1 INTRODUÇÃO
Este ensaio jurídico tem como premissa a análise das excludentes de ilicitude pelo delegado de polícia, baseando-se numa perspectiva valorativa da norma. Dentro dessa análise, serão verificadas as modalidades das excludentes de ilicitude previstas no Código Penal (Brasil, 1940), bem como seus requisitos. Há de se ressaltar que existe uma variação de requisitos de acordo com a doutrina acolhida, sendo trazida à baila a corrente majoritária.
Seguindo a linha dos elementos das excludentes do artigo 23 do Código Penal (Brasil, 1940), será feita uma análise da possibilidade ou não de o delegado de polícia verificar tais elementos, com os desdobramentos consequentes.
O presente ensaio jurídico é composto por três capítulos que analisam o mérito, sendo eles: 1) A análise das excludentes de ilicitude pela autoridade policial no flagrante delito – visa esclarecer a situação corriqueira que acontece no cotidiano do delegado de polícia, quando se está diante de uma situação de excludente de ilicitude, devendo fazer uma análise técnico-jurídica da ocorrência apresentada; 2) A aplicação do in dubio pro societate – busca realizar um equilíbrio com o in dubio pro reo; e 3) Conclusão – com todo o exposto, faz-se uma observação panorâmica de todo o conteúdo produzido sobre as diversas perspectivas expostas no ensaio, fazendo comparação de caso concreto para uma melhor assimilação.
2 A ANÁLISE DAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE PELA AUTORIDADE POLICIAL NO FLAGRANTE DELITO
De plano, é sustentável a tese de que o delegado de polícia, como o primeiro garantidor de direitos, deve realizar uma análise das excludentes de ilicitude. Dessarte, por ser uma autoridade que faz uma análise técnico-jurídica, possui competência para fazer juízo de discricionariedade e decidir se realizará ou não o auto de prisão em flagrante, pois é inconcebível, diante de um Estado Democrático de Direito preconizado na Constituição Federal (Brasil, 1988), tendo como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, ter de “fechar os olhos” a um mandamento legal de uma lei infraconstitucional redigida em 1941 (Brasil, 1941).
Em contrapartida, há autores que defendem a tese de que isso não seria possível, pois se estaria aceitando que o delegado de polícia entrasse no mérito e usurpasse a competência do juiz. Como informa Nucci (2010, p. 596):
A norma processual penal (art. 304, § 1º, CPP) não está bem redigida, a nosso ver. Não é crível que a autoridade policial comece, formalmente, a lavratura do auto de prisão em flagrante, sem certificar-se, antes, pela narrativa oral do condutor, das testemunhas presentes e até mesmo do preso, de que houve, realmente, flagrante por um fato típico. [...] Note-se que isso se dá no tocante à avaliação da autoria, mas não quando a autoridade policial percebe ter havido alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade, pois cabe ao juiz proceder a essa análise.
Já em sentido contrário, mas com bastante razão, está Capez (2012, p. 327):
Evidentemente, a autoridade policial não precisa prender em flagrante vítima de estupro ou roubo que, claramente em situação de legítima defesa, matou seu agressor. O juízo sumário de cunho administrativo pode ser efetuado, ainda que isso só possa ocorrer em situações absolutamente óbvias e claras de ausência de infração penal. Nunca é demais lembrar que a persecução penal nem sequer se iniciou, de modo a se evitar qualquer açodamento na exclusão da responsabilidade penal. A atuação do delegado de polícia nesse sentido é excepcional, apenas para evitar a prisão manifestamente desnecessária. Do mesmo modo, se, durante a lavratura do auto, surgirem elementos que desautorizem a prisão, a autoridade policial pode impedir a sua consumação, deixando de completar o procedimento para a prisão em flagrante. Em nenhuma dessas hipóteses pensamos haver relaxamento, pois o recolhimento ao cárcere nem chegou a se completar. O apresentado encontrava-se apenas detido, à espera de formalização de sua prisão. Como ele não chegou a ser preso em flagrante, não há prisão a ser relaxada. Haverá, no caso, mero juízo de valor negativo, o qual impede o ato de se aperfeiçoar.
Com maestria, seguindo o mesmo pensamento de Capez (2012), está o ensinamento de Sannini Neto (2014, p. 192):
O direito de liberdade de locomoção, por exemplo, proíbe que uma pessoa seja presa fora das hipóteses previstas na própria Constituição. Isto, pois, a liberdade individual é um dos principais direitos fundamentais, só podendo ser suprimida em casos extremos, de acordo com as previsões constitucionais e legais. Assim, a prisão de uma pessoa é justificada apenas quando restar constatado que ela cometeu um crime. É com o cometimento de um crime que nasce o direito de punir pertencente ao Estado, sendo que o processo é o único caminho possível para se chegar, legitimamente, à pena. [...] Dessa forma, cabe aos operadores do Direito (juízes, promotores, delegados de polícia, defensores públicos, advogados, procuradores etc.) analisar o caso concreto e optar pelo entendimento que lhes convier. A ciência do Direito é tão fascinante justamente pelo fato de não ser exata, permitindo diversos entendimentos para uma mesma questão.
Por tudo isso, entendemos que o delegado de polícia dever analisar as causas excludentes de ilicitude durante a fase pré-processual. Como operador do Direito e garantidor dos direitos fundamentais, a autoridade policial deve formar seu convencimento e decidir de maneira fundamentada e discricionária, de acordo com o caso concreto. Não podemos diminuir a importância do delegado de polícia afirmando que ele deve fazer apenas um juízo de tipicidade ou de subsunção entre os fatos e o tipo penal. Cabe à autoridade de polícia judiciária analisar o fato como um todo, com todas as suas peculiaridades e decidir fundamentadamente.
Percebe-se que há divergências em aceitar ou não a análise das excludentes pelo delegado de polícia, mas a doutrina que não aceita a análise do delegado se utiliza de argumentos formais, ou seja, adstrito apenas na literalidade da lei, não observando a norma de forma teleológica.
Um exemplo hipotético que podemos citar de forma didática é um caso no qual o sujeito “A” está sendo ameaçado de morte por seu desafeto “B”. Em uma ocasião em que “B” encontra “A” na rua e realiza contra ele vários disparos de arma de fogo com intuito de ceifar a sua vida, porém “A” também estava armado e utiliza de sua arma, desferindo vários disparos contra seu desafeto, que vem a sucumbir. Diante do caso narrado, nota-se que “A” agiu em legítima defesa, que é definida no artigo 25 do Código Penal (Brasil, 1940) da seguinte forma: “Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Como a legítima defesa exclui o crime, não há razão para formalizar o auto de prisão em flagrante, como bem preceitua Cabette (2015):
A Autoridade Policial somente pode lavrar um flagrante legalmente se há uma infração penal a ser apurada. Ocorre que o conceito de crime abrange os elementos da tipicidade e da antijuridicidade. Faltando um deles não há crime e assim sendo como poderia a Autoridade Policial prender alguém em flagrante, estando convencida de uma excludente de criminalidade? Não convence o argumento de que a análise da Autoridade Policial deve ser superficial, atendo-se tão somente à aparência da tipicidade formal, isso sob pena da admissão de que o sistema processual penal é erigido tendo um ator que não somente é autorizado, mas obrigado a agir violando sua consciência jurídica, bem como, o que é pior, lesionando os direitos fundamentais de alguém por mera formalidade. Seria o império de uma burocracia (ou “burrocracia”) autoritária.
Ora, é perceptível de forma contundente a injusta agressão no caso retratado acima, pois “B” não estava agindo de forma legal (compatível com a lei), não tendo o direito de tirar a vida alheia. “A” repeliu de forma moderada, protegendo direito seu da agressão atual, obedecendo à teoria dos degraus, que surgiu na Alemanha, que são os subprincípios da proporcionalidade (sentido amplo), sendo: a adequação (se ela é capaz de estimular a obtenção do resultado pretendido); necessidade (quando não há outra que produza resultado de igual intensidade); e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação de valores).
Pela aplicação do Código de Processo Penal (CPP) (Brasil, 1941) e a maneira em que vem sendo aplicado, deverá ser formalizado o auto de prisão em flagrante delito em desfavor de “A”, que agiu sobre o manto da excludente de ilicitude, devendo ser levado à prisão, aguardando posteriormente à decretação da liberdade provisória pelo juiz competente; pois, no momento da audiência de custódia em que o juiz recebe o auto de prisão em flagrante, ele poderá adotar três medidas, que são:
a) relaxar a prisão ilegal (considerada ilegal);
b) converter a prisão em flagrante em preventiva (quando provocado pelo Ministério Público ou pelo delegado de polícia), estando presentes os requisitos do fumus commissi delicti e do periculum libertatis, constantes no art. 312 do CPP (Brasil, 1941), e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Inobstante, o artigo 310, parágrafo primeiro, do Código de Processo Penal (Brasil, 1941), dispõe que o juiz, ao verificar que o agente praticou o ato nas condições dos incisos I ao III do caput do art. 23 do Código Penal (Brasil, 1940), “poderá”, de forma fundamentada, conceder ao “acusado” liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
Percebe-se, com a devida vênia, que o legislador foi infeliz em certo ponto, pois, quando ele diz “poderá”, dá a ideia de mera liberalidade do juiz de conceder ou não a liberdade provisória, devendo, onde se lê “poderá”, ler-se “deverá”, pois se trata de um direito subjetivo do agente.
Por conseguinte, não há lógica de se manter preso o agente se a excludente acarretará a absolvição sumária, conforme preconiza o art. 397, inc. I, do CPP (Brasil, 1941):
Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I – a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato.
Partindo dessa premissa, são duas as hipóteses de liberdade provisória vinculada:
a) ausência de elementos para a decretação da prisão preventiva;
b) prática do fato sob o prisma de uma excludente de ilicitude.
O art. 314 do mesmo diploma retrocitado utiliza sua redação de forma mais congruente, assim verifica:
Art. 314 – A prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.
Todavia, nesse diapasão, o que se passa na cabeça do indivíduo “A” do caso hipotético acima exposto, que ficou “trancafiado” numa cela, por resguardar um direito indisponível seu, um direito do qual ele mesmo não dispõe?
Será que na mente dele, ele acha que fez uma ação plausível perante a sociedade por defender sua vida? Ou se sentirá um culpado por ser “enjaulado” numa cela junto de outros acusados que cometeram dos mais variados crimes? A tendência será a segunda pergunta, isso porque o prazo para o envio do auto de prisão em flagrante delito ao juiz competente perdura no prazo de até 24 horas, enquanto o juiz possui o prazo de até 48 para decretar a liberdade provisória.
Ou seja, o sujeito poderá passar até 72 horas preso pelo fato de defender um direito seu, resguardado pela própria Carta Magna (Brasil, 1988); assim, verifica-se uma forma teratológica do ordenamento jurídico.
3 A APLICAÇÃO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE
Na perspectiva de Cabette (2015), é de suma importância informar que, no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante delito pela autoridade policial, aplica-se o in dubio pro societate. Ou seja, na dúvida, o delegado de polícia deverá lavrar o respectivo auto.
Conforme o exposto, não se realiza o auto de prisão apenas quando houver prova cabal da conduta realizada acobertada pelo manto de uma das justificantes. Assim, quando o delegado de polícia não estiver convencido ou tiver dúvida de que o agente agiu em alguma causa de justificação, deverá prendê-lo em flagrante delito, sem se esquecer de verificar a existência da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria.
4 CONCLUSÃO
Com todo o exposto, nota-se essencial que a autoridade policial faça uma análise das excludentes de ilicitude, porque, se assim o fizer, adequar-se-á ao Estado Democrático de Direito que tanto a Constituição Federal (Brasil, 1988) preconiza. Diante da dignidade da pessoa humana, o cerceamento de sua liberdade deverá ser consubstanciado em última hipótese (desde que não cause prejuízo para a coletividade), devendo ser adotadas medidas menos invasivas para dar prosseguimento na persecução penal. Assim, se o agente agiu em uma das causas de excludentes de ilicitude, consequentemente não haverá crime.
Não se sustenta que o delegado de polícia venha a realizar absolvição sumária, pelo contrário, ficando esse poder apenas ao magistrado. Inobstante, o delegado de polícia apenas não lavraria o auto de prisão em flagrante delito, mas haveria o inquérito policial, que seria iniciado mediante portaria, podendo o magistrado, posteriormente, entender de modo diverso e decretar uma medida cautelar diversa da prisão (art. 319 CPP), ou até mesmo decretar a prisão preventiva (art. 312 CPP) se presentes o fumus commissi deliciti e o periculum libertatis (Brasil, 1941).
A título de exemplo em relação à análise do delegado de polícia, podemos citar um atirador de elite, que, ao efetuar um disparo, veio a matar um criminoso que estava na iminência de causar um dano maior a terceiro, assim, salvando a vida de um refém. Nota-se que se o delegado não puder realizar uma valoração da ilicitude, deverá prender o atirador de elite pelo crime de homicídio (Brasil, 1940, art. 121) e lavrar o auto de prisão. Dessarte, o atirador ficará com sua liberdade de locomoção restringida, sendo tratado como acusado até que o juiz decida pela sua liberdade provisória, isso pelo simples fato de ele ter praticado uma conduta em legítima defesa de terceiro (Brasil, 1940, art. 25, parágrafo único), realizando algo incoerente com o Estado de Direito, em que o policial já estaria sendo taxado como criminoso e causando ineficiência à segurança pública por não deixar o atirador dar continuidade ao seu serviço e, ao mesmo tempo, o seu ato estaria resguardado como uma conduta que exclui o crime.
REFERÊNCIAS
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 jul. 2024.
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 jul. 2024.
BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, DF: Presidência da República, 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 jul. 2024.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O delegado de polícia e a análise de excludentes na prisão em flagrante. JusBrasil, 2015. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-delegado-de-policia-e-a-analise-das-excludentes-na-prisao-em-flagrante/160835874. Acesso em: 20 maio 2015.
CAPEZ, Fernado. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
SANNINI NETO, Francisco. Inquérito policial e prisões provisórias: teoria e prática de polícia judiciária. De acordo com as leis 12.830/2013, 12.850/2013 e 12.878/2013. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.
Bacharel em Direito pela Uninassau. Funcionário Público
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Severino Gilson da. A análise das excludentes de ilicitude pela autoridade policial no flagrante delito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 ago 2024, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/66211/a-anlise-das-excludentes-de-ilicitude-pela-autoridade-policial-no-flagrante-delito. Acesso em: 23 dez 2024.
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