RESUMO: Trata-se de artigo que visa apresentar as principais correntes doutrinárias acerca da necessidade do licitante comprovar a regularidade fiscal e, consequentemente, da sua manutenção após a celebração do contrato administrativo, indicando o tratamento dado pela Lei n° 8.666/1993 e as polêmicas existentes em contraste com as soluções encontradas pela Lei n° 14.133/2021. Neste ponto, o presente trabalho delineia as três principais correntes existentes durante a vigência da Lei n° 8.666/1993 e indica os argumentos de destaque que compõe os respectivos entendimentos e, por fim, investiga a linha aparentemente adotada na Lei n° 14.133/2021. Ainda, analisa a jurisprudência do Tribunal de Contas da União e do Superior Tribunal de Justiça acerca da matéria e sua consequência quanto à possibilidade ou não de retenção dos pagamentos devidos à contratada durante a antiga Lei Geral de Licitações e Contratos e como ela foi (ou não) abarcada pela atual Lei n° 14.133/2021.
Palavras-chave: Licitação. Contratos Administrativos. Habilitação. Regularidade Fiscal. Dissenso Doutrinário. TCU. STJ. Retenção. Lei n° 8.666/1993 e Lei n° 14.133/2021.
O presente artigo visa apresentar e diferenciar as principais correntes doutrinárias acerca do alcance da exigência insculpida no art. 29 da Lei n. 8.666/1993, qual seja, necessidade de comprovação de regularidade, pelo licitante, com as Fazendas Públicas federal, estadual e municipal. A matéria ganha relevo na medida em que o art. 55 XIII da referida norma exige que o contratado mantenha ao longo de toda a execução do contrato administrativo as condições de habilitação. Cumpre destacar, ainda, que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativo (Lei n 14.133/2021, arts. 62 e 68), pela sua literalidade, pode não ter sanado a questão.
Neste mote, traz-se as três principais correntes acerca do alcance da norma, quais sejam, aquela que entende ser necessária a regularidade fiscal com todos os entes federativos, aquela que opina pela necessidade da regularidade fiscal apenas quanto aos tributos conexos ao objeto contratual e, por fim aquela que se orienta que a situação de regularidade com a Fazenda Pública deve perpassar, tão somente, os tributos de competência do ente licitantes. Nesta toada, o presente trabalho aponta os principais argumentos elencados pelos principais autores administrativistas que tratam do tema, bem como o posicionamento atual do Tribunal de Contas da União.
Por fim, por meio de análise da jurisprudência do STJ e do TCU, busca-se demonstrar a (in)viabilidade jurídica do ente contratante reter os pagamentos da contratada que não demonstrar a regularidade fiscal devida, bem como do ente licitante inabilitar a sociedade empresária que participa do certame licitatório sem apresentar o devido documento de regularidade fiscal.
2. DO DISSENSO QUANTO À ABRANGÊNCIA DA EXIGÊNCIA DE REGULARIDADE FISCAL EM LICITAÇÕES
Precipuamente, cumpre destacar que os temas mais polêmicos do Direito, em suma, advêm da dificuldade e dúvidas que o administrador público ou mesmo o operador do Direito possui acerca da aplicação prática da norma. Não é diferente com a problemática do alcance da exigência da regularidade fiscal em licitações.
Um exemplo prático que é a dicussão quanto à possibilidade do pagamento à contratada ou, a contrario sensu, da retenção do montante devido à sociedade empresária, ante a ausência de comprovação da regularidade dos encargos fiscais, especialmente com a União.
O tema não é novo, advindo desde as normas constantes na Lei n° 8.666/1993, mas que parece ter se perpetuado com a Lei n° 14.133/2021, vez que não houve significativa mudança na redação legal quanto à obrigatoriedade da regularidade fiscal, a ser observada na habilitação da licitação e durante a execução do contrato. Veja-se:
Lei n° 8.666/1993:
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
I - habilitação jurídica;
II - qualificação técnica;
III - qualificação econômico-financeira;
IV – regularidade fiscal e trabalhista;
V – cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal.
(...)
Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em:
(...)
III - prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;
(...)
Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:
(...)
XIII - a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação. (grifou-se)
Lei n° 14.133/2021:
Art. 62. A habilitação é a fase da licitação em que se verifica o conjunto de informações e documentos necessários e suficientes para demonstrar a capacidade do licitante de realizar o objeto da licitação, dividindo-se em:
III - fiscal, social e trabalhista;
(...)
Art. 68. As habilitações fiscal, social e trabalhista serão aferidas mediante a verificação dos seguintes requisitos:
(...)
III - a regularidade perante a Fazenda federal, estadual e/ou municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;
(...)
Art. 92. São necessárias em todo contrato cláusulas que estabeleçam:
(...)
XVI - a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições exigidas para a habilitação na licitação, ou para a qualificação, na contratação direta; (grifou-se)
Isto posto, da literalidade do inciso III do art. 29 da Lei n° 8.666/1993 e do inciso III do art. 68 da Lei n° 14.133/2021, pode-se, a princípio, concluir pela necessidade de comprovação da regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal para a celebração (e manutenção) dos ajustes firmados pela Administração.
O alcance da exigência de regularidade fiscal, contudo, é tema de sensível dissenso doutrinário e jurisprudencial, do qual pode-se identificar, ao menos, três entendimentos diversos sobre a matéria.
Em primeiro lugar, há importante parcela da doutrina que adota a interpretação literal da norma insculpida no art. 29, inciso III da Lei n° 8.666/93 e mantida no inciso III do art. 14.133/2021 (haja vista a manutenção quase integral da redação), de modo que deve ser comprovada, cumulativamente, a regularidade da sociedade empresária contratada com o fisco federal, estadual e municipal. Sob tal perspectiva, trata-se, em apertada síntese, de mecanismo legal voltado a garantir a isonomia no procedimento licitatório, uma vez que, em tese, o devedor contumaz poderia apresentar melhor proposta que os demais licitantes adimplentes com seus tributos, bem como de garantir a execução do contrato, afastando-se particulares cuja inadimplência possa indicar o comprometimento de sua capacidade em cumprir com o objeto contratual.
Nesse sentido, sustenta Flávio Amaral Garcia, in verbis[1]:
"Uma segunda corrente, que vem sendo majoritariamente aceita em todos os entes federados, entende que deve ser exigida a regularidade de todos os tributos com as respectivas Fazendas, eis que a preocupação é que o futuro contratado seja capaz de executar o objeto contratado, o que poderia ser dificultado no caso da existência de débitos reiterados inadimplementos no pagamento dos tributos devidos. O inadimplemento poderia, inclusive, prejudicar a isonomia na formulação das propostas, na medida em que um licitante que seja um contumaz devedor de tributos pode, em tese, apresentar uma proposta de preços mais competitiva.
Revendo o posicionamento anterior e o ângulo da proteção do interesse público e da própria segurança da contratação, essa interpretação é a que melhor se coaduna com as finalidades cogitadas pelo legislador."
Em segundo lugar, destaca-se a corrente que sustenta que a exigência de regularidade fiscal restringe-se aos tributos do ente federativo que promove a licitação. Deste modo, a comprovação da regularidade fiscal em procedimento licitatório promovido, por exemplo, por um estado ou entidade estatal estaria adstrita aos tributos estaduais.
Nesta toada, Marçal Justen Filho[2] explica, de forma crítica à interpretação literal do disposto na norma licitatória:
Somente é cabível exigir a comprovação da regularidade fiscal perante o ente federativo que promove a licitação. (...). Poderia acrescentar-se a vedação ao desvio de poder e o repúdio a interpretações fundadas exclusivamente no aspecto literal, sem qualquer respaldo por outros métodos hermenêuticas e conducente a resultado despropositado.
(...)
A redação do inc. III não é o critério fundamental para determinação de seu conteúdo jurídico. Portanto, deverá reputar-se que a regularidade a ser evidenciada é aquela perante o ente que promove a licitação.
Ademais, em terceiro lugar, relevante parte da doutrina sustenta que a regularidade fiscal relaciona-se apenas em relação aos tributos que incidem sobre a atividade do licitante e sobre o objeto da licitação.
Neste sentido, José dos Santos Carvalho Filho leciona ser mais coerente “o entendimento de que a inabilitação só deve ocorrer quando os débitos fiscais puserem em risco a garantia do cumprimento das futuras obrigações” (in Manual de direito administrativo. 33. ed. São Paulo: Altas, 2019. 438. p.).
No mesmo sentido, explicita Marçal Justen Filho:
“Mais precisamente, a existência de débitos para com o Fisco apresenta pertinência apenas no tocante ao exercício de atividade relacionada com o objeto do contrato a ser firmado. Não se trata de comprovar que o sujeito não tem dívidas em face da "Fazenda" (em qualquer nível) ou quanto a qualquer débito possível e imaginável. O que se demanda é que o particular, no ramo de atividade pertinente ao objeto licitado, encontre-se em situação fiscal regular. Trata-se de evitar contratação de sujeito que descumpre obrigações fiscais relacionadas com o âmbito da atividade a ser executada”. (in Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 560-561. p.).
Nesta esteira, Alexandre dos Santos Aragão[3] pondera que "[c]omo a aplicação de qualquer regra jurídica, a exigência de regularidade fiscal deve ser aplicada com razoabilidade e sem contrariar os seus próprios objetivos. Assim, por exemplo, entendemos que uma grande empresa, participando de uma grande licitação, não pode ser inabilitada por eventualmente estar devendo o IPVA de um de seus inúmeros veículos".
Por fim, deve-se destacar que a jurisprudência pátria não traz entendimento uniforme sobre a matéria. A título exemplificativo, veja-se algumas decisões prolatadas sobre o tema:
A exigência de regularidade fiscal deve estar adstrita aos tributos decorrentes do ramo de atividade das interessadas licitantes, em compatibilidade ao objeto licitado, nos termos do artigo 29, inciso II da Lei n° 8.666/93, devendo a Administração fixar objetivamente no instrumento convocatório a relação dos tributos que devem fazer parte do rol da documentação relativa à regularidade fiscal”. (TCE-SP - TC 8857.989.15-6).
“RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SERVIÇO DE CONSULTORIA. ARTIGOS 29 E 30, DA LEI 8.666/93. CERTIFICAÇÃO DOS ATESTADOS DE QUALIFICAÇÃO TÉCNICA. PROVA DE REGULARIDADE FISCAL JUNTO À FAZENDA ESTADUAL (…) A Lei 8.666/93 exige prova de regularidade fiscal perante todas as fazendas, Federal, Estadual Municipal, independentemente da atividade do licitante. Recurso especial provido. Decisão por unanimidade. (STJ, REsp nº 138745/RS, Rei. Min. Franciulli Netto, DJ de 25/06/2001)
Contudo, o Tribunal de Contas da União, aproximando-se da segunda corrente acima delineada, e afastando-se de sua jurisprudência tradicional, decidiu, ainda no bojo da Lei n° 14.133/2021, que “[o] art. 29 da Lei 8.666/1993 não exige prova da regularidade fiscal perante a fazenda municipal quando a licitação é realizada por órgão federal e com recursos da União” (Acórdão 2185/2020/Plenário), vez que o referido art. 29 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos lista a “documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso”.
Resta claro que a discussão acerca da extensão dos tributos exigidos na regularidade fiscal é questão polêmica, sem unanimidade na doutrina e na jurisprudência. Contudo, já nos últimos anos de vigência da Lei n° 8.666/1993, ao que parece, o Tribunal de Contas da União trouxe decisão próxima à corrente doutrinária que entende ser necessária a comprovação da regularidade fiscal apenas em relação aos tributos que incidem sobre a atividade do licitante e sobre o objeto da licitação.
Importante destacar, ainda, que, apesar de muito similar, houve sim, uma alteração importante trazida pela Lei n° 14.133/2021 na redação que trata a matéria.
No bojo da Lei n° 8.666/1993 era previsto que a prova de regularidade fiscal e trabalhista se referia a “regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal”. No entanto, a Lei n° 14.133/2021 exige a comprovação da “regularidade perante a Fazenda federal, estadual e/ou municipal”.
Ou seja, com a substituição da singular conjunção “e” para “e/ou” se pode verificar que houve um esvaziamento da linha doutrinária que entendia, em razão da literalidade da redação da antiga norma geral de licitações, era necessária a comprovação de regularidade com a Fazenda de todos os entes da federação.
A inclusão da conjunção alternativa, sem afastar a aditiva no rol dos entes federativos aos quais se deve comprovar regularidade encontra consonância com a recente decisão do TCU destacada no artigo.
Nesse sentido, leciona Marçal Justen Filho[4], se debruçando sobre a Lei n° 14.133/2021:
(...) o próprio inc. II do mesmo art. 68 exige que o sujeito comprove sua inscrição no cadastro municipal ou estadual pertinente ao ramo da atividade e compatível com o objeto licitado.
Não tem sentido adotar essa solução no inc. II e exigir, no inc. III, que o sujeito comprove regularidade fiscal em outros ramos, desvinculados do objeto licitado.
Se o sujeito não necessita comprovar inscrição cadastral fiscal em todos os ramos possíveis de sua atividade, não há sentido em submetê-lo a demonstrar regularidade fiscal inclusive quanto a esses outros ramos.
Portanto, não há cabimento em exigir que o sujeito — em licitação de obras, serviços ou compras — comprove regularidade fiscal atinente a impostos municipais sobre propriedade imobiliária ou impostos estaduais sobre propriedade de veículos. Nem há fundamento jurídico constitucional para investigar, por exemplo, se o sujeito pagou a taxa de polícia para a CVM e assim por diante. Todos esses tributos não se relacionam com o exercício regular, para fins tributários, da atividade objeto do contrato licitado. (grifou-se)
Deste modo, apesar de ainda ser necessário observar como as Cortes de Contas vão se posicionar, é possível (e, razoável) que seja alterada em definitivo a jurisprudência tradicional do TCU, para que seja, neste ponto, exigida a comprovação da regularidade fiscal tão somente em relação aos tributos que incidem sobre a atividade do licitante/objeto da licitação.
3. DA IMPOSSIBILIDADE DE RETENÇÃO DOS PAGAMENTOS FACE À AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL
Estabelecidas as premissas do tópico anterior, imperioso esclarecer se é viável o pagamento à contratada que não apresentou comprovante de regularidade fiscal.
Quanto à matéria, o Superior Tribunal de Justiça tem consolidada jurisprudência afastando a possibilidade de retenção do pagamento ante a ausência de comprovação da regularidade fiscal pela contratada, em razão, fundamentalmente, da ausência de previsão legal para tanto (princípio da legalidade) e, em ultima ratio, da vedação ao enriquecimento sem causa da Administração. Exemplifica-se:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATO. RESCISÃO. IRREGULARIDADE FISCAL. RETENÇÃO DE PAGAMENTO.
1. É necessária a comprovação de regularidade fiscal do licitante como requisito para sua habilitação, conforme preconizam os arts . 27 e 29 da Lei nº 8.666/93, exigência que encontra respaldo no art. 195, § 3º, da CF.
2. A exigência de regularidade fiscal deve permanecer durante toda a execução do contrato, a teor do art. 55, XIII, da Lei nº 8.666/93, que dispõe ser " obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas , todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação" .
[...]
5. Pode a Administração rescindir o contrato em razão de descumprimento de uma de suas cláusulas e ainda imputar penalidade ao contratado descumpridor. Todavia a retenção do pagamento devido, por não constar do rol do art. 87 da Lei nº8.666/93, ofende o princípio da legalidade, insculpido na Carta Magna.
6. Recurso ordinário em mandado de segurança provido em parte.” (RMS 24953/CE, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/03/2008, DJe 17/03/2008) (grifou-se).
ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. PAGAMENTO DE FATURAS. ILEGALIDADE DA PORTARIA 227/95, QUE CONDICIONA O PAGAMENTO À COMPROVAÇÃO DA REGULARIDADE FISCAL DA EMPRESA CONTRATADA. MATÉRIA PACIFICADA.
1. Discute-se nos presentes autos a legalidade da Portaria n. 227/95, que prevê a retenção de pagamento de valores referentes a parcela executada de contrato administrativo, na hipótese em que não comprovada a regularidade fiscal da contratada.
2. A pretensão recursal destoa da jurisprudência dominante nesta Corte no sentido da ilegalidade da retenção ao pagamento devido a fornecedor em situação de irregularidade perante o Fisco, por extrapolar as normas previstas nos arts. 55 e 87 da Lei 8.666/93. Precedentes: REs p 633432 / MG, rel. Minis tro Luiz Fux, DJ 20/6/2005;AgRg no REs p 1048984 / DF, rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 10/9/2009; RMS 24953 / CE, rel. Minis tro Cas tro Meira,Segunda Turma, DJe 17/03/2008.3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1313659 – Segunda Turma)
Nesse eito, em reforço, deve-se destacar que, consoante inteligência do art. 14 do Decreto-Lei n° 200/67, o trabalho administrativo deve ser racionalizado, evitando controles que se evidenciem puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco. Assim sendo, não se vislumbra benefício à Administração na retenção do pagamento de um serviço efetivamente prestado em razão atraso na comprovação da regularidade com tributos que, por vezes, não estão relacionados com o objeto contratual, ou seja, pelo qual o contratado sequer estaria conseguindo benefício indevido.
Ademais, ainda que seja verificada a irregularidade da contratada com tributos do ente federativo contratante, este possui melhores métodos para a cobrança do referido tributo, por meio de procedimentos judiciais e administrativos tributários específicos que melhor atendem o princípio da proporcionalidade.
Deve-se registrar, também, que, com a sanção da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n° 14.133/2021), o legislador teve a oportunidade de prever expressamente a retenção dos valores contraprestacionais em caso de inadimplemento do contratado em com obrigações trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
O art. 121 da Lei n° 14.133/2021 expressamente dispõe que o “contratado será responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato” (caput). Em sequência, ao longo dos parágrafos do referido artigo são apresentados desdobramentos dessa responsabilidade do contratado com as obrigações supra. Dentre estes, verifica-se a hipótese – única – de que, em contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, poderá o administrador, na elaboração do edital “condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas vencidas relativas ao contrato” (art. 121, §3º, II).
Ou seja, salvo melhor juízo, houve silêncio eloquente do legislador quanto à possibilidade de retenção de pagamento face a ausência de regularidade fiscal, razão pela qual esta conduta deve ser afastada.
Deste modo, não se vislumbra óbice jurídico ao pagamento da contratada que não apresente a comprovação de regularidade fiscal. Nada obstante, deve-se destacar que a manutenção dos requisitos de habilitação durante toda a execução do contrato é obrigação da contratada, que, descumprida, pode ensejar sanções contratuais e legais, bem como a rescisão unilateral do contrato pela Administração[5].
Desta feita, caso a Administração verifique a existência de conduta comissiva ou omissiva violadora do contrato, deverá notificar a contratada, a fim de informá-lo acerca da irregularidade, garantindo-se o contraditório, e a possibilidade de, se quiser, indicar os meios de prova que pretenda produzir, cabendo à Administração observar o cabimento ou não da defesa apresentada e, por fim, aplicar a sanção devida.
3. CONCLUSÃO
Hodiernamente, persiste sensível dissenso doutrinário e jurisprudencial acerca da abrangência da necessidade de prova de regularidade fiscal nas licitações e contratos administrativos. Contudo, com a vigência da Lei n° 14.133/2021, pode-se vislumbrar uma possibilidade de mudança e pacificação quanto à matéria.
Nesta senda, há, destacadamente, três correntes acerca do alcance da norma insculpida no art. 29 da Lei n. 8.666/1993, quais sejam: (i) necessidade de comprovação da regularidade fiscal com todos os entes federativos (interpretação literal da norma);(ii) necessidade da regularidade fiscal do licitante apenas quanto aos tributos conexos ao objeto contratual; (iii) necessidade do licitante comprovar a regularidade com a Fazenda Pública deve ater-se a regularidade com os tributos de competência do ente licitante.
Entretanto, a Lei n° 14.133/2021, em seu art. 68, III, consigna, expressamente, o dever do licitante (e, após, contratado) comprovar a “regularidade perante a Fazenda federal, estadual e/ou municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente”. Com a inclusão da conjunção alternativa entre os entes federativos, ao que parece, a nova Lei aproximasse da corrente doutrinária – adotada em decisões do TCU no final do ciclo legislativo da Lei n° 8.666/1993 – de que somente é necessária a comprovação da regularidade fiscal apenas em relação aos tributos que incidem sobre a atividade do licitante e sobre o objeto da licitação.
Sobre o tema da regularidade fiscal, cumpre destacar, ainda, que é majoritário na doutrina e jurisprudência hodierna que, após a celebração do contrato, é vedada a retenção dos pagamentos devidos à contratada sob justificativa de ausência de comprovação de regularidade fiscal, com fulcro no art. 92, XVI (art. 55, XIII da Lei n, 8.666/1993).
Neste mote, tanto o Tribunal de Contas da União quanto o Superior Tribunal de Justiça possuem jurisprudência recente entendendo ser vedada a retenção do pagamento ante a ausência de comprovação da regularidade fiscal pela contratada, em razão, fundamentalmente, da ausência de previsão legal para tanto (princípio da legalidade) e, em ultima ratio, da vedação ao enriquecimento sem causa da Administração.
Ademais, a Lei n° 14.133/2021 parece ter adotado, em seu art. 121, um silêncio eloquente quanto à possibilidade de retenção de pagamento ao contratado que não comprovar a regularidade fiscal. Isto pois a norma prevê, expressamente, às contratações de serviços continuados com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, ser possível condicionar o pagamento – desde que previsto no edital – à comprovação da quitação das obrigações trabalhistas. Em outras palavras, por escolha legislativa, o legislador escolheu, somente à referida hipótese, a possibilidade da Administração reter o pagamento em razão do descumprimento de algum requisito de habilitação previsto em lei.
Isto posto, é possível o pagamento, pela Administração Pública, a contratada que não apresente comprovação de regularidade fiscal, nada obstante o disposto no art. 55, XIII da Lei n. 8.666/1993. Destaca-se, contudo, que o referido dispositivo legal discorre sobre uma obrigação contratual a qual, descumprida, pode ensejar sanções contratuais e legais, bem como a rescisão unilateral do contrato pela Administração, desde que garantindo-se a ampla defesa e contraditório da contratada.
ARAGÃO, Alexandre dos Santos de. Curso de direito administrativo. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
BRASIL. Decreto-Lei n° 200, de 25 de fevereiro de 1967.
BRASIL. Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993. Dispõe sôbre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0200.htm> Acesso em: 03 jan. 2021.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de direito administrativo. 33. ed. São Paulo: Altas, 2019.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/2021. 1ª Edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
GARCIA, Flávio Amaral. Licitações e contratos administrativos: casos e polêmicas. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.
[1] GARCIA, Flávio Amaral. Licitações e contratos administrativos: casos e polêmicas. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. 228-229. p.
[2] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 563-564. p.
[3] ARAGÃO, Alexandre dos Santos de. Curso de direito administrativo. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2013. 596. p.
[4] FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/2021. 1ª Edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 870.
[5] Art. 137. Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações:
I - não cumprimento ou cumprimento irregular de normas editalícias ou de cláusulas contratuais, de especificações, de projetos ou de prazos;
Advogado, Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e graduado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOLIS, Luiz Eduardo Pimentel. A discussão acerca da regularidade fiscal e possibilidade de retenção do pagamento pela administração nos contratos administrativos – lei n° 8.666/1993 e Lei n° 14.133/2021 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2024, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65682/a-discusso-acerca-da-regularidade-fiscal-e-possibilidade-de-reteno-do-pagamento-pela-administrao-nos-contratos-administrativos-lei-n-8-666-1993-e-lei-n-14-133-2021. Acesso em: 23 dez 2024.
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