O presente trabalho busca demonstrar as vertentes do princípio da Legalidade no âmbito do Direito Administrativo, sendo assim, a análise do princípio será a partir da Constituição e das normas infraconstitucionais e sua repercussão no do Direito Administrativo como um todo, bem como a análise de decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A respeito do Princípio da Legalidade no âmbito da atuação da Administração Pública, o caput, do art. 37, da Constituição prevê o seguinte:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (destacamos)
Na mesma linha da Constituição, no âmbito do processo administrativo, o caput e o inciso I, do Parágrafo único, todos art. 2º, da Lei nº 9.784/99, estabelecem o seguinte:
Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I - atuação conforme a lei e o Direito; (destacamos)
Sobre o Princípio da Legalidade na atuação da Administração Pública, o Professor Hely Lopes Meirelles nos ensina o seguinte:
A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.
A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. É o que diz o inc. I do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784/99. Com isso, fica evidente que, além da atuação conforme a lei, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípios administrativos.
Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.[1]
No mesmo sentido, a respeito do Princípio da Legalidade na atuação da Administração Pública, a Professor Maria Sylvia Zanella Di Pietro, também nos ensina:
Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe.
[…]
Em decorrência disso, a Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei.
Assim, verifica-se que no âmbito da doutrina especializada administrativista, nos termos do caput do art. 37, da Constituição e da Lei nº 9.784/1999, a atuação da Administração Pública deverá obedecer ao Princípio da Legalidade, ou seja, na seara pública somente pode-se fazer o que a lei permite, atuar de acordo com a lei e com o direito.
Ocorre que a evolução do Direto Administrativo requer a atualização das vertentes do Princípio da Legalidade, não podendo falar somente em legalidade na atuação da Administração Pública.
Atualmente o Direito Administrativo possui vários microssistemas como por exemplo: o regime disciplinar do servidor público (Lei nº 8.112/90, no âmbito federal), a improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1993), o regime de conflito de interesses (Lei nº 12.813/2013, no âmbito federal), o regime de responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública (Lei nº 12.846/2013), além da atuação das Agências Reguladoras. Com isso, é necessário no âmbito do Direito Administrativo também falar de Princípio da Legalidade como Garantia Fundamental diante de sua vertente sancionatória.
Acerca do Princípio da Legalidade no âmbito criminal o inciso XXXIX, do art. 5º, da Constituição prevê o seguinte:
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; (destacamos)
Ainda sobre o Princípio da Legalidade no âmbito penal, o Doutor Cezar Roberto Bitencourt afirma o seguinte:
Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida. Assim, seguindo a orientação moderna, a Constituição brasileira de 1988, ao proteger os direitos e garantias fundamentais, em seu art. 5º, inc. XXXIX, determina que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.[2]
Com efeito, é necessário registrar que o inciso XXXIX, do art. 5º, da Constituição, trata do Princípio da Legalidade no âmbito criminal quando fala que não há crime sem lei anterior que o defina. No caso em debate requer a aplicação do Princípio da Legalidade no sentido de exigir previsão legal aos microssistemas do direito administrativo que estabeleçam sanções.
Ademais, é necessário consignar que o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343, fixou o entendimento que as normas internacionais de direitos humanos que o Brasil adotar possuem status supralegal[3], ou seja, estão abaixo da Constituição e acima da legislação infraconstitucional.
Ainda sobre as normas de direitos e garantias fundamentais e tratados internacionais adotados pelo Brasil, os §§ 1º e 2º, ambos do art. 5º, da Constituição estabelecem o seguinte:
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Dessa forma, constata-se que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata e que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros.
Vale registrar que o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, que sobre o Princípio da Legalidade seu artigo 9, prevê o seguinte:
ARTIGO 9
Princípio da Legalidade e da Retroatividade
Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado. (destacamos)
Nesse contexto, diferentemente do inciso XXXIX, do art. 5º, da Constituição, que fala em crime, a Convenção Americana fala em delito que é sinônimo de infração, ou melhor, ato que constitui infração estabelecida em lei.
Com isso, conclui-se que o citado art. 9, exige que para que seja garantido o Princípio da Legalidade é necessário que qualquer infração que impõe sanção esteja prevista em lei.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu no sentido de que o Princípio da Legalidade também se aplica aos casos de sanções não penais, senão vejamos:
Caso Habbal e outros VS. Argentina
96. O artigo 9 da Convenção Americana dispõe que: “Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.” Em relação a este dispositivo, esta Corte interpretou que o princípio da legalidade é aplicável não apenas ao campo penal, mas também que seu alcance se estende às sanções administrativas. A Corte indicou que as sanções administrativas são uma expressão do poder punitivo do Estado e que são, às vezes, de natureza semelhante às sanções penais. Ambos envolvem prejuízo, privação ou alteração dos direitos das pessoas, como consequência de conduta ilícita. Portanto, num sistema democrático é necessário tomar precauções extremas para que estas medidas sejam adotadas com estrito respeito pelos direitos básicos das pessoas e após verificação cuidadosa da existência efetiva da conduta ilícita.[4] (destacamos)
Diante do exposto, e considerando o art. 9, da Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito do Direito Administrativa, há duas vertentes do Princípio da Legalidade, sendo a primeira que norteia a atuação da Administração Pública e a segunda que é a Garantia Fundamental no sentido de que as infrações que importem sanções deverão estar previstas em lei.
Referências Bibliográficas
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. – Parte Geral. v. 1. 26. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acessado 31 mar2024.
BRASIL. Convenção Americana de Direitos Humanos. Pacto São José da Costa Rica. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm Acessado 31jmar2024.
BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm Acessado 31jmar2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343, rel. Min. Cezar Peluso. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444 Acessado em: 1º abr2024.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 89.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. – Parte Geral. v. 1. 26. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 120.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343, rel. Min. Cezar Peluso. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444 Acessado em: 1º abr2024.
[4] Tradução nossa. Texto original Disponível em: https://corteidh.scjn.gob.mx/buscador/doc?doc=casos_sentencias/seriec_463_esp.pdf#CAHAAR_S1_PARR61 Acessado 14 Mar2024. Texto original: CASO HABBAL Y OTROS VS. ARGENTINA
96. Asimismo, el artículo 9 de la Convención Americana dispone que: “Nadie puede ser condenado por acciones u omisiones que en el momento de cometerse no fueran delictivos según el derecho aplicable. Tampoco se puede imponer pena más grave que la aplicable en el momento de la comisión del delito. Si con posterioridad a la comisión del delito la ley dispone la imposición de una pena más leve, el delincuente se beneficiará de ello”. En relación con esta disposición, este Tribunal ha interpretado que el principio de legalidad es aplicable no sólo al ámbito penal, sino que, además, su alcance se extiende a la materia sancionatória administrativa. La Corte ha indicado que las sanciones administrativas son una expresión del poder punitivo del Estado y que tienen, en ocasiones, naturaleza similar a las sanciones penales. Unas y otras implican menoscabo, privación o alteración de los derechos de las personas, como consecuencia de uma conducta ilícita. Por lo tanto, en un sistema democrático es preciso extremar las precauciones para que dichas medidas se adopten con estricto respeto a los derechos básicos de las personas y previa una cuidadosa verificación de la efectiva existencia de la conducta ilícita.
Advogado inscrito na OAB/DF. Advogado Associado ao escritório de Advocacia: Arnaldo Lima & Barbosa e Moreira (Escritório do Ministro aposentado do STJ Arnaldo Esteves Lima). Especialista pelo UniCEUB em Prática Processual nos Tribunais
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Diogo Esteves. As vertentes do Princípio da Legalidade no âmbito do Direito Administrativo. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2024, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65718/as-vertentes-do-princpio-da-legalidade-no-mbito-do-direito-administrativo. Acesso em: 23 dez 2024.
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