RESUMO: A qualidade das democracias constitucionais tem sofrido severos abalos recentemente, e o Brasil não foge à regra. O episódio ocorrido em 08 de janeiro de 2023 em Brasília evidencia a fragilidade da ainda recente democracia brasileira, quando apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes. Em setembro do mesmo ano, foram publicadas as primeiras sentenças, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, condenando, criminalmente, os agentes. A Corte Suprema parece ter optado por punir com rigor os envolvidos nos lamentáveis eventos, ainda que em detrimento da melhor técnica penal, em evidente “jogo duro constitucional”, nos termos de Mark Tushnet. Porém, o efeito atingido pode ser contrário àquele pretendido e o atropelamento de alguns princípios penais pode, ao invés de proteger, colocar em risco a democracia.
Palavras-chave: Democracia. Atos golpistas. Jogo duro constitucional.
ABSTRACT: The quality of constitutional democracies has recently suffered severe setbacks, and Brazil is no exception. The episode that took place on January 8, 2023, in Brasília highlights the fragility of Brazil's still relatively young democracy when supporters of former President Jair Messias Bolsonaro invaded and vandalized the headquarters of the three branches of government. In September of the same year, the first sentences were issued by the Supreme Federal Court, criminally convicting the individuals involved. The Supreme Court seems to have chosen to punish those involved in the regrettable events rigorously, even at the expense of the best criminal technique, in an evident "constitutional hardball," in the terms of Mark Tushnet. However, the achieved effect may be contrary to the intended one, and the disregard for some criminal principles may, instead of protecting, jeopardize democracy.
Keywords: Democracy. Coup attempt. Constitutional hardball.
1.INTRODUÇÃO
Em 08 de janeiro de 2023, apoiadores do ex-Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, insatisfeitos com a eleição e posse do Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes, em Brasília. Depois do ocorrido, foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do 8 de janeiro para investigar os ataques golpistas.
Mensagens trocadas entre os líderes do movimento indicam inequívoca intenção de derrubar o governo legitimamente eleito e algumas delas impressionam pelo nível de agressividade e desrespeito. A pretensão dos líderes dos atentados era, comprovadamente, atentar contra o Estado Democrático de Direito.
Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal condenou, criminalmente, os primeiros réus pelo cometimento dos delitos de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
Exemplificativamente, a pena aplicada a Aécio Lúcio Costa Pereira foi de “17 (dezessete) anos, sendo 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de reclusão e 1 (um) ano e 6 (seis) meses de detenção e 100 (cem) dias-multa, cada dia-multa no valor de 1/3 (um terço) do salário mínimo, pois incurso nos artigos: 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), do Código Penal, à pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de reclusão; 359-M (Golpe de Estado) do Código Penal à pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de reclusão; 163, parágrafo único, I, II, III e IV (dano qualificado), todos do Código Penal à pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de detenção e 50 (cinquenta) dias-multa, fixando cada dia-multa em 1/3 do salário mínimo; 62, I, (deterioração do Patrimônio tombado) da Lei 9.605/1998 à pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de reclusão e 50 (cinquenta) dias-multa, fixando cada dia-multa em 1/3 do salário mínimo; 288, parágrafo único, (Associação Criminosa Armada) do Código Penal à pena de 2 (dois) anos de reclusão, fixando o regime fechado para o início do cumprimento da pena de 15 anos e 6 meses de reclusão, nos termos do art. 33, §§ 2º, a, e 3º, do Código Penal, e, no caso da pena de 1 ano e 6 meses de detenção, fixando o regime aberto como o regime inicial de cumprimento da pena, nos termos do art. 33, § 2º, c, do Código Penal”.
Aécio também foi condenado ao pagamento de “valor mínimo indenizatório a título de danos morais coletivos de R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais), a ser adimplido de forma solidária pelos demais condenados, em favor do fundo a que alude o art. 13 da Lei 7.347/85, soma a ser corrigida monetariamente a contar do dia da proclamação do resultado do julgamento colegiado, incidindo juros de mora legais a partir do trânsito em julgado deste acórdão”.
O conteúdo das sentenças proferidas pelo Pretório Excelso causou celeuma na comunidade jurídica, principalmente entre os militantes na área criminal. Para muitos, houve condenações a penas demasiado elevadas, inclusive com tipificação equivocada das condutas e desrespeito a princípios basilares do Direito Penal e Processual Penal, como os da individualização das condutas na denúncia e culpabilidade. Ocorre que a urgência do momento pode ter exigido, da Corte Suprema, que agisse em verdadeiro “jogo duro constitucional”.
Neste artigo, será explicado por que se acredita existirem duas perspectivas de análise da questão: uma criminal e outra constitucional, que se complementam, até por ser o Direito uno, com a potencialidade de auxiliar na compreensão holística deste nefasto episódio ocorrido no início de 2023.
2.CONSIDERAÇÕES SOB O PONTO DE VISTA CRIMINAL
As penas aplicadas aos agentes presentes nos denominados “atos golpistas” ocorridos em 08 de janeiro de 2023 suscitaram diversos debates entre os operadores do Direito na área criminal, principalmente em razão de ser polêmica a tipificação das condutas perpetrada pelo Supremo Tribunal Federal, o que resultou em sanções bastante elevadas para cada um dos réus, comparativamente a outros tipos penais.
Rememorando o caso de Aécio Lúcio Costa Pereira, que servirá como parâmetro: as penas privativas de liberdade a ele aplicadas foram de 15 (quinze) anos e 06 (seis) meses de reclusão e 01 (um) ano e 06 (seis) meses de detenção. A título de comparação, a pena cominada para o crime de homicídio simples é de 06 (seis) a 20 (vinte) anos de reclusão (artigo 121 do Código Penal).
Aécio foi condenado pelo cometimento dos seguintes crimes: artigo 359-L do Código Penal (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), artigo 359-M do Código Penal (golpe de Estado), artigo 163, parágrafo único, incisos I, II, III e IV do Código Penal (dano qualificado), artigo 62, inciso I, da Lei nº 9.605/1998 (deterioração do patrimônio tombado) e artigo 288, parágrafo único, do Código Penal (associação criminosa armada).
A seguir, serão feitas breves observações em relação a cada tipo penal, com algumas provocações a respeito do acerto ou desacerto da tipificação, neste caso concreto.
O artigo 359-L do Código Penal prevê o crime cujo nomen iuris é “Abolição violenta do Estado Democrático de Direito”. O preceito normativo primário é: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” e a sanção a este delito cominada é de reclusão de 04 (quatro) a 08 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Para que um indivíduo cometa este delito, ele deve tentar eliminar, extirpar ou extinguir o Estado Democrático de Direito. Trata-se de crime formal, ou seja, consuma-se independentemente de ser atingido o objetivo de, de fato, eliminar o Estado Democrático de Direito.
De acordo com Cleber Masson, o sujeito não deseja apenas derrubar um determinado governante, conduta que caracterizaria o delito de golpe de Estado, tipificado no artigo 359-M do Código Penal, mas sim, almeja o fim do próprio Estado Democrático de Direito, no qual prevalecem a soberania popular e o respeito às leis, com a instauração da ditadura, preocupada unicamente com os detentores do poder e seus respetivos interesses.
Ou seja, nos autos, deve haver prova de que, com sua conduta, Aécio não objetivava simplesmente impedir o exercício do poder pelo presidente recém-eleito Luiz Inácio Lula da Silva, mas sim instalar uma ditadura no país.
Ainda de acordo com Masson: “O tipo penal também não se contenta com passeatas, manifestações ou qualquer tipo de agrupamento de pessoas, inclusive com o emprego de armas e repartição de tarefas, visando à extinção do regime democrático. De fato, o art. 359-L do Código Penal exige a prática efetiva de atos direcionados a tal finalidade, com emprego de violência ou grave ameaça”.
Também: “A tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito se concretiza pelo impedimento ou restrição do exercício dos poderes constitucionais, isto é, mediante a vedação total ou parcial das atividades do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, como no exemplo em que integrantes de um grupo revolucionário ameaçam de morte e agridem fisicamente diversos parlamentares, daí resultando a suspensão, por relevante período, do funcionamento do Congresso Nacional”.
Da leitura das descrições do chamado “episódio golpista”, principalmente existentes em notícias de fontes confiáveis, não parece que os envolvidos naquelas cenas tenham, de fato, impedido ou restringido o exercício dos poderes constitucionais, pois não houve vedação total ou parcial das atividades do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário.
É relevante lembrar ter sido o dia 08 de janeiro de 2023 um domingo, razão pela qual os edifícios invadidos e depredados pelos manifestantes encontravam-se vazios (inclusive porque ainda estava em recesso o Congresso Nacional). Os denominados “atos golpistas” foram controlados no mesmo dia pelas forças policiais e não houve óbice ao exercício dos poderes constitucionais, que continuaram a funcionar normalmente (pese o lamentável prejuízo patrimonial suportado pela União ante a depredação de mobiliário, obras de artes, instalações e inúmeros outros objetos).
Nas palavras de Fernando Capez:
“O artigo 359, L, do CP, tem como bem jurídico tutelado a democracia. Cumprindo sua função de taxatividade e a fim de evitar excessivo alargamento de seu alcance punitivo, o tipo penal em questão descreveu as duas formas pelas quais se atenta contra o Estado Democrático de Direito: impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. Deste modo, de acordo com a descrição típica do artigo 359, L, do CP, haverá tentativa de abolição do Estado democrático de Direito quando o agente praticar conduta capaz de impedir ou ao menos restringir o funcionamento dos poderes constitucionais.
Não basta vontade ou intenção de impedir ou restringir tal funcionamento, sendo necessário aferir a eficácia dos meios empregados, sob pena de configuração de crime impossível. O artigo 17 do CP considera ser crime impossível, quando a tentativa for impossível pela ineficácia absoluta do meio ou impropriedade absoluta do objeto. É a chamada tentativa inidônea, inadequada ou quase-crime.
É imprescindível que a ação tenha efetiva capacidade de impedir ou restringir de fato, o exercício dos poderes constitucionais. Só a intenção não basta. Quando o agente imagina, por erro, estar praticando um crime, mas na verdade não chega a colocar em risco o bem jurídico tutelado, surge a figura do delito putativo por erro de tipo e não existe crime. Quem atira num cadáver pensando estar matando pessoa viva, quer matar, mas não comete crime algum, face à impropriedade absoluta do objeto material”.
Invadir edifícios vazios impede ou restringe o exercício dos poderes constitucionais apenas no local invadido, mas não os inviabiliza ou restringe, já que podem continuar sendo desempenhados em lugar diverso. Deve-se considerar também se a desocupação se deu no prédio em questão e se havia algum tipo de atividade pública sendo exercida naquele momento.
Pelos motivos acima expostos, a tipificação da conduta dos agentes envolvidos neste episódio no artigo 359-L do Código Penal nos parece, no mínimo, polêmica, pois poder-se-ia cogitar da existência de crime impossível, neste caso.
Outra não é a conclusão a respeito da condenação pelo cometimento do delito do artigo 359-M do Código Penal, cujo preceito normativo primário é: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
Neste caso, o agente busca a cessação do mandato do Presidente da República, fora das hipóteses consagradas na Constituição Federal (tais como a renúncia, anulação da eleição, impeachment pelo Senado Federal, condenação transitada em julgado proferida pelo Supremo Tribunal Federal pela prática de crime comum, além da morte – desvinculada do golpe de Estado, por óbvio), mediante o emprego de violência à pessoa ou grave ameaça.
Um exemplo seria sequestrar o filho do Presidente da República legitimamente eleito e, em troca da sua liberação com vida, exigir a renúncia do governante ao cargo.
Este crime pode ser classificado como formal (consuma-se com a prática da conduta prevista em lei, independentemente da produção do resultado naturalístico, ou seja, é suficiente a prática de atos concretos de tentar depor, com emprego de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído, não se exigindo a efetiva deposição) e não admite tentativa (pois a conduta típica já é “tentar depor”).
Algumas questões revelam-se a partir da análise deste tipo penal. Primeiramente, é relevante notar ser o elemento subjetivo do tipo o dolo, não se admitindo a modalidade culposa. Logo, para ter sido condenado por este delito, é essencial que haja nos autos provas de ter Aécio, conscientemente, tentado depor governo legitimamente constituído. Não basta que tenha sido encontrado entre os manifestantes, depredando prédios históricos. Em segundo lugar, deve ter sido comprovado ter agido com violência ou grave ameaça contra a pessoa, com o objetivo de tentar depor o governo legitimamente constituído. Em razão de ter sido a data de 08 de janeiro um domingo, entende-se que dificilmente esta elementar do tipo penal tenha se concretizado.
Terceira questão polêmica que se revela é o concurso de infrações. Poderia se cogitar tratar-se de bis in idem condenar um indivíduo tanto pelo cometimento do crime do artigo 359-L do Código Penal quanto pelo delito descrito no artigo 359-M do mesmo Codex. Até se pode pensar na prática de duas condutas diferentes, cada qual ensejando a tipificação por um destes delitos. Porém, seria mister que tais condutas estivessem devidamente descritas na inicial acusatória, com a devida individualização dos atos supostamente perpetrados por Aécio, além da descrição pormenorizada de sua conduta, inclusive com a sinalização de ter sido, em qualquer um destes delitos, partícipe, e não coautor (caso assim tenha ocorrido a sua participação nos eventos ora analisados).
Aécio foi, ainda, condenado pelos crimes de dano qualificado (artigo 163, parágrafo único, incisos I a IV do Código Penal) e deterioração do patrimônio tombado (artigo 62, inciso I, da Lei nº 9.605/1998). Novamente, é essencial que na denúncia estejam individualizadas as suas condutas, de modo que não tenha sido uma única conduta tipificada nos dois delitos supramencionados, o que se trataria de evidente bis in idem (a vedada dupla penalização de uma só conduta).
Por fim, Aécio também foi condenado pelo cometimento do crime de associação criminosa, com aplicação de causa de aumento por ter sido a associação armada (artigo 288, parágrafo único, do Código Penal).
Para que se cometa tal delito, é essencial a existência de união estável e permanente entre os membros da associação criminosa, o que diferencia este crime do concurso de pessoas (coautoria ou participação). Vale dizer, os indivíduos componentes da associação criminosa devem ter vínculo associativo, tendo firmado acordo ilícito entre três ou mais pessoas sobre uma duradoura atuação em comum no sentido da realização de crimes indeterminados ou somente ajustados quanto à espécie.
Ausente esse vínculo associativo, a união de três ou mais indivíduos para a prática de um ou mais crimes caracteriza o concurso de pessoas, nos moldes do artigo 29, “caput”, do Código Penal.
Em relação a este delito, indaga-se: restou comprovado ter Aécio (e todos os demais réus eventualmente condenados pela prática do crime do artigo 288 do Código Penal) se associado de maneira estável com pelo menos outras duas pessoas com o objetivo de praticar crimes? Caso a resposta seja positiva, pode ter havido, de fato, associação criminosa. Porém, caso os indivíduos ali presentes estivessem apenas circunstancialmente associados, sem vínculo associativo, ou ainda, caso tenham sido vítimas do “efeito manada”, praticando a destruição do patrimônio público insuflados pela visão de outras pessoas fazendo o mesmo, houve tão somente concurso de pessoas, que, como se sabe, não caracteriza delito autônomo.
Todas essas circunstâncias devem ter sido devidamente apuradas nos autos e descritas na denúncia, com a devida individualização das condutas de cada réu, para que se possa falar em sentença justa – ou, ao menos, em decreto condenatório tecnicamente preciso.
Ao menos em uma análise superficial dos fatos (pois é praticamente impossível que se chegue a uma conclusão contundente sem a devida e pormenorizada análise dos autos), parece terem sido os agentes presentes nos atos de 08 de janeiro (aqui representados pelo réu Aécio, exemplificativamente) condenados por crimes que não cometeram – pelo menos do ponto de vista técnico jurídico-criminal.
Há indícios de ter sido oferecida uma resposta contundente pelo Estado, representado pelo Poder Judiciário, para coibir atos de violência que poderiam representar um risco futuro para a democracia e, assim, passar a seguinte mensagem para a população: a qualquer custo, o regime democrático será preservado, ainda que, para isso, a técnica criminal seja, momentaneamente, suplantada pela relevância da proteção da democracia.
Em outras palavras: todo o episódio, bem como a penalização dos envolvidos, pode ser analisado, também, sob a ótica do Direito Constitucional, o que será feito a seguir.
3.CONSIDERAÇÕES SOB O PONTO DE VISTA CONSTITUCIONAL
Não há como abordar, a nível constitucional, o ocorrido em 08 de janeiro de 2023 em Brasília sem mencionar o processo de erosão democrática observado no Brasil, mas também em diversos países do mundo, contemporaneamente.
De acordo com o Informe 2023 da Corporación Latinobarómetro, a respeito dos países que compõem a América Latina; “La recesión democrática (...) no se refiere a esas dictaduras sino más bien al declive y vulnerabilidad al que han llegado los países de la región después de uma década de deterioro continuo y sistemático de la democracia”.
E ainda: “La recesión se expresa en el bajo apoyo que tiene la democracia, el aumento de la indiferencia al tipo de régimen, la preferencia y actitudes a favor del autoritarismo, el desplome del desempeño de los gobiernos y de la imagen de los partidos políticos. La democracia en vários países se encuentra en estado crítico, mientras otros ya no tienen democracia”.
O Brasil não passou ileso pela deterioração da qualidade da democracia. Como em outros países do mundo (como Hungria) e, especialmente, da América Latina, no Brasil, apesar de, recentemente, não ter havido uma ruptura abrupta do Estado de Direito, com deposição de governo democraticamente eleito para instalação de uma ditadura militar, observa-se um distanciamento da população em relação aos valores democráticos cultivados nas últimas décadas, com constantes questionamentos a respeito da necessidade de existir um governo democrático, desconfianças em relação aos resultados das eleições e demonstrações de aprovação de modelos autoritários de governo.
O cenário político atual demonstra como a população brasileira não mais confia, como outrora já confiou, no regime democrático, tendo havido consequente diminuição do apoio popular à democracia.
Parcialmente impulsionados por informações e notícias falsas veiculadas, principalmente, pela rede mundial de computadores, parte considerável do eleitorado brasileiro demonstrou insatisfação com a eleição havida em 2022, chegando a propagar mensagens de saudosismo relacionadas ao horrendo período da ditadura militar. Algumas das manifestações alcançaram o extremo de pedir para que o Exército Brasileiro depusesse o presidente eleito e tomasse as rédeas da nação, em evidente e odioso golpe.
A insatisfação democrática culminou, sem sombra de dúvidas, no lamentável episódio havido na data de 08 de janeiro de 2023.
A reação do Poder Judiciário em relação a este evento impressionou pela rigidez. Conforme já exposto acima, as sentenças proferidas parecem carecer de técnica, sacrificando princípios basilares do Direito Penal, como vedação ao bis in idem, responsabilização de cada réu de acordo com a sua culpabilidade e individualização das condutas na denúncia, para darem resposta contundente à população: não serão toleradas manifestações populares que incitem ou peçam pela ruptura democrática.
A resposta da Corte Suprema às condutas dos manifestantes assemelha-se ao conceito de “constitutional hardball” cunhado por Mark Tushnet.
De acordo com o professor de Direito Constitucional da Georgetown University Law Center: “A shorthand sketch of constitutional hardball is this: it consists of political claims and practices-legislative and executive initiatives-that are without much question within the bounds of existing constitutional doctrine and practice but that are nonetheless in some tension with existing pre-constitutional understandings”.
Ou seja: a denominada “constitutional hardball”, ou jogo duro constitucional, envolve práticas e argumentos que são inconsistentes com entendimentos já sedimentados do ponto de vista constitucional e ocorre, principalmente, em momentos de transição de um regime para outro – ou de transformações constitucionais.
A noção de Tushnet sobre “hardball” seria, sobretudo, de disputa de poder havida entre grupos organizados dentro de uma estrutura, sem o rompimento constitucional, pois não haveria nenhuma inconstitucionalidade dentro da teoria constitucional, salvo alguma disputa mais dura, diferente da teoria constitucional que vinha até o momento em que a disputa surge, mas os embates estariam contidos no texto constitucional.
Tushnet apresenta juízo mais crítico, inclusive, do célebre caso Marbury vs. Madison, utilizando-se da expressão de “supremacia judicial”. Os exemplos apresentados por Tushnet dizem respeito, sobremaneira, a disputas de poder.
Acredita-se, sim, ter havido um jogo duro constitucional na resposta do Poder Judiciário a respeito da responsabilização dos agentes envolvidos nos atos de 08 de janeiro. Houve uma certa ofensividade envolvida, pois era claro para os agentes políticos brasileiros o fato de a democracia estar perdendo espaço naquele momento.
Ainda que não de acordo com a melhor técnica penal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram por punir com rigor os envolvidos na manifestação que entoava cânticos contrários aos valores da democracia.
Naquele momento, entendeu-se ser mais relevante proteger a democracia e sufocar atitudes e pensamentos antidemocráticos no nascedouro do que atentar-se para todos os princípios penais e processuais penais previstos, ainda que constitucionalmente.
O Poder Judiciário, neste momento, valeu-se de estratégias de ataque e de defesa para coibir atos que julgou antidemocráticos e que poderiam resultar em uma real ameaça ao Estado de Direito, ainda que futura, em um evidente “jogo duro constitucional”.
Ocorre que o Direito Penal é multifacetado – ao mesmo tempo em que existe para reprimir e prevenir a prática de crimes, também deve servir como proteção aos cidadãos, que se amparam nos princípios previstos na Constituição e no texto infraconstitucional para terem a segurança de que não serão responsabilizados por crimes que não cometeram e, por outro lado, responderão por aqueles que de fato cometeram na medida de sua culpabilidade.
4.CONCLUSÃO
O episódio ocorrido em 08 de janeiro de 2023, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, Distrito Federal, ficará para sempre marcado na história brasileira.
Centenas de cidadãos apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, insatisfeitos com a recente eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tomaram o espaço público e depredaram os prédios onde funcionários públicos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário exercem suas funções.
Os líderes do movimento, inequivocadamente, tinham intenção de derrubar o governo legitimamente eleito. Na data, trocaram mensagens que comprovam a intenção de atentar contra o Estado Democrático de Direito e que impressionam pela agressividade e desrespeito.
Porém, a resposta do Supremo Tribunal Federal a tal empreitada antidemocrática está longe de ser unanimidade, principalmente entre penalistas. Os participantes do ato foram condenados pelo cometimento dos crimes dos artigos 359-L, 359-M, 163, parágrafo único, incisos I, II, III e IV, artigo 288, parágrafo único, todos do Código Penal, e artigo 62, inciso I, da Lei nº 9.605/1998.
Diversos debates foram suscitados: se a denúncia individualizou, de maneira detalhada, as condutas de cada réu, se eles foram justamente responsabilizados, se houve bis in idem, se cada réu respondeu de acordo com sua culpabilidade, se todos agiram com o dolo de obstar o funcionamento de um (ou mais) dos Três Poderes, dentre outros.
Ao que tudo indica, o Poder Judiciário, de maneira consciente, optou por responsabilizar de maneira bastante contundente cada um dos réus, em detrimento da melhor técnica penal.
Ao fazê-lo, comporta-se em “jogo duro constitucional”, expressão cunhada por Mark Tushnet em 2004 (Mark Tushnet, Constitutional Hardball, 37 J. Marshall L. Rev. 523 (2004)).
Apesar de, do ponto de vista constitucional, poder ser justificável o caminho percorrido pelo Poder Judiciário neste caso (sempre com vistas à proteção da democracia), caso um ou mais princípios penais tenha sido violado, a conduta do Pretório Excelso demonstra-se injustificável do ponto de vista criminal.
Isso porque sacrificar a liberdade de alguns cidadãos para passar a mensagem da preservação da democracia pode ter um alto preço, inclusive com o futuro comprometimento da própria democracia, que tão incansavelmente se tenta preservar.
Sem dúvidas, sacrificar garantias constitucionais, no âmbito penal, significa violar o Estado Democrático de Direito, ainda que haja a nobre motivação da preservação da democracia. Deste modo, o próprio Poder Judiciário pode ter agido como incentivador da erosão democrática. Afinal, abre-se terrível precedente que poderá ser utilizado no futuro por Ministros que, talvez, não sejam tão defensores do jogo democrático como os atuais.
5.REFERÊNCIAS
TUSHNET, Mark. Constitutional hardball. Digital Access to Scholarship at Harvard. Disponível em: https://dash.harvard.edu/bitstream/handle/1/12916580/Constitutional%20Hardball%2037%20J.%20Marshall%20L.%20Rev.%20523%20%282004%29.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 11 de dezembro de 2023.
CAPEZ, Fernando. Crime de atentado a democracia: uma análise jurídica. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-21/controversias-juridicas-crime-atentado-democracia-analise-juridica/. Acesso em: 11 de dezembro de 2023.
MASSON, Cleber. Direito Penal: parte especial (arts. 213 a 359-T). Rio de Janeiro: Método, 2023.
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: STEMPNIEWSKI, LIGIA PENHA. O episódio “golpista” do 08 de janeiro de 2023: perspectivas constitucional e penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 out 2024, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/66622/o-episdio-golpista-do-08-de-janeiro-de-2023-perspectivas-constitucional-e-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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