modernas são em si mesmas modelos inigualáveis de uma organização burocrática completa. O comando dos negócios se fundamenta na crescente precisão, continuidade e, em especial, na velocidade de operação. (“O Direito na Economia e na Sociedade”, Ícone editora, pág. 326).
Tanto que essa velocidade e eficiência no setor privado são atualmente cobradas no setor público. No âmbito judicial, o Documento Técnico nº 319 do Banco Mundial, publicado em 1996, trouxe um panorama do Poder Judiciário da América Latina e do Caribe. O texto propôs uma série de recomendações para tornar o serviço judicial mais eficiente, resumida na seguinte passagem:
“O aprimoramento dos procedimentos administrativos requer a revisão de sua existência em relação a ineficiência no gerenciamento de registros, gerenciamento do fluxo de processos , gerenciamento dos próprios processos, gerenciamento do volume processual e manutenção de estatísticas processuais e arquivos. Essas medidas têm um significativo impacto na redução da morosidade do Judiciário . Além da revisão dos procedimentos relativos à administração de processos, também é benéfico a inclusão de tecnologia de acompanhamento processual para auxiliar as Cortes na manutenção dos registros.”
Esse documento técnico suscitou grande debate sobre uma reforma do serviço público como um todo, e do serviço judicial em particular. Como resultado, a Emenda Constitucional nº 19/1998 incluiu o princípio da eficiência na CF/88. Em seguida, foi aprovada a reforma do judiciário pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Logo depois, teve início a informatização do Judiciário, que já incorporou programas de inteligência artificial em suas rotinas. Desde então, os órgãos de controle, como CNJ e TCU, passaram a cobrar a aplicação prática da eficiência no serviço público, tal como adotada na iniciativa privada, com metas e avaliações.
A intervenção populista do Estado na economia é uma forma de levar a ineficiência burocrática para a dinâmica de mercado, quando na verdade o anseio atual é pelo caminho inverso, com a aplicação da eficiência do mercado para o aparelho do Estado.
Na visão de Philip Kotler:
“Uma terceira maneira pela qual a política pode distorcer os resultados do capitalismo ocorre quando o governo interfere demais na operação do livre-mercado. (…) Deveria haver dispositivos para levar as agências reguladoras aos tribunais se seu poder se tornar excessivo ou abusivo. (…) As regulamentações e as políticas tributárias do governo claramente precisam ser submetidas a um processo periódico de revisão. Todas as regulamentações aprovadas precisam incluir um intervalo de tempo definido em que os resultados sejam revistos e a regulamentação possa ser alterada ou eliminada. (...) A corrupção acontece livremente em muitas ‘democracias’. Quando adicionamos o jogo da política ao quadro, os frutos esperados do capitalismo são reduzidos. Como já mostrado neste capítulo, a política distorce os resultados do capitalismo de quatro maneiras principais: o papel desempenhado pela ação de lobby; a extensão e o custo elevado do suborno e da corrupção; a necessidade das regulamentações do governo e de políticas tributárias apropriadas; lidar com o poder desproporcional dos super-ricos.” (“Capitalismo em Confronto”, editora Best Business, pág. 237/241).
Na visão de juristas clássicos, ainda persiste uma posição arcaica da liberdade de iniciativa. Por todos, confira-se o entendimento de José Afonso da Silva:
“É certamente o princípio básico do liberalismo econômico. Surgiu como um aspecto da luta dos agentes econômicos para libertar-se dos vínculos que sobre eles recaiam por herança, seja do período feudal, seja dos princípios do mercantilismo. (...) Cumpre, então, observar que a liberdade de iniciativa econômica não sofre compressão só do Poder Público. Este efetivamente o faz legitimamente nos termos da lei, quer regulando a liberdade de indústria e comércio, em alguns casos impondo a necessidade de autorização ou permissão para determinado tipo de atividade econômica, quer regulando a liberdade de contratar, especialmente no que tange às relações de trabalho, mas também quanto à fixação de preços, além da intervenção direta na produção e comercialização de certos bens. ( …) A mera supressão da propriedade dos meios de produção poderá gerar, sim, uma sociedade pós-capitalista, não socialista, consubstanciada num modo de produção diverso, que Samir Amin denomina estatismo ou modo de produção ‘estatista’. O problema do estatismo é que ele nem sempre importa na liberação do homem; não raro é despótico, tecnocrático, burocrático e gerador de uma nova classe dominante, como se reconhece no Estado produzido pela revolução russa, sem negar que o estatismo, assim mesmo, pode revelar-se uma força de progresso na medida mesma em que constitua uma ruptura com a mundialização do capitalismo.” (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, editora Malheiros, 31ª edição, 2008, pág. 794).
Por sua vez, no escólio de Uadi Lammêgo Bulos:
“O constituinte de 1988 optou por um ordenamento econômico composto. Por isso, a ordem econômica na Carta de 1988 está impregnada de princípios e soluções contraditórias. Ora abre brechas para a hegemonia de um capitalismo neoliberal, ora enfatiza o intervencionismo sistemático, aliado ao dirigismo planificador, ressaltando até elementos socializantes. (...) Nesse contexto, aparece o Estado capitalista, apoiado na propriedade privada dos meios de produção e na livre-iniciativa, gerando dificuldades e problemas complexos, a começar pela má distribuição de rendas, e terminando com os ‘pacotes financeiros’, que, via de regra, erigem insegurança e instabilidade. Resultado: a ordem constitucional econômica deve ser interpretada mediante exegese construtiva e sistemática, de modo a integrar os princípios gerais que a norteiam, com vistas a eliminar os seriíssimos conflitos desprendidos nesse campo. (...) Essa é a diretriz que a Corte Excelsa tem imprimido à matéria.” (“Curso de Direito Constitucional”, editora Saraiva, 12ª edição, 2018, pág. 1552).
De fato, há muito o STF tem rechaçado as sanções políticas na cobrança de impostos, uma forma drástica de intervenção estatal.
Já sob a égide da CF/88, o STF julgou a ADI 319 QO em 1993, da relatoria do Ministro Moreira Alves, referendando as medidas do governo Sarney que regularam a política de preços de bens e serviços. Segundo a corte, é preciso conciliar a livre iniciativa e a livre concorrência com a defesa do consumidor e a redução das desigualdades sociais, conforme os ditames da justiça social. Como a história mostrou, as medidas adotadas foram um fiasco.
Três anos depois, o STF julgou o RE 205.193, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello. O acórdão foi publicado em 06/06/1997, poucos dias após o relator ser empossado Presidente da Corte. Segundo a ementa, a possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o poder público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro e as razões de Estado (...) não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição.
Percebe-se uma mudança paulatina na postura da corte, que passou a conter a intervenção estatal na economia, como no julgamento do RE 422.941, realizado em 2005. Colhe-se da sua ementa: “A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica. O princípio da livre iniciativa é fundamento da República e da Ordem econômica. Fixação de preços em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor: empecilho ao livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa.”
Sobre o congelamento de preços por “razões de Estado”, o STF finalmente reconheceu a responsabilidade civil extracontratual neste caso. De fato, no julgamento do ARE 884.325 em 2020, a corte fixou a tese de que é cabível a responsabilidade civil do Estado em decorrência da fixação de preços no setor sucroalcooleiro, condicionada à comprovação de efetivo prejuízo econômico, mediante perícia técnica em cada caso.
Tratou-se de um claro recado ao governo para recuar em suas pretensões de congelamento de preços, ao passo que ao mesmo tempo livrou o Estado de pagar indenizações, já que a perícia indicada é de difícil realização prática.
Paulatinamente, a jurisprudência do STF passou a privilegiar a livre iniciativa em detrimento do intervencionismo desmedido do estado. Como exemplos recentes, a corte liberou a terceirização na atividade fim das empresas, inclusive estatais, no julgamento da ADC 48 em 2020.
Já no julgamento do RE 839.950 em 2018, o STF derrubou a obrigação de contratar empacotadores nos supermercados, com a manutenção artificial de postos de trabalho, em detrimento das reconfigurações de mercado necessárias à inovação e ao desenvolvimento.
No mesmo sentido, a corte julgou a Reclamação 56.285 em 2023, liberando a pejotização, desde que não configure fraude. E no julgamento do RE 1.254.871 em 2022, o STF derrubou o dispositivo de uma lei estadual fluminense que obrigava os estabelecimentos a ofertarem até quatro cachaças produzidas no estado. A corte considerou a lei uma indevida interferência na dinâmica econômica da atividade empresarial.
A corte também flexibilizou a livre iniciativa em casos pontuais, ao referendar recentemente uma proibição e uma obrigação impostas pelo Estado. A primeira se refere a uma lei federal que proíbe a venda de bebidas alcoólicas em rodovias, no julgamento das ADIs 4017 e 4103 em 2022. A segunda se refere a uma lei estadual que obriga a colocação de etiquetas em braile nas roupas, referendada no julgamento da ADI 6989 em 2023.
É preciso estar atento para proteger os consumidores e trabalhadores dos efeitos nocivos causados pela intervenção populista do Estado na economia, muitas vezes levada pela egomania de seus agentes.
O excesso regulatório traz consequências nefastas ao mercado, em especial para os consumidores e trabalhadores. Tanto que os estudos recentes recomendam a autorregulação em alguns setores do mercado, a exemplo do modelo blockchain adotado nos ativos virtuais. O Teorema de Coase igualmente privilegia uma solução negociada entre os agentes econômicos em detrimento de uma solução imposta pelo Estado.
É preciso reforçar o disposto na Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, aprovada pela Resolução nº 3281 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1974, fazendo valer o princípio da subsidiariedade da intervenção do Estado. Alguns entendem que não se trata de um princípio, mas apenas uma diretriz político-administrativa de organização do Estado.
A subsidiariedade tem origem na doutrina social da Igreja católica. A Encíclica quadragesimo anno, publicada pelo Papa Pio XI em 1931, foi um marco na adoção deste princípio, em meio às críticas à hipertrofia estatal em estados socialistas. Passados 60 anos, esse princípio foi reforçado na Encíclica Centesimus annus, do Papa João Paulo II.
À guisa de conclusão, muitos autores e cientistas discutem em debates acalorados qual foi a maior invenção na história da humanidade. Os textos sobre esse tema costumam relatar a escolha pela penicilina, bússola, prego, fogo, roda, GPS ou motor de indução e bomba hidráulica (essenciais no acesso à água). Mas sempre esquecem dois feitos memoráveis do engenho humano, cruciais à sobrevivência contra a tirania: as armas de fogo e o formalismo. Ambos passaram a proteger o homem contra a lei do mais forte, tanto individualmente quanto coletivamente.
No âmbito econômico, o formalismo impõe uma garantia mínima contra intervenções desmedidas do Estado. Em compasso com as nações desenvolvidas, foi introduzida no ordenamento pátrio a análise de impacto regulatório, como uma etapa formal que deve anteceder a intervenção estatal normativa na economia, prevista nas Leis 13.874/2019 e 13.848/2019, e regulamentada pelo Decreto n° 10.411/2020. Mas as agências reguladoras e demais órgãos normativos continuam pouco afetos a essa garantia econômica do cidadão. É preciso tornar essa análise de impacto regulatória plenamente aplicável e estendê-la para as demais modalidades de intervenção do Estado no mercado, como um filtro para medidas populistas que alimentam o ego dos agentes públicos.
Referências:
Bulos, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, 12ª edição, 2018.
Dimoulis, Dimitri. Fundamentação Constitucional dos Processos Econômicos: Reflexões sobre o Papel Econômico do Direito.
Gudin, Eugênio. Para um Brasil Melhor, APEC editora, 2ª edição.
Ian Bremmer. O Fim do Livre Mercado, editora Saraiva, 2011.
Kotler, Philip. Capitalismo em Confronto, editora Best Business.
Mendonça, José Vicente Santos de e Neto, Cláudio Pereira de Souza. Fundamentação e Fundamentalismo na Interpretação do Princípio Constitucional da Livre Iniciativa.
Polanyi, Karl. A Grande Transformação: As Origens de Nossa Época, editora Campus, 2000.
Samuelson e Nordhaus. Economia, editora Bookman, 19ª edição, 2012.
Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, editora Malheiros, 31ª edição, 2008.
Weber, Max. O Direito na Economia e na Sociedade, Ícone editora.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. Egotismo Estatal na Economia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 maio 2024, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65382/egotismo-estatal-na-economia. Acesso em: 23 dez 2024.
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