RESUMO: O presente artigo analisa a possibilidade de ser extinta a punibilidade do condenado, independentemente do pagamento da multa penal, a partir da evolução do Tema 931 do Superior Tribunal de Justiça. No ponto de vista de seus objetivos, realizou-se uma pesquisa exploratória mediante o levantamento de bibliografia, em especial em doutrina e jurisprudência sobre o tema, levando em consideração o desenvolvimento histórico do tema. O estudo conclui que o Superior Tribunal de Justiça admite a extinção de punibilidade, independentemente do pagamento da pena de multa, quando o apenado for hipossuficiente, ressalvada a hipótese de o juízo demonstrar a possibilidade da quitação.
Palavras-chave: Pena de multa. Extinção de punibilidade. Hipossuficiência. Superior Tribunal de Justiça. Tema 931
INTRODUÇÃO
A multa é uma espécie de pena prevista no art. 5º, inciso XLVI, “c”, da Constituição Federal e art. 32, inciso III, do Código Penal, que pode ser aplicada de forma autônoma, alternativa, simultânea ou substitutiva a outra pena.
Trata-se do pagamento de valor em dinheiro que será revertido ao Fundo Penitenciário Nacional, conforme art. 49 do Código Penal.
O montante é fixado na sentença e calculado em dias-multa, tendo como parâmetro mínimo 10 (dez) e máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa e deve ser pago no prazo de 10 (dez) dias depois de transitada em julgado a sentença.
Até a entrada em vigor da Lei nº 9.286/96 o não pagamento da multa poderia resultar na prisão do condenado. Ocorre que, a referida legislação alterou o art. 51 do Código Penal e tornou a multa dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas referentes à dívida ativa da Fazenda Pública.
Apesar disso, a multa ainda possui caráter de sanção penal, de forma que a ausência do pagamento, em tese, seria um obstáculo para a extinção de punibilidade, o que gera reflexos no acesso a outros direitos pelo condenado.
O tema é de grande relevância para o Direito, uma vez que está presente no cotidiano jurídico, especialmente na seara penal e pode resultar em uma pena excessivamente onerosa, caso o hipossuficiente não tenha condições de pagar o valor fixado.
A matéria será analisada sob o aspecto da possibilidade da extinção de punibilidade para os acusados vulneráveis, em especial na perspectiva financeira, a partir da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, além da evolução legislativa e interpretativa, incluindo estudos de Direito Penal, Execução Penal e Direito Constitucional.
O presente estudo visa apresentar o atual entendimento da Corte Cidadã sobre o tema, as razões de decidir, bem como visualizar sua aplicação prática. Para tanto, buscou-se uma revisão de bibliografia aprofundada e ampla sobre o assunto, com base na evolução do Tema Repetitivo 931 do Superior Tribunal de Justiça e doutrinas que tratam sobre o tema, além de normas constitucionais e legais do ordenamento jurídico brasileiro.
A importância da análise do assunto se dá a fim de diferenciar, a partir de um critério socioeconômico, quando o apenado poderá ter sua pena declarada extinta, independentemente do pagamento da multa.
O artigo visa contribuir com o debate sobre as consequências ao apenado que não tem condições financeiras de pagar o valor da multa fixado na sentença e, portanto, não teria o direito de ter sua pena extinta.
1 PENA DE MULTA
A Lei nº 9.268/1996 alterou dispositivos do Código Penal, e fixou os seguintes termos quanto à pena de multa:
Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição. (Vide ADIN 3150)
Antes da referida mudança legislativa, conforme Giacomelli (2018), era possível a prisão daquele que deixasse de pagar a pena de multa. No entanto, com a entrada em vigor da supramencionada lei, em 1º de abril de 1996, essa possibilidade deixou de existir.
A Lei nº 13.964/2019 novamente alterou o texto legal para prever que a multa deve ser executada perante o juiz da execução penal, o que reforça sua natureza de sanção penal e ratificou a legitimidade para cobrança ao titular da ação penal, o Ministério Público, nos termos do art. 129, inciso I, da Constituição Federal.
O caráter da pena de multa tem previsão constitucional, e somente para fins de impedir a conversão em prisão, é que ela passou a ser tratada como dívida de valor, o que foi confirmado pelo STF na ADI 3.150 (SANTOS, 2022).
No mesmo sentido, Nucci (2023) esclarece que a alteração legislativa evita que a multa seja tratada como sanção civil, de forma que, por exemplo, com a morte do agente, seus herdeiros não podem receber esse ônus, em conformidade com a disposição constitucional de que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado” (art. 5.º, XLV).
2 EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE
A extinção da punibilidade, além das hipóteses do art. 107, do Código Penal, deve ser declarada com o cumprimento da pena aplicada.
O artigo 202 da Lei nº 7.210/1984 aponta, como consequência da extinção da pena, que não constará qualquer notícia ou referência à condenação na folha de antecedentes do apenado, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.
Assim, não reconhecida a extinção da punibilidade, torna-se impossível ao condenado a obtenção da certidão de antecedentes negativa.
Além disso, seus direitos políticos continuam suspensos (art. 15, inciso III, da Constituição Federal), e não tem início a contagem do período depurador, na forma do art. 64, inciso I, do Código Penal, que possui como requisito a extinção da punibilidade como marco inicial do decurso do tempo.
Sobre o tema, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça era no sentido de que bastaria o cumprimento da pena privativa de liberdade, ainda que não efetuado o pagamento da multa, para que fosse declarada a extinção da punibilidade:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE OU DE RESTRITIVA DE DIREITOS SUBSTITUTIVA. INADIMPLEMENTO DA PENA DE MULTA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.
1. Recurso Especial processado sob o regime previsto no art. 543-C, § 2º, do CPC, c/c o art. 3º do CPP, e na Resolução n. 8/2008 do STJ.
2. Extinta pelo seu cumprimento a pena privativa de liberdade ou a restritiva de direitos que a substituir, o inadimplemento da pena de multa não obsta a extinção da punibilidade do apenado, porquanto, após a nova redação dada ao art. 51 do Código Penal pela Lei n. 9.268/1996, a pena pecuniária passou a ser considerada dívida de valor e, portanto, possui caráter extrapenal, de modo que sua execução é de competência exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública.
3. Recurso especial representativo da controvérsia provido, para declarar extinta a punibilidade do recorrente, assentando-se, sob o rito do art. 543-C do CPC a seguinte TESE: Nos casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
(REsp n. 1.519.777/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 26/8/2015, DJe de 10/9/2015.)
No entanto, no julgamento dos Recursos Especiais Representativos da Controvérsia nº 1.785.383/SP e 1.785.861/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 21/9/2021), o Superior Tribunal de Justiça fixou a seguinte tese: "Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade."
Desse modo, o condenado que deixasse de pagar a multa, ainda que cumprisse a pena privativa de liberdade, não poderia ter sua punibilidade extinta e arcaria com todos os efeitos da condenação por longo prazo, até a prescrição.
3 PESSOA HIPOSSUFICIENTE
A nova orientação do Superior Tribunal de Justiça gerou grave problema, em especial para as pessoas hipossuficientes que não tinham condições de pagar a multa fixada, ainda que adotassem o parcelamento previsto no art. 50, caput, do Código Penal.
Isso porque, deve-se analisar a finalidade da pena com caráter pecuniário, além da voluntariedade no inadimplemento. O Relator, Min. Luís Roberto Barroso, em seu voto na EP 12 ProgReg-AgR reconheceu que a pena de multa deve ser severamente executada nos crimes contra a Administração Pública, a qual cumpriria a real função de evitar a prática desses crimes que envolvem recursos públicos.
Assim, a contrario sensu, nos crimes não relacionados à criminalidade econômica, o cumprimento da pena principal é o desejado.
Conforme Santos (2024) se as penas mais graves, ou seja, aquelas que restringem a liberdade, já foram cumpridas, deve ser declarada a extinção da punibilidade, uma vez que a multa seria apenas acessória. Assim, a ausência de pagamento pelo hipossuficiente impediria o retorno da dignidade do apenado, dificultando sua reinserção social, a começar pelo obstáculo na obtenção de um emprego formal, em razão da presença de condenação.
Desse modo, a pena de multa seria mais gravosa que a pena restritiva da liberdade, pois o apenado permaneceria com o rótulo de “criminoso” apenas pela ausência de recursos financeiros para pagar o montante fixado na sentença.
Nessa linha, impedir a extinção da punibilidade tão somente pelo não pagamento da multa, implica em admitir que centenas de milhares de condenados hipossuficientes ficarão estigmatizados pela miséria, pois não terão condições econômicas de quitar essa prestação pecuniária logo após a saída da prisão. Nesse viés, o art 5º, XLVI, da Constituição Federal prevê o princípio da individualização das penas, instituindo que a sanção deve ser adequada ao caso concreto e às circunstâncias do condenado (FIGUEIREDO, JUNQUEIRA e FULLER, 2021).
Desse modo, se a multa é excessivamente onerosa, há violação a esse princípio.
Com base nesses e em outros argumentos, o Superior Tribunal de Justiça deu nova interpretação ao Tema 931, nos seguintes termos:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. EXECUÇÃO PENAL. REVISÃO DE TESE. TEMA 931. CUMPRIMENTO DA SANÇÃO CORPORAL. PENDÊNCIA DA PENA DE MULTA. CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE OU DE RESTRITIVA DE DIREITOS SUBSTITUTIVA. INADIMPLEMENTO DA PENA DE MULTA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. COMPREENSÃO FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DA ADI N. 3.150/DF. MANUTENÇÃO DO CARÁTER DE SANÇÃO CRIMINAL DA PENA DE MULTA. PRIMAZIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA EXECUÇÃO DA SANÇÃO PECUNIÁRIA. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA DO ART. 51 DO CÓDIGO PENAL. DISTINGUISHING. IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PENA PECUNIÁRIA PELOS CONDENADOS HIPOSSUFICIENTES. PRINCÍPIO DA INTRASCENDÊNCIA DA PENA. VIOLAÇÃO DE PRECEITOS FUNDAMENTAIS. EXCESSO DE EXECUÇÃO. RECURSO PROVIDO.
1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial Representativo da Controvérsia n. 1.519.777/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 10/9/2015), assentou a tese de que "[n]os casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".
2. Entretanto, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.150 (Rel. Ministro Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-170 divulg. 5/8/2019 public.
6/8/2019), o Pretório Excelso firmou o entendimento de que a alteração do art. 51 do Código Penal, promovida Lei n. 9.268/1996, não retirou o caráter de sanção criminal da pena de multa, de modo que a primazia para sua execução incumbe ao Ministério Público e o seu inadimplemento obsta a extinção da punibilidade do apenado. Tal compreensão foi posteriormente sintetizada em nova alteração do referido dispositivo legal, levada a cabo pela Lei n. 13.964/2019.
3. Em decorrência do entendimento firmado pelo STF, bem como em face da mais recente alteração legislativa sofrida pelo artigo 51 do Código Penal, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Recursos Especiais Representativos da Controvérsia n. 1.785.383/SP e 1.785.861/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 21/9/2021), reviu a tese anteriormente aventada no Tema n. 931, para assentar que, "na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".
4. Ainda consoante o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal julgamento da ADI n. 3.150/DF, "em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa desempenha um papel proeminente de prevenção específica, prevenção geral e retribuição".
5. Na mesma direção, quando do julgamento do Agravo Regimental na Progressão de Regime na Execução Penal n. 12/DF, a Suprema Corte já havia ressaltado que, "especialmente em matéria de crimes contra a Administração Pública como também nos crimes de colarinho branco em geral , a parte verdadeiramente severa da pena, a ser executada com rigor, há de ser a de natureza pecuniária. Esta, sim, tem o poder de funcionar como real fator de prevenção, capaz de inibir a prática de crimes que envolvam apropriação de recursos públicos".
6. Mais ainda, segundo os próprios termos em que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela indispensabilidade do pagamento da sanção pecuniária para o gozo da progressão a regime menos gravoso, "[a] exceção admissível ao dever de pagar a multa é a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo. [...] é possível a progressão se o sentenciado, veraz e comprovadamente, demonstrar sua absoluta insolvabilidade. Absoluta insolvabilidade que o impossibilite até mesmo de efetuar o pagamento parcelado da quantia devida, como autorizado pelo art. 50 do Código Penal" (Rel. Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-111 divulg. 10/6/2015 public. 11/6/2015).
7. Nota-se o manifesto endereçamento das decisões retrocitadas àqueles condenados que possuam condições econômicas de adimplir a sanção pecuniária, de modo a impedir que o descumprimento da decisão judicial resulte em sensação de impunidade.
8. Oportunamente, mencione-se também o teor da Recomendação n. 425, de 8 de outubro de 2021, do Conselho Nacional de Justiça, a qual institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas Interseccionalidades, abordando de maneira central a relevância da extinção da punibilidade daqueles a quem remanesce tão-somente o resgate da pena pecuniária, ao estabelecer, em seu art. 29, parágrafo único, que, "[n]o curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa".
9. Releva, por seu turno, obtemperar que a realidade do País desafia um exame do tema sob outra perspectiva, de sorte a complementar a razão final que inspirou o julgamento da Suprema Corte na ADI 3.150/DF. Segundo dados do Infopen, até dezembro de 2020, 40,91% dos presos no país estavam cumprindo pena pela prática de crimes contra o patrimônio; 29,9%, por tráfico de drogas, seguidos de 15,13% por crimes contra a pessoa, delitos que cominam pena privativa de liberdade concomitantemente com pena de multa.
10. Não se há, outrossim, de desconsiderar que o cenário do sistema carcerário expõe as vísceras das disparidades sócio-econômicas arraigadas na sociedade brasileira, as quais ultrapassam o inegável caráter seletivo do sistema punitivo e se projetam não apenas como mecanismo de aprisionamento físico, mas também de confinamento em sua comunidade, a reduzir, amiúde, o indivíduo desencarcerado ao status de um pária social. Outra não é a conclusão a que poderia conduzir - relativamente aos condenados em comprovada situação de hipossuficiência econômica - a subordinação da retomada dos seus direitos políticos e de sua consequente reinserção social ao prévio adimplemento da pena de multa.
11. Conforme salientou a instituição requerente, o quadro atual tem produzido "a sobrepunição da pobreza, visto que o egresso miserável e sem condições de trabalho durante o cumprimento da pena (menos de 20% da população prisional trabalha, conforme dados do INFOPEN), alijado dos direitos do art. 25 da LEP, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa, e ingressa em círculo vicioso de desespero".
12. Ineludível é concluir, portanto, que o condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e de indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção da família (art. 226 da Carta de 1988).
13. Demais disso, a barreira ao reconhecimento da extinção da punibilidade dos condenados pobres, para além do exame de benefícios executórios como a mencionada progressão de regime, frustra fundamentalmente os fins a que se prestam a imposição e a execução das reprimendas penais, e contradiz a inferência lógica do princípio isonômico (art. 5º, caput da Constituição Federal) segundo a qual desiguais devem ser tratados de forma desigual. Mais ainda, desafia objetivos fundamentais da República, entre os quais o de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3º, III).
14. A extinção da punibilidade, quando pendente apenas o adimplemento da pena pecuniária, reclama para si singular relevo na trajetória do egresso de reconquista de sua posição como indivíduo aos olhos do Estado, ou seja, do percurso de reconstrução da existência sob as balizas de um patamar civilizatório mínimo, a permitir outra vez o gozo e o exercício de direitos e garantias fundamentais, cujo panorama atual de interdição os conduz a atingir estágio de desmedida invisibilidade, a qual encontra, em última análise, semelhança à própria inexistência de registro civil.
15. Recurso especial provido, para acolher a seguinte tese: Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
(REsp n. 1.785.383/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 24/11/2021, DJe de 30/11/2021.)
Nessa decisão foi estabelecido que é possível ao juízo da execução penal declarar extinta a punibilidade quando reconhecer que o inadimplemento da pena de multa não ocorreu por deliberado descumprimento do condenado, mas sim por ausência de condições financeiras para tanto.
Ocorre que, a interpretação dada ao novo entendimento era de que, caberia ao apenado comprovar a vulnerabilidade econômica. Assim, até mesmo o réu representado pela Defensoria Pública, precisaria provar sua hipossuficiência (AgRg no REsp 2.039.364-MG, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 25/4/2023, DJe 28/4/2023).
No entanto, no presente ano, o Superior Tribunal de Justiça aplicou distinguishing em relação ao Recurso Repetitivo REsp 1785383 e REsp 1785861, para fixar a nova tese do Tema Repetitivo 931, invertendo o ônus da prova:
“O inadimplemento da pena de multa, após cumprida a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, não obsta a extinção da punibilidade, ante a alegada hipossuficiência do condenado, salvo se diversamente entender o juiz competente, em decisão suficientemente motivada, que indique concretamente a possibilidade de pagamento da sanção pecuniária”.
Segundo o acórdão, seria suficiente a declaração de hipossuficiência por parte do condenado, a qual teria presunção de veracidade, nos mesmos termos do art. 99, § 3º, do Código de Processo Civil, segundo o qual "presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural". Assim, haveria a inversão do ônus da prova, cabendo ao órgão ministerial desconstituir a declaração e demonstrar a possibilidade de pagamento da sanção pecuniária.
A partir do exposto, revela-se necessária uma análise, no caso concreto, sobre a extinção da pena, apesar do inadimplemento da pena de multa, em especial, sob o aspecto sócio econômico do condenado. Isso porque, a exigência do pagamento pode causar danos para além do aspecto penal.
CONCLUSÃO
A atual redação do art. 51 do Código Penal, inserido pela Lei nº 13.964/2019, ratifica a natureza penal da pena de multa, a qual deve ser exigida pelo Ministério Público como titular da ação penal no juízo de execução penal.
A partir da evolução jurisprudencial, nota-se que a interpretação dada pela Corte Cidadã acompanha a ideia de um direito penal subsidiário, além de primar pela análise sócio-econômica na aplicação da pena e suas consequências para além da restrição da liberdade.
Assim, o entendimento de que o pagamento da prestação pecuniária era condição indispensável para o apenado ter declarada a extinção de punibilidade, a despeito do cumprimento integral da pena aflitiva, foi aos poucos sendo superado.
A alteração da jurisprudência teve por finalidade principal reconhecer que a hipossuficiência do condenado deve ser levada em consideração na individualização da pena, em especial, tendo em vista a estigmatização resultante dos efeitos da pena.
Além disso, foi considerada a finalidade essencial da pena de multa, qual seja, reprimir adequadamente os crimes de colarinho branco, que exigem uma sanção econômica ao condenado, muito além da condenação restritiva da liberdade.
Em razão disso, o Superior Tribunal de Justiça deu nova interpretação ao Tema 931 em 2023 para afirmar que, na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado impossibilitado de pagar, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
Nesse contexto, o ônus da comprovação da vulnerabilidade econômica que era do condenado, passou a ser do titular da ação penal, de modo que o juízo, motivadamente, deve justificar a possibilidade de o apenado pagar o valor, seja por meio do parcelamento, do desconto em eventual remuneração ou ainda, demonstrar a existência de bens capazes de solver o débito.
Diante do exposto, a análise pelo juízo da execução penal sobre a extinção de punibilidade do apenado que cumpriu a pena privativa de liberdade, mas deixou de pagar a multa merece especial cautela, considerando-se as peculiaridades do caso concreto, especialmente quanto à individualização da pena.
Desse modo, o julgador não deve se ater apenas à literalidade do ordenamento jurídico, mas também na perspectiva socioeconômica do indivíduo, buscando alcançar a subsidiariedade do direito penal e a redução do ônus da condenação.
REFERÊNCIAS
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Graduada em Direito pela UNESC – Centro Universitário do Espírito Santo. Especialista em Direitos Humanos pela Faculdade CERS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIEVORE, Julia Arpini. A (des)necessidade do pagamento da multa para reconhecimento da extinção de punibilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jul 2024, 03:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65784/a-des-necessidade-do-pagamento-da-multa-para-reconhecimento-da-extino-de-punibilidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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